Descruzando polémicas

Não há razões para se preocupar, meu caro Carlos Leone. O seu post era claramente sobre Caetano e o ódio à mudança, e sobre isso explicou-se muito bem — e se isso interessa, tem a minha concordância. Grass era uma figura secundária no seu post, mas era a principal no meu, e daí o meu interesse em fazer-lhe a pergunta que fiz (que vá lá, não era um pedido de explicações, pelo menos não de todo no tom altaneiro que a coisa pode ter — era mesmo uma pergunta).
Tinha percebido que estava a comparar as duas intervenções públicas. O meu ponto não era discutir os méritos das intervenções públicas de Grass — não me pronunciei nem me pronunciarei sobre isso, apenas digo que, neste ou em qualquer outro caso, um juízo sobre a ética pessoal de um indivíduo não se pode repercutir como juízo sobre as opiniões que esse indivíduo expande. O meu ponto, que já vinha de posts anteriores, era o de afirmar que Grass, enquanto consciência da má-consciência alemã, estava indubitável e complexamente nos romances, e não nas suas intervenções públicas. Ora, ainda que possa conceder que filosofia e romance não são comparáveis (mas acho que ambos concordaríamos que a questão se poderia complicar bastante), o que me interessava era saber se o juízo de valor que fazia sobre as intervenções públicas de Grass era extensível aos seus romances (e por aqui se vê que quem se explicou mal fui eu, porque se esta era de facto a minha pergunta, bastava fazê-la nestes exactos termos). Pela sua resposta, percebo que não. Mas já agora também adiantarei que desconfio bastante dessa consensualidade de que Grass continua a ser um grande escritor. Isto não o envolve a si, mas àqueles que acham que Grass é um grande escritor mas nunca devia ter aberto a boca publicamente por causa do segredo agora revelado. Porque é que dirão que Grass é um grande escritor? Metáforas, ritmo de escrita, qualquer coisa assim supostamente da forma por oposição a um não menos suposto conteúdo? É que se é por os seus romances serem interpretáveis como a consciência aguda da má-consciência alemã, não percebo de todo o alarido: todo o episódio lá encaixa na perfeição. A arte imita a vida que por sua vez imita a arte. E desta maneira ou daquela (há diferenças, claro, e não deixam de ter a sua importância), nenhum romancista, como nenhum leitor de romances, estará à altura daquilo que o romance descobre como exigência ética de um tempo e de uma vida.

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