Grass II

Percebo a mágoa, meu caro Rui Bebiano. Aliás, a oscilação do regime metafórico do seu post-scriptum deixa entender bem porquê. Quando a leitura é feita segundo o pacto da conjugalidade, uma revelação destas só pode soar como uma traição. E por mais instâncias críticas de que se rodeie a leitura, concordo que toda a leitura que valha a pena talvez não se possa eximir por completo a um tal pacto. Mas por outro lado, também sabemos que, de um modo talvez ainda mais forte, toda a leitura que valha a pena será sobretudo uma relação impessoal com uma voz que passa através daquilo a que chamamos autor. Que em Grass se tenha lido a voz da “consciência alemã anti-nazi do pós-guerra” diz-nos que Grass tinha bom ouvido para a voz dessa consciência, que não é a consciência de um indivíduo mas, vamos dizê-lo assim, de um tempo. Conhecido o segredo de Grass, de alguma forma admiro-o ainda mais. Porque teve bom ouvido apesar do seu segredo pessoal. E realmente nunca o omitiu enquanto constitutivo da “consciência alemã anti-nazi do pós-guerra”. Aliás, esse era mesmo o cerne algo insuportável dessa consciência: a conivência com o nazismo, ou pelo menos o silêncio da conivência. Nunca Grass pôs um nome pessoal nessa conivência, até porque isso seria destruir grandemente o seu alcance colectivo e histórico. Claro que acabou por lucrar com isso, etc, etc. E é na dimensão dessa intimidade, do conhecimento de um autor enquanto pessoa morta ou viva, na nossa impossibilidade de aceitarmos completamente que um nome de autor é uma instância do texto e não uma entidade civil, que cresce a mágoa de que fala. É impossível estarmos completamente à altura daquilo que a leitura exige de nós. Mas como bem diz, meu caro Rui, bem pode ser que o tempo nos cure a mágoa e nos devolva a razão, quer dizer, nos permita caminhar no reino impessoal da razão. O tempo costuma ser capaz dessas coisas.

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