A Leitora, no seu infinito particular (XXXIX)

- Obrigado por me receber, senhor deputado.
- Faz parte dos meus deveres para com os eleitores do meu círculo.
- Senhor deputado, se bem me lembro, os dois maiores partidos portugueses não tinham posição oficial sobre o aborto.
- Assim foi e assim é.
- Portanto, deram liberdade de voto, quer dizer, liberdade de consciência aos seus deputados.
- Assim foi e assim é.
- E a si, como deputado de um desses partidos, não lhe parece estranho que os deputados não tenham devolvido imediatamente essa liberdade de consciência ao todo do país, criando uma lei em que cada um, de forma clara e com a sua consciência como tribunal, pudesse escolher e assumir na sua vida o resultado dessa escolha?
- Nós demos, por isso se fez o referendo.
- Mas no referendo a liberdade de consciência está apenas no voto. Se o "Não" ganhar, lá se vai a liberdade de consciência para que cada um possa de facto decidir no dia-a-dia.
- É a democracia, que como deve saber é o pior sistema com exclusão de todos os outros.
- Mas não seria mais democracia se quando uma lei não pretende obrigar, ela devesse permitir desde logo ambas as posições? Isto não é uma lei de impostos, por exemplo, em que seja necessário dizer quem é obrigado a pagá-los e quanto. Permitir o aborto não obriga ninguém a abortar.
- É certo. Mas pelo seu raciocínio, até os que são contra o aborto, ou que nunca por nunca o praticariam, deveriam ser favoráveis à possibilidade de que quem o entendesse praticar o pudesse fazer dentro destes limites legais.
- Exactamente. É esse o meu raciocínio. E deveria ser essa a posição de quem é realmente democrático: que dentro de certos limites legais, forçosamente muito amplos, cada um pudesse viver de acordo com as suas crenças e a sua consciência. O senhor deputado não acha?
- Desculpe lá, você disse que se chamava?..
- Leitora, e isto é uma espécie de entrevista para o blog Manchas.
- Nunca ouvi falar.
- Tem um share irrelevante, é por isso.
- Não está a gravar, pois não? Em todo o caso também não importa. Olhe, isto foi tudo uma trapalhada. Ou se quer mesmo saber, foi tudo uma enorme covardia do Guterres e do Marcelo. Não quiseram perder votos entre os católicos e os conservadores e por isso não decidiram o que politicamente se impunha. E como ainda por cima eram católicos, mais razões encontraram para se descartarem das suas responsabilidades políticas propondo o referendo. Lavaram as mãos como Pilatos. Mas também não vale a pena chorar sobre o leite derramado.
- Pois não, mas perdeu-se uma oportunidade de pedagogia democrática.
- Faça-a agora, no referendo. Não discuta a vida, discuta a democracia.
- E diga-me, senhor deputado, porque é que na outra altura não houve um movimento de deputados para a pedagogia democrática, apesar da posição dos líderes?
- Que quer que lhe diga, Leitora? Que a vida política e mais ainda a vida partidária são muito complexas? Deixemos as coisas por aqui, este não é o momento de fazer essa história, mas de entrar no referendo. É o que temos.

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