O Senhor Walser # 5. Deriva-Zizek. Maioria moral. Acto.

Zizek deplora o estado da sexualidade hoje. A extrema reflexividade em que se desenrola a vida sexual, a sua medicalização, e a sua relação intrínseca com o individualismo pós-moderno, originam “a extinção do apego apaixonado ao Outro, o aparecimento de um Eu auto-suficiente para o qual o Outro-parceiro já não é um sujeito, mas tão-só o portador de uma mensagem que se refere directamente ao Eu” (Elogio da intolerância, p. 123). Não é necessário concordar com todas as nuances do raciocínio de Zizek — a sua análise do Viagra, por exemplo, parece-me desconhecer o bom-senso psicológico que anima a reflexividade sexual de muitos casais de terceira idade, tal como nos é relatada por vários analistas e terapeutas —, para aceitar que o diagnóstico é globalmente correcto.
Mas Zizek encontra uma saída: “trata-se do caso de Mary Kay le Tourneau, essa professora do ensino secundário de Seattle, com trinta e seis anos de idade, que foi presa por ter entabulado uma relação amorosa com um dos seus alunos, de catorze anos — numa das grandes histórias de amor recentes, em que o sexo aparece ainda associado a uma efectiva transgressão social” (p. 125).
Claro que Zizek não está a advogar a multiplicação destes casos, está apenas a tomar um caso particular como ilustrativo de um modo de lidar com o Outro. Ilustrativo, antes de mais, pela reacção da “maioria moral” americana. Reacção dupla, e de sinal contrário. Por um lado, medicalizando. A psiquiatra que avaliou Mary Kelly sustentou reiteradamente a tese de que o seu problema “«não era psicológico, mas médico», e que a acusada deveria ser tratada por meio de uma medicação que estabilizasse o seu comportamento: «Para Mary Kelly, a moral começa pela toma de um comprimido.»” (p. 126). Por outro lado, condenando: a tese da “personalidade bipolar” de Mary Kelly seria apenas um subterfúgio que a libertava de assumir a sua culpabilidade e responsabilidade.
O que a maioria moral nunca quis tentar entender foi o discurso em que Mary Kelly afirmava que amava o seu aluno de catorze anos. Por mais estranho e perturbador que seja um tal discurso, ele não deixa de colocar com clareza o que, no limite, define um Acto. Como foi possível que Mary Kelly tivesse posto em causa “a sua família, os seus três filhos, a sua carreira? Não será, contudo, uma suspensão semelhante do «princípio de razão suficiente» a própria definição do ACTO?” (p. 128). Quando Lacan define um acto como “impossível”, ou Kierkegaard fala do momento de loucura da decisão, ambos se referem ao facto de que um verdadeiro acto nunca é apenas o momento lógico de uma cadeia de razões ou de regras. Um “acto bem conseguido induz, por definição, um curto-circuito; cria retroactivamente as condições da sua própria possibilidade” (p. 127). Ou seja, e retomando Walser, se beijos apaixonados são expectativa — isto é, consequência lógica — de racionalidade absoluta, então os beijos apaixonados da expectativa de Walser não são um verdadeiro Acto. Isto sim, terá consequências lógicas.

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