O Senhor Walser # 8. Catástrofe. Empiria. Teoria.

Desenho de Rachel Caiano (pormenor)

A lógica não induz um Acto, mas uma mera consequência. É por isso que a lógica pode induzir seguramente uma catástrofe: porque a natureza segue uma ordem. Os humanos, em muitas questões, podem escolher, ou têm a possibilidade de poder escolher, e é isso a ética. A natureza não tem ética, tem leis — pelo menos, é o que podemos supor.
Um a um, nesta primeira manhã em que Walser habita a sua nova casa, vão chegando homens com a missão de pequenos reparos. Pouco a pouco, de um modo quase imperceptível, mas no final do dia incontornável, a casa volta a ser um estaleiro. Em caso algum a racionalidade absoluta é posta em causa no seu todo. São sempre pequenos reparos, alguma coisa mínima que não está em ordem. Fissuras, fendas.
A materialidade das coisas é avessa à racionalidade absoluta? A empiria de uma casa, ainda que para se erguer enquanto casa necessite da racionalidade absoluta dos cálculos de engenharia, será em cada uma das suas minúsculas partes constituintes indomesticável à racionalidade absoluta? Assim parece. Versão comezinha do clássico “os trabalhos e os dias”, mas fazer permanecer um império não é diferente de fazer permanecer uma casa habitável: tudo exige manutenção, vigilância, reconstrução constante ainda que por ínfimas parcelas de cada vez. Como a pele do nosso corpo: em ciclos constantes de sete anos, ao que parece, renova-se completamente. Sem que disso dêmos conta. Ou quando damos, é já só na dimensão da catástrofe. A catástrofe é a aceleração e descontrole de uma fenda ou fissura que não foi remediada a tempo, ou que a auto-organização não conseguiu colmatar pelos seus próprios meios. A catástrofe é a lógica do material em liberdade.
É por isso que a racionalidade absoluta é sempre ilusória. A casa está cheia de imperfeições, como é próprio das casas. Se não hoje, amanhã será. É a lei do tempo. E o que vale para as casas, sobretudo quando são uma conquista da racionalidade absoluta no seio das florestas, é válido para as teorias. A teoria é uma morada para o sujeito. Um refúgio para o medo. Uma conquista da racionalidade absoluta no seio da relatividade dos valores — ou da floresta da multiplicidade das ideias, se se quiser. A teoria cria grandes expectativas, porque nos dá a ilusão de que com ela bem poderemos dispensar os incómodos do confronto com a realidade. Ou com o Outro. A realidade, tal como o Outro, tem essa coisa irritante de seguir os seus próprios desejos. E para cúmulo, quase nunca os desejos da realidade, ou do Outro, coincidem com os nossos desejos. Mas para os seres verdadeiramente teóricos, isso não chega a constituir um problema. Walser é um ser verdadeiramente teórico: não tem qualquer teoria, não vive separado da teoria como se a teoria fosse um produto do seu pensamento ou de qualquer outra sua qualidade ou atributo. Walser coincide com a teoria. Enfim, não completamente. Como já se disse, há um problema. Que ao longo da manhã se acrescenta de outros pequenos problemas.

0 comentários: