Escrevo sem romantismo, sem drama e sem consoloção

O meu discurso enquanto porta-voz do júri do Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB 2006 atribuído a Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, de Maria Gabriela Llansol.

Parei longos meses na fotografia que antecede o primeiro capítulo de Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004. É uma cena fulgor aberta no sorriso de Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim. Um sorriso andando, alheio à pose. Uma imagem que é já texto, não porque seja parte de qualquer álbum de memórias mas porque convoca o trajecto sem repouso de uma obra absolutamente singular.

Nos enredos desse andamento, os posfácios de Augusto Joaquim tornaram mais clara uma espécie de dupla vertente da escrita de Llansol. Primeiro, a recolha e transfiguração de uma experiência do comum, mas em que o vivido comparece sem os traços vulgares dos decalques realistas. Não se pretende um real reconhecível na sua legibilidade imediata, a falsidade de um conhecimento de apropriação, mas o encontro do diverso ou da diferença que cada ser ou situação comporta, aquilo que o vivo tem como potência de sentido e que é a tarefa e a aventura de existirmos. As exigências colocadas por esta aventura inscrevem-se numa demanda filosófica que parte do quadro emancipatório da modernidade mas que recusa a entropia eco-sociocultural da modernidade tardia. Daí uma segunda vertente, que convoca para um mesmo plano de imanência, e como forças que o intensificam e fazem devir, nomes da convulsão e da abertura da história, nomes como Müntzer, Bach, João da Cruz, Pessoa, mas também a ervilha, a árvore, o cão, qualquer um, qualquer coisa, o movimento de qualquer um e qualquer coisa em cada momento de permanência do universo.

Nos longos meses em que me demorei junto dessa fotografia, duas frases me atiraram para a leitura. Pertencem a um livro anterior, Inquérito às Quatro Confidências, e a sua força deriva da sua extrema exigência. "Escrevo sem romantismo, sem drama e sem consolação" (p. 69). Como pode sustentar-se uma escrita assim quando tem de enfrentar-se com o que este curso de silêncio virá a chamar de “a maior experiência de dor de uma mulher resistente” (p. 25)? E como pode uma tal experiência de dor deixar intacto esse outro pensamento de Inquérito às Quatro Confidências segundo o qual "o homem não dispõe de corpo para imaginar o universo, os fins últimos e as razões primeiras, mas (…) está aqui, // caminhando no há que há" (p. 60)?
Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004 é um romance que, perante si mesmo, se coloca numa postura particularmente exigente face à responsabilidade de um percurso anterior de descoberta. É como que um teste involuntário, mas em todo o caso um teste, e radical, acerca das possibilidades de a escrita poder de facto colher “o que da dor advém como beleza” (p. 186). Ou se quisermos colocar as coisas num outro plano, é um teste acerca das possibilidades de a escrita poder continuar a ser vida fazendo-se mesmo “em certas circunstâncias de terrível abandono ao irremediável” (p. 55).
O que desde logo se torna evidente ao lermos este Curso é que ele é a longa resposta a um golpe, a uma dor enunciada de formas diversas mas remetendo todas para um mesmo acontecimento, que é de ordem pessoal mas também textual: trata-se agora de “compor um texto sem a tua presença ao lado” (p. 16). Mas pessoa singular e texto convergem de forma não menos evidente na responsabilidade e autoridade de uma bio-grafia. Como sempre, aliás, na obra de Llansol, e sempre, também, segundo o mesmo princípio: “falo indirectamente do que seria menos inteligível se falasse directamente” (p. 23).
Sem qualquer pathos sentimental ou pretensão de transcendência, Amigo e Amiga cria a vida pós-dor. Há um longo confronto com aquilo que nos processos de luto, e na própria existência humana enquanto luto, Deleuze chamou os “afectos tristes”. Mas a dimensão narcísica do sentimento da ofensa e da revolta sem projecto de devir cedem aos ensinamentos do Curso, à construção das “imagens curativas”, que não são cristalizações de um processo defensivo mas energia que permite “permanecer no inseguro” (p. 14), que é outra forma de dizer o “caminhar no há que há”. As múltiplas figuras deste Curso, algumas vindas de romances anteriores, constroem a aliança entre o que perdura, o que muda subitamente de sentido e o que emerge para a restante vida. A todas acolhe o silêncio, aquilo que preserva o texto e o existir da banalidade sufocante, aquilo que reconduz a ética da literatura — ou de qualquer outra tarefa — ao seu lugar de invenção de uma realidade que se mede apenas pela capacidade de devirmos dentro dela aquilo que de nós próprios desconhecíamos. O que também se pode dizer de um outro modo: “Que este seja o jardim que a ausência permite” (p. 177).

Agora estou parado há longos dias sobre o livro fechado. Começo a perceber que há alguma coisa que devia começar a ser dita, mas não tenho ainda as palavras. Qualquer coisa que começasse a dizer que Amigo e Amiga é um romance de amor tal como o amor pode ser vivido por humanos que escrevem e lêem a vida assim. Segundo um curso de silêncio que, de alguma forma, permitiu toda a obra anterior de Llansol. Mas não tenho ainda as palavras. Não tenho.

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