Os que não mudaram # 2

- É grrrave, extrrremamente grrrave, como te tinha dito!
- Calma, Luís, calma. Conta lá tudo desde o princípio, estou aqui para te ouvir. Mas primeiro respira. Vá, respira...
- Não há nada para respirar. Se soubesse não me tinha metido nisto. Em menos de dez minutos recebi três telefonemas. Que raio! É grrrave!
- Insultos?
- Não, pedidos em voz doce. Extremamente amáveis, persuasivos. Enfim, cheios de razão. É muito grrrave.
- E pode-se saber quem te telefonou assim tão cheio de razão?
- Primeiro foi a Margarida Rebelo Pinto. Uma doçura, uma gentileza, nada do que por aí se diz ou seria de esperar de quem tem nome próprio como marca registada.
- E que queria a gentil dama?
- Queixar-se. E com toda a razão, por isso é que é grrrave! Primeiro do Eduardo. Não há direito, ter escolhido o Dinis Machado em vez dela, quando salta à vista que ela é muito pior, mas de longe muito pior. E depois do Francisco e do Rui. Não se admite, realmente! Verdadeiros intelectuais não podem apontar como livros que não mudaram nada na sua vida obras que pertencem aos vários cânones. É um bocadinho snob, dizia ela. Fez-me tanta pena, estava tão desconsolada, coitada!
- Mas isto não é uma lista dos piores, é uma coisa mais subjectiva, mais... não sei bem, mais...
- Mais grrrave! Mais grrrave... Depois ligou-me o Paulo Coelho, uma simpatia também, um verdadeiro gentleman. E o ponto é este: se não são os verdadeiros intelectuais a dizerem que os seus livros não mudaram nada nas suas vidas, como é que as pessoas comuns irão perceber que os livros deles é que são os indicados para elas?
- Hum... Mas por outro lado, repara, quase de certeza que nem o Eduardo, o Francisco ou o Rui alguma vez leram a Margarida Rebelo Pinto ou o Paulo Coelho. Em bom rigor ético não podiam indicá-los, certo? A questão do snobismo parece-me mal colocada.
- Pois, talvez, mas olha que não sei. Estavam ambos tão tristes, coitados. (pausa) E agora diz-me cá: e aquela quantidade de livros que eles lerem e que já nem se lembram que leram? Não devo ser o único a quem isso acontece, pois não? Não achas que os dez livros deviam sair daí? Não estás a ver aqui a piscadela de olho?
- A piscadela de olho?
- Tipo: todos sabemos do grande cânone, mas de entre isto, a minha ideia de literatura ou de vida mudada pela literatura não passa por este e por este e por este, e vão os dez de enfiada. Mas o curioso é que eles se lembram, percebes? Lembram-se desses e não se lembram dos outros que esqueceram completamente. Lembram-se, ora aí está!
- Então achas que isto é mais tipo: estou a gostar muito deste tempo de infelicidade contigo?
- Aproxima-se mais, aproxima-se mais! E também dessa outra coisa que a gente sabe mas esquece muito rapidamente: um não vai sem o outro, um suscita a oposição do outro. Um está dentro do outro e o outro está dentro do um.
- Bem... (risos)
- Mas é simples e nada grrrave (risos). A sério. Olha outro exemplo: se leres o Hemingway de uma certa maneira, vês que no fundo do mar dele há o lodaçal do Faulkner. E se leres o Faulkner de uma certa maneira, vês que no fundo do mar dele há a praia cristalina do Hemingway.
- Hum, não estou lá muito convencida. E que é isso de ler de uma certa maneira? Que maneira é essa?
- É aquela maneira em que tu lês um sabendo que o outro existe. E sabendo que para veres o que Faulkner vê não podes ver ao mesmo tempo o que Hemingway vê.
- Condição finita do olhar, é isso?
- E necessidade de escolheres uma certa forma de olhar. E também de não colocares os olhares diferentes a uma distância incomensurável, em que nada pudesses dizer deles, nem sequer que não te mudaram a vida.
- O conforto dos estranhos! Essas listas são listas do conforto dos estranhos!
- Talvez, Leitora, talvez...
- E então, qual é o teu olhar? Faulkner ou Hemingway?
- Não é bem assim...(risos) Passo respeitosamente ao largo de Por quem os sinos dobram ou de O som e a fúria, mas recomeço sempre O velho e o mar e Na tua morte. Coisas...
- Mas podes explicar, não?
- Justamente, haveria que explicar, só isso é que tem interesse, a explicação. Mas primeiro haveria que criar as condições para que a explicação não fosse pessoal nem entendida como pessoal.
- Esse pessoal dito também de uma certa maneira, certo?
- Pois...
(pausa)
- E o terceiro telefonema, de quem foi?
- Não posso dizer, prometi que não dizia... Até porque nunca incluiria essa pessoa e livro na minha lista, embora perceba as suas razões e as vantagens da publicidade negativa.
- Oh, vive-se bem disso, da publicidade negativa.
- Mas não da minha publicidade negativa, como lhe expliquei e se percebe bem. Portanto...
- Portanto, se bem entendo, vais mesmo fazer a lista...
- Calma, ainda estamos no segundo considerando. Há mais problemas.
- Grrraves, já sei... (risos)

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