Os que não mudaram # 4



- E tu concordas com o Vasco M. Barreto via Francisco?
- No primeiro momento sim. A morte, o azar, o acidente, isso muda a vida de uma pessoa. Face a isso, um livro parece não ter a mesma força. A não ser um livro das religiões, ou acrescentaria eu, um livro das políticas entendidas como religiões. Para acrescentar também que nesses casos o livro é sempre o prolongamento do espírito de grupo, e portanto não é bem ele que muda a vida. Mas enfim, aceitemos o argumento tal qual.
- Mas, Luís, o primeiro romance europeu, o D. Quixote, é sobre uma personagem cuja vida foi mudada pelos livros que leu. Mal mudada, ao que parece, mas mudada.
- Outros tempos, Leitora, outros tempos... Há mais exemplos, a Madame Bovary é um deles, são tudo exemplos de livros que falam do efeito pernicioso dos livros, se bem que a leitura possa ser bem mais complexa que isso, mas eram outros tempos, definitivamente outros tempos.
- Quanto a isso concedo.
- E não esquecer também que os livros sempre acharam muito por bem falar de outros livros, parodiar outros livros, enfim, ocupação do tempo.
- Mas voltando ao Vasco M. Barreto...
- Sim, voltando, num segundo momento discordo completamente. Mas é num segundo momento, depois do primeiro momento em que concordo, e é preciso sublinhar isto muito bem.
- Estás a ficar demasiado sério (risos).
- É do calor (risos).
- Do calor?
- Eu depois explico.
- Ok. Dizias então...
- Que num segundo momento discordo completamente. A morte, o azar, o acidente, nada disso muda a nossa vida.
- Porque a nossa vida nunca muda?
- É uma hipótese que merecia ser explorada... Mas não era nisso que pensava. Quando a gente diz que um livro mudou a nossa vida, dizemos sempre o sentido em que ela mudou, e esse sentido é coextensivo ao sentido do livro, ou àquilo que dizemos ser o sentido proposto pelo livro. A morte de alguém é um facto. Apenas um facto. Necessita interpretação, e é essa interpretação que pode mudar a nossa vida. E é bem provável que nessa interpretação haja a muleta de muitos livros, por exemplo...
- Mas um livro não precisa também de interpretação?
- Pois, pois... Os limites da interpretação, claro. Se a coisa está lá, ou se está toda em nós. Mas está lá alguma coisa no livro. É do senso comum. Na morte está o facto, o resto é connosco. (pausa) Este calor... este calor...
- Entaramela a lista, não é?..
- Entaramela?! (risos) Ora aí está, Leitora, uma palavra que bem pode dar conta de alguma mudança na minha vida! (risos)
- E portanto, da lista?..
- Há mais problemas, há mais problemas. Há sempre mais problemas que soluções... (risos)

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