Onde andará?

Rememorar. Lê-se Lavagante relendo Cardoso Pires. Não há nada de estranho nisso, nem este tipo de textos, mais ou menos inéditos, pretendem verdadeiramente outra coisa que isso. Rememorar é também da dimensão da melancolia. É muito difícil não ler aqui o esboço de um modo narrativo que se tornaria emblemático logo de seguida, em O Delfim: distância, deambulação, conhecimento por interposta pessoa, suspensão do fim. Ou não pensar que se assiste aqui ao nascimento desse motivo descritivo tão peculiar em Cardoso Pires (e tão auto-referencial) que são as mãos, essas mesmas que em Alexandra Alpha terão um papel decisivo. É por isso que rememorar é também da dimensão da melancolia: surpreende-se a origem quando ela já nada pode explicar, quando tudo está consumado e nada mais há senão reler.
E contudo — contudo Lavagante deixa-me a viva sensação de um romance que Cardoso Pires não escreveu. Reformulo. Lavagante mostra (lateralmente? no cerne?) um motivo romanesco que um autor como Cardoso Pires não deixaria escapar (suposição temerária, já se vê). Aquela Cecília que passa dos braços de um resistente ao regime para os braços de um pide (passa? ou toma nos seus braços? a política não lhe interessa, diz ela); aquela Cecília que sorri enigmaticamente durante o confronto entre os dois homens, como que equidistante do amante e do perseguidor do amante; aquela Cecília que conhece e reivindica conhecer pela sua experiência erótica (on devient femme, on devient femme..., diz ela) — é uma personagem que transporta consigo todo o enigma que um romance poderia ir escavando. E a força desse enigma!.. É também isto a melancolia, um tipo ir virando as páginas e cogitar com o seu cigarro & whisky (que eu não fumo nem bebo, mas isso são outros vícios): onde andará o romance que aqui falta?

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