O cálculo exacto

João Gonçalves e o seu comentário a uma notícia de O Sol:
No meio do esterco, um Homem. «Ramalho Eanes prescindiu dos retroactivos a que tinha direito relativos à reforma como general, que nunca recebeu. O Governo diz ter sondado o ex-Presidente, que não aceitou auferir essa quantia (a qual ascenderia a mais de um milhão de euros). A reforma só começou a ser paga em Julho, mas sem qualquer indemnização relativa ao passado.»

O que me incomoda nisto? O panegírico a uma atitude que, do ponto de vista político — e repito, político — tem tanto de inconsequente quanto de demagógico e covarde.

1. Se Ramalho Eanes fosse, por princípio político, contra a acumulação de pensões, devia dizê-lo de forma clara, devia ter recebido os retroactivos a que legalmente tinha direito e doá-los publicamente às instituições que bem entendesse, e deveria fazer o mesmo com a pensão que vai auferir em cada mês — isso seria uma atitude política e a defesa de princípios em que acredita.

2. Ora, Ramalho Eanes parece que não é contra a acumulação de pensões, ou se é não o disse, ou se o disse a notícia não dá conta disso. Obviamente, Ramalho Eanes tem todo o direito de não ser contra a acumulação de pensões.

3. Temos então que Ramalho Eanes começou a receber a pensão desde Julho mas não aceitou receber os retroactivos a que tinha direito — mais de um milhão de euros.

4. Eu percebo pouco de leis, mas pensava que os salários e as pensões eram um direito irrenunciável. Pelos vistos não. Pelos vistos é possível o Governo sondar um cidadão: ó se faz favor, V. Exc. sempre quer receber o salário ou a pensão que a lei obriga que se lhe pague?

5. Mas claro, eu percebo pouco de leis. Politicamente, porém, penso que não há que enganar: a atitude supostamente digna e honrada de Ramalho Eanes significa, na prática, que um cidadão que ocupa o exigente cargo simbólico de ex-Presidente da República (e que recebe uma pensão politicamente justa por isso) deixa entender que não devemos exigir ao Estado que ele cumpra a Lei, que lhe podemos perdoar uma dívida a bem da Nação ou qualquer coisa parecida.

6. Politicamente, isto é confundir desapego pessoal com relações institucionais e jurídicas. Se Ramalho Eanes entende que o momento de crise manda que os cidadãos, na medida das suas possibilidades, financiem supletivamente o Estado, deve tornar essa posição clara. Ou seja, devia receber o milhão de euros, tornando claro que o Estado de Direito é para levar a sério, e depois doar o milhão de euros ao Estado, tomando a sua posição política.

7. O problema deve estar mesmo no milhão de euros. Porque com as manchetes obscenamente populistas que denunciam as “reformas escandalosas” de funcionários públicos como professores catedráticos, juízes do supremo e demais quadros superiores, o milhão de euros ia de certeza parar à primeira página.

8. Eanes não quis enfrentar o populismo. Preferiu que se noticiasse a sua fuga política, mas vendeu-a sob a forma do lance demagógico da honra e da dignidade. Há sempre quem compre estas virtudes e relembre velhas austeridades salazaristas — mas não é preciso muito para perceber aqui a outra face da moeda populista.

9. Um milhão de euros de retroactivos devidos é sem dúvida dinheiro. Mas quando daqui por alguns anos — e humanamente só posso desejar longevidade ao Senhor General —, a soma mensal da sua pensão perfizer uma quantia semelhante, não haverá ninguém a lembrar-se de fazer as contas. Eanes sabe isto. A sua suposta inocência política tem a dimensão deste cálculo exacto, que é complexo salazarista de os outros saberem que temos dinheiro misturado com a perfídia pequena de o querer realmente, mas em segredo.

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