Pequena teoria da literatura para uso doméstico # 13

A bíblia num quarto de hotel de luxo? Aproveita sempre a um escritor, não há como negá-lo. Aos outros, é conforme. Mas a um escritor... ah, a um escritor aproveita sempre. Mas seriam contos largos, por sobre serem conhecidos (embora às vezes até pareça que não). Adiante.
O que fazia falta juntamente com a bíblia, sobretudo em quartos destinados a escritores, seriam os contos de Augusto Monterroso. Não pensem que os estou a equivaler à bíblia, nem nada que se pareça, porque afinal nada se equivale à bíblia. Mas há um, sim, há um que embora não se equivalendo à bíblia, devia estar ao pé dela nos quartos para escritores. Devia até — como dizê-lo? — poder incorporar-se na própria bíblia, de modo a fazê-la uma bíblia especialmente destinada (ou será adequada?) a escritores. Por mim, apareceria no génesis, depois de deus ter criado tudo, excepto adão e eva. Acho que era aí que ficaria bem, antes da serpente, da tentação (que por acaso é uma história muito mal contada, mas enfim) e dessa trapalhada toda. E não me venham com questões de incongruência, porque o génesis goza desde o princípio de ilimitadas liberdades poéticas.
Eis então:

O Macaco pensa nesse tema
"Porque será tão atraente - pensava o Macaco noutra ocasião, quando lhe deu para a literatura - e ao mesmo tempo tão desinteressante esse tema do escritor que não escreve, ou o do que passa a vida a preparar-se para criar uma obra-prima e que pouco a pouco se vai transformando num mero leitor mecânico de livros cada vez mais importantes, mas que na realidade não lhe interessam, ou o já conhecido (o mais universal) do escritor que quando aperfeiçoa um estilo descobre que não tem nada a dizer, ou o daqueIe que quanto mais inteligente é, menos escreve, enquanto à sua volta outros talvez não tão inteligentes quanto ele e os quais ele conhece e de alguma forma despreza publicam obras que toda a gente comenta e que de facto às vezes até são boas, ou o do que de alguma forma conseguiu fama de inteligente e se tortura a pensar que os seus amigos esperam dele que escreva alguma coisa, e fá-Io, tendo como único resultado os seus amigos começarem a suspeitar da sua inteligência, o que o leva ao suicídio de vez em quando, ou o do parvo que se crê inteligente e escreve coisas tão inteligentes que os inteligentes ficam admirados, ou o do que nem é inteligente nem parvo nem escreve nem ninguém o conhece nem existe nem nada?"
Augusto Monterroso. A ovelha negra e outras fábulas.
Trad. de Ana Bela Almeida. Coimbra: Angelus Novus. 2008. p. 77.

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