Correspondências

Faculdade de Letras de Lisboa, 3ª feira, 5 de Maio, Anfiteatro 3, das 18.15h às 19.45h, falarei das cartas de guerra de António Lobo Antunes.

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Cartas de amor, portanto. Não só, mas sobretudo, e envolvendo tudo o resto de que também se fala — mas antes de mais, cartas de amor. Isto para dizer que o aviso pessoano é aqui imperativo: todas as cartas de amor são ridículas, mas afinal ridículo é quem nunca escreveu cartas de amor.

Cartas de amor que são, vou dizê-lo assim, legítima defesa contra a guerra. A mais íntima, mais nua, mais frágil legítima defesa contra a guerra.
Cartas de amor que são uma forma de religião sem deus, como de alguma forma ALA o deixa entender, que implicam igualmente recolhimento, ritual, ideia de este mundo poder ser em si mesmo um outro mundo.

Neste sentido, “o resto é nosso” com que as filhas terminam o prefácio permite uma outra leitura para além daquela mais óbvia, e justa na sua referencialidade, que é o de delicadamente afirmar o direito da sua privacidade se manter privada.

Neste outro sentido, “o resto é nosso” dirá aquela parte em que o entendimento do amor dos outros é feito a partir do entendimento do amor que nós próprios alguma vez sentimos, e de como isso faz sempre desequilibrar o que temos para dizer sobre todas as coisas.
Porque as coisas à luz do amor são um mundo ligeiramente diferente sem deixarem de ser este mundo, são precisamente um resto que é nosso, a legítima defesa contra tudo aquilo de que somos expropriados (e somos expropriados pela nossa condição mortal e pela muita demência do mundo que para nós próprios criamos ou nos criaram — o que numa guerra se dá a ver numa dimensão de escândalo).

Mas “o resto é nosso” não é uma posse, é um trânsito d’este viver aqui neste papel descripto. Sabemos bem que nenhuma descrição satura ou se substitui à realidade, antes a liberta para que fora do papel continue a haver vida e a possamos nós viver.
“O resto é nosso” é uma injunção à leitura não possessiva, não judicativa no sentido do rastrear do ridículo, é uma injunção a escutar o pulsar de vida que existe quando alguém confessa que “todo eu sou lugares comuns, porque a infelicidade e a solidão não são muito originais nem muito criadoras... Olho para o papel e só escrevo parvoíces tristes.”

O resto que é nosso começa logo aqui, no lugar comum e na parvoíce triste, e dirige-se a essa vontade de vida que não precisa de ser descripta neste papel aqui, porque é apenas vida anónima, humana, é simplesmente o resto que é nosso.

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