Ler

Vasco M. Barreto: “Se não discordo de Luís Mourão quando ele escreve que «toda a leitura que valha a pena será sobretudo uma relação impessoal com uma voz que passa através daquilo a que chamamos autor», a verdade é que não conheço ninguém capaz de ignorar o criador da obra, sobretudo no caso de autores contemporâneos.” [entrada de Agosto 22, “Enquanto a arte não é gerada por computador...” — deve ser azelhice minha, mas não descobri forma de linkar directamente para o post].
Absolutamente de acordo. Como aliás com o resto do post, nas suas intenções e nas suas ressalvas. Gostava apenas de introduzir uma nuance, ou melhor dito, gostava de explorar as consequências da tensão que se abre entre a leitura como relação impessoal e o facto de não sermos capazes (eu até diria, de não devermos ser capazes) de ignorar o criador da obra. De uma forma simples mas que pode ter vários caminhos, não ignorar o criador da obra só nos interessa aqui se se constituir como uma forma de ler a obra, ou de interpretá-la. Caso comum: a entrevista com um autor acerca da sua obra, em que ele diz como quer ser lido ou o que quis fazer. Não se deve descartar sem mais esta interpretação. Simplesmente, deve-se testá-la como se testa qualquer interpretação: lendo por nossa própria conta e risco. Quase sempre esse teste nos dá uma imagem de obra diferente daquela que o autor tem, mas dá-nos também, interpretando a interpretação do autor, uma certa imagem de época, com o lugar mediático que nela ocupa o autor e a sua aura no star system, etc. Exemplo banal: nas entrevistas, Saramago é assertivo e toma o lugar do sage. É o que o star system pede que um escritor faça. Ao actor ou ao músico, basta-lhe aparecer; e para um estatuto mais intelectual, defender uma causa. O escritor tem de dizer qualquer coisa, porque a imagem de literatura e, por extensão, de intelectual, é ainda a do século XIX, em que se supunha que o autor era aquele que tinha qualquer coisa de diferente para dizer, e que era capaz de o dizer, fosse na obra, fosse no panfleto, fosse na sua intervenção pública. Voltando a Saramago: uma das linhas de leitura mais comuns da sua obra apontam um narrador não assertivo, que não toma o lugar do sage mas da ironia que instabiliza o saber. Esta tensão entre a leitura da obra e a presença paralela do criador da obra como seu intérprete pode ser muito elucidativa de certos aspectos da contemporaneidade: por exemplo (e era um exemplo que nos poderia levar muito longe), dificilmente uma obra, hoje, consegue ser, por si só, escandalosa; mas a um autor, é extremamente fácil produzir umas quantas afirmações bombásticas. A elasticidade de sentido que estamos dispostos a conceder ao mundo do pensamento parece esfumar-se num ápice quando “regressamos” ao mundo real, em que o dizer público do escritor entra no mesmo circuito que o dizer público dos políticos e das gentes anónimas; o mundo da obra é o de pensar possibilidades, o mundo real parece ser o de confrontar individualidades. Em qualquer caso, a tensão e a sua produtividade vem sempre de nunca abandonarmos a tentativa realmente impossível da leitura como relação impessoal com uma obra. Quer dizer, é só vista desse lado que a impossibilidade de ignorar o criador da obra se torna um facto relevante.

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