Epifanias # 19 [lugares improváveis]

Lembro-me bem da infância que não tive. Esse esconderijo aí: o dos palavrões que não havia em casa e que treinávamos para a guerra de todos os dias; o dos cigarros mata-ratos; o que era forte apache, castelo de qualquer era remota, ou cidade bombardeada dos livros do major alvega; o dos cigarros sérios, que tínhamos que comprar a meias; o de um casal de namorados, numa aflição de roupas que nada deixava ver; o que foi vendido ao Esteves da Tabacaria — juro! —, que o comprou com o dinheiro das franças e deu a primeira casa emigrante do lugar.
Lembro-me bem da infância que não tive. Estúpida como não nascermos ensinados, miserável pela pobreza que havia até nos que eram ricos, mentirosa porque nos ensinou que éramos desde sempre assim.
Lembro-me de já ter escrito isto e me sentir inútil nessas palavras. Não injusto, inútil. Porque mesmo a infância que tive (mas não foi assim tão diferente, nunca o é) não me livra da infância que não tive, mas que a maioria teve. Ou que como país tivemos. Esta coisa de termos nascido num tempo e num lugar, e não sermos nós o nosso tempo e o nosso lugar — mas também, se o pudéssemos ser, seríamos mais sós que a pior e mais atroz solidão.
Toda a existência é lugar improvável. Por mim, deixem apenas a árvore. Mas nem disso faço questão. E se a deixarem, não pensem que me deixam o passado. De qualquer modo, eu parto.

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