O Senhor Walser # 4. Reversibilidade. Racionalidade absoluta. Outro.

Desenho de Rachel Caiano

A questão, na verdade, é simples. Se o contentamento é o conector entre racionalidade absoluta e beijo apaixonado, isto só pode querer dizer que há paixão na racionalidade absoluta e racionalidade no beijo apaixonado. Se formos um pouco além do aspecto trivial deste processo de reversibilidade (porque é claro que não se chega ao absoluto da racionalidade a não ser que se seja movido pela paixão desse absoluto, como não se chega ao beijo apaixonado sem a racionalidade ou a reflexividade da arte de seduzir e de beijar), teremos talvez de admitir que ele comporta uma certa dose de escândalo.
Ocidentalmente falando, a conexão racionalidade absoluta, contentamento, beijo apaixonado, é uma conexão escandalosamente feliz, se pensarmos que a determinante do amor-paixão no ocidente é a tragédia. Claro que poderíamos admitir um tal escândalo na condição de ele ser apenas o primeiro acto de uma peça que caminhará para a tragédia. E de facto, de uma certa maneira, as coisas irão acabar mal para Walser. Mas não completamente. Também de uma certa maneira, até se pode dizer que as coisas estarão longe de acabar mal para Walser. Se é porque Walser é um optimista ingénuo ou um ingénuo ignorante das consequências da vida prática, ou nem uma coisa nem outra, isso veremos a seu tempo. De qualquer modo, acabando as coisas mal ou nem tanto, não há nunca da parte de Walser qualquer vislumbre de que as suas expectativas de beijos apaixonados comportem algo de transgressor ou sequer de problemático. As suas expectativas estão na mesma linha do seu contentamento: são sem sombra, inteiramente afirmativas, desconhecedoras do atrito. Como Zizek poderia dizer, as suas expectativas dessexualizam a matéria propriamente sexual contida no desejo de beijos apaixonados.
A questão, na verdade, é simples. Quer eu, enquanto professor a quem acontece por vezes experimentar a alegria da racionalidade absoluta, quer Walser, que habita numa casa que é uma conquista da racionalidade absoluta, ambos somos tomados pela expectativa dos beijos apaixonados. Nesta expectativa, porém, não há verdadeiro lugar para o Outro — para a sua resistência, para as suas próprias expectativas. A jouissance, na verdade, é vazia, quer dizer, comércio com o vazio, ou fetiche da mercadoria (as expectativas são a mercadoria do sexo, tanto mais altas quanto menos performativas). Walser, tudo indica, não está preparado para a performance. Quanto a mim, bastará dizer que as aulas acabam, e que há mais vida para além das aulas — é também essa uma diferença importante entre as aulas e a casa. Ao invés das aulas, a casa pode ser co-extensiva ao mundo — quando se diz “a casa e o mundo”, por exemplo, diz-se mais essa co-extensividade do que o hiato, mesmo quando parece estar-se a dizer exactamente o contrário. Para Walser, nem se chega a colocar a questão de a casa ser co-extensiva ao mundo. Tudo o que do mundo interessa a Walser, há-de vir para dentro de casa: a racionalidade absoluta incorpora tudo. Walser nunca irá ao bairro, mas tem a expectativa de que alguém ou alguma coisa do bairro virá até ele. Walser espera pelo outro, mas no seu espaço. Habitando um efeito da racionalidade absoluta, não incorre no perigo de o Outro a subverter. Em consequência, não incorre igualmente no perigo de deixar que o Outro saiba dele aquilo que nem ele próprio sabe. Este perigo tem um nome, que de tão gasto já quase nada significa. Mas enunciemo-lo, apesar de tudo: paixão. E abramos aqui um parêntesis provocatório, uma curta deriva proporcionada por Zizek, uma professora de trinta e seis anos e um seu aluno de catorze.

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