IVG

Parece-me que o debate de ontem, no Prós e Contras, mostrou que a estratégia política maioritariamente seguida pelo Sim provou estar certa. O enfoque na pena, na humilhação das mulheres, na possibilidade da prisão, colheu. Dir-se-á que a pergunta do referendo é sobre isso mesmo, e é. Mas o debate poderia ser também sobre a autonomia individual das mulheres, e foi-o menos. Mas é precisamente, tudo o indica, por ser menos sobre isso, isto é, por os argumentos do Sim terem evitado as questões mais “radicais”, que essa autonomia vai ser concedida juntamente com a despenalização. Poderíamos dizer que são misteriosos os caminhos da política, se não estivéssemos fartos de saber que não há mistério nenhum nisto.

Do debate de ontem retiro quatro notas:

1. Portugal mudou. Numa intervenção telegráfica, o obstetra Miguel Oliveira da Silva fez notar ironicamente que de repente se tinha formado um enorme consenso sobre a necessidade do planeamento familiar e da contracepção, e que já não se ouviam as vozes de outros anos condenando tudo isso e mais ainda os dispositivos intra-uterinos e a pílula do dia seguinte. Sabemos bem quem eram os destinatários da ironia de Miguel Oliveira da Silva. Eles existem ainda. Mas o seu desaparecimento da cena pública dá a medida de quanto as coisas mudaram. Esse foi o trabalho do Estado: discreto, nem sempre eficiente, mas apesar de tudo efectivo. Um dia ainda se haverá de contar a história dessa heroicidade silenciosa que foi a de enfermeiras e médicas do planeamento familiar em meios religiosa e culturalmente hostis.

2. A proposta do Não de uma suspensão da pena caso ganhem foi bem desmontada como contrariando o próprio dispositivo do referendo, se vinculativo, como absurdo jurídico e como incapaz de chegar às mulheres a quem se destina. Mas o facto de ela ter surgido, e sem ser necessário descontar o seu oportunismo político, é também uma prova irrefutável de que a situação de criminalização da mulher é doravante insustentável. Também aqui, Portugal mudou.

3. Maria do Rosário Carneiro esteve bem na defesa da sua posição. Mas alguém do Sim lhe deveria ter repetido o discurso de Vital Moreira: a vitória do Sim não a impedirá de continuar a pesar o conflito de interesses entre mulher e feto da maneira que o faz, dando preponderância ao feto. Maria do Rosário Carneiro poderá continuar a agir de acordo com a sua consciência. Mas a vitória do Não impedirá quem pesa esse conflito de maneira diferente de agir de acordo com a sua consciência. E Maria do Rosário Carneiro foi democrática ao reconhecer a legitimidade de outros pesarem esse conflito de maneira diversa.

4. Alguém do Sim, lá pelos meandros do debate, deveria ter levantado a questão de o aborto ser também um último recurso contra uma natureza que é cega e implacável. Não há abortos apenas de jovens imaturas e desprevenidas e de mulheres pobres e mal informadas. Há aborto também de mulheres em quem pontualmente a contracepção falhou, porque estas coisas não são de todo infalíveis. Essa percentagem não é negligenciável. As “clínicas” que de portas mais ou menos abertas, de uma forma sanitária mas relativamente cara, fazem entre nós a IVG, têm por clientes essas mulheres: mulheres responsáveis, autónomas, esmagadoramente acompanhadas pelos maridos ou companheiros, a quem a natureza traiu por culpa que não lhes é imputável. A condição humana tem também estes contornos. É certo que o referendo não é para estas mulheres ou para estes casais, que têm recursos e informação para contornar a lei existente, mas é também para as razões destas mulheres e desses casais.

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