O silêncio dos livros: nota 2



“Por essência, o escrito é normativo. É «prescritivo», termo cuja riqueza conotativa e semântica exige uma atenção especial. «Prescrever» significa «dar ordem de», ou seja, «antecipar-se» e «circunscrever a» (mais uma locução que fala por si) um domínio do comportamento, ou da interpretação do consenso intelectual ou social. As palavras «inscrição», «script», ou «escriba» e o muitíssimo produtivo campo semântico a que pertencem associam íntima e inevitavelmente o acto de escrever a práticas de governação.” (p. 13)

Genericamente, é verdade. E contudo, é demasiado genérico para que a verdade que aí há nos possa servir de muito. É um começo, mas que de alguma maneira terá de continuar contra si próprio para dizer alguma coisa de mais fundo. Ou postas as coisas de uma outra forma: o grande problema de Steiner, o seu recalcado absoluto, é Derrida e o chamado desconstrucionismo. Porque seria preciso distinguir a escrita como prática de governação da escrita como prática de resistência. Distinguindo depois o que na escrita como prática de governação se pode tornar resistência involuntária à governabilidade, bem assim como o que na escrita como prática de resistência se pode tornar desejo involuntário ou até assumido de governação. E continuar distinguindo entre a escrita como prática de governação da comunidade e a escrita como prática de auto-governação ou cuidado de si. Distinguindo depois como cada prática encontra nos limites com a que a si mesma se auto-posiciona o que a faz deslizar para outras posições. É toda uma história da política, da literatura e das formas sociais e discursivas de compreensão do mundo que aqui está em jogo. Steiner parte sempre do(s) cânone(s). Sabe bem que o cânone é um constructo, o resultado provisório de um “combate” por definição interminável, mas não se enreda nisso. A elegância e clareza do seu pensamento é o da ementa sobre a mesa, pronta a degustar. Filósofos na cozinha ou nos campos de produção não é a sua especialidade. O bife é bom, convenhamos. Mas para o pensamento, não basta comê-lo, há também que pensá-lo.

0 comentários: