Senhor Fantasma # 2. Cavalo

Senhor Fantasma é aquele momento da obra em que o poeta se tem de defender da sua imagem pública de cronista e diarista-bloguista falsamente confessional. Porque se é jogo aceitável, até porque facilmente reconduzível aos terrenos da ficcionalidade, que crónica e diário inventem um sujeito mais interessante e cheio de peripécias do que aquilo que a vida própria de cada um tem por vezes para nos oferecer, quando se chega à poesia o caso muda de figura. Não devia mudar, mas muda. É o peso da tradição, que sempre pressupôs a poesia sub specie lírica, e a lírica como efusão mais ou menos contida de um sujeito.
Certo que as coisas sempre foram mais complicadas que isso. Aliás, para quem sabe de poesia, as coisas nunca foram senão mais complicadas que isso. Mas adiante. Senhor fantasma, desde o título, corta quer com o suposto sujeito lírico, quer com uma deriva ficcional de que ele se pudesse revestir. Mesmo se alguns poemas, aparecidos inicialmente em Estado Civil, parecem manter intacto o jogo de falsa confessionalidade que caracteriza a escrita do blog de Pedro Mexia, a sua inserção no livro altera-lhes por completo o tom. O que no blog é tensão entre um conhecimento expresso e o seu reenvio labiríntico para um sujeito suposto existir, é aqui meditação de alcance impessoal, não porque pretenda universalidade mas porque não tem um sujeito de aplicação. Quando qualquer coisa parecida com um sujeito se tenta aplicar a qualquer coisa parecida com aplicação do conhecimento, a lucidez — e a lucidez é realmente o fantasma do conhecimento, o que o retarda e difere — , a lucidez manda dizer o seguinte:
“E se nada posso dizer, se não posso / estudar, nem prever, nem pressentir, / ainda assim conheço, como um cavalo / que levanta as patas e põe em marcha / o que não pode ser dito.” (p. 58).
Entre os sapatos sensatamente arrumados debaixo da cama e um cavalo que põe em marcha, talvez tenhamos que reformular um pouco o “problema” do programa poético: é um problema do domínio da tradução, certo, mas sobretudo naquela vertente em que um problema de tradução é um problema de transporte. Não a questão de saber identidades e diferenças entre A e B, mas de saber como ir de A para B.

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