Aula teórico-prática



Sim, estou a ler devagar, como se impõe. Tenho coisas a dizer, mas não tem de ser necessariamente aqui. Nem aliás em lado nenhum. Esse é o grau da minha liberdade, tenho-o compreendido nos últimos tempos. Mas não convém misturar as histórias, se bem que isso também não tenha importância por aí além. Entremos em matéria.
A páginas noventa e sete, um micro-conto intitulado “Maçã”. A gente lembra logo o conto inicial: “Literatura. Uma macieira que dá laranjas.” Re-começo, agora sem desvios? Pouco provável, ainda que já se tenha visto. Mas haverá sequer alguma ligação com o primeiro micro-conto? Virá esta maçã da primeira macieira, depois de ela ter dado laranjas? As perguntas poderiam continuar pachorrentemente especulativas, não fosse o livro estar ali aberto e haver conto (micro) por debaixo do micro-título. Nesta luta entre pensar/especular e ler, ler acaba sempre por levar vantagem — o que não é grave, apenas natural. Mais do que isso: necessário. Para depois se poder re-ler, que é uma forma já programática (ou será apenas consentida?) de pensar/especular. Portanto, “Maçã”.
A coisa é simples. “Um homem decide plantar-se no meio dos campos à espera de dar fruto”. Passados tempos, “uma prodigiosa laranja irrompe de um dos lados da cabeça.” Mas alguém explica que aquele fruto é afinal um pêssego. Não, um limão. Então o homem “Decide acabar com aquilo. Desfaz em pedaços a maça prodigiosa que tinha nascido da sua cabeça. E desta vez tudo se torna claro a seus olhos. E levantando a voz diz: «Então era isso!»”.
De alguma maneira, apetece re-começar: Literatura. Uma macieira que dá maças que parecem laranjas, não, pêssegos, não, limões, não, qualquer coisa cuja vantagem é poder ser desfeita em bocados, como qualquer fruto. E comida. Na evidência da digestão, pode acontecer que alguém diga: Então era isso. E era, de facto: uma forma de salada de frutas. Mais do que desvios — intercessões. E de como a coisa compõe sem compor uma teia de re-envios e de projecções: fatalidade incontornável de uns quantos micro-contos se encontrarem dentro de um livro. Perdão, de uma caravana.

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