Fora de tempo # 51


“Eis um facto estranho: assassinamos um homem e passamos a sentir-nos responsáveis pela sua vida — possessivos, até. Sabemos mais acerca dele que o próprio pai e a própria mãe; eles conheceram-lhe o feto, mas nós conhecemos-lhe o cadáver. Somos os únicos em condições de completar a história da sua vida; os únicos a saber por que motivo o seu corpo tem de ser empurrado para a pira antes da hora prevista e os dedos dos seus pés se encarquilham e se batem por mais um instante neste mundo.” (p. 42).  
A elucubração vem a propósito de um desses crimes de classe (simplificando, empregado que mata e rouba patrão) e abre caminho àquilo que será uma gestão irónica da culpabilidade. Reconhecemos o ar dos tempos: não há hoje culpabilidade que não seja mediada pela ironia e até pela irrisão mais completa. O que não é inteiramente negativo, mas o meu ponto é outro. O meu ponto é que a gestão irónica da culpabilidade não anula a fórmula original em que ela se coloca: se tomarmos o facto estranho à letra, na sua seriedade, estamos naturalmente no princípio de uma qualquer religião. O facto estranho continua lá, é em parte por isso que as religiões regressam ciclicamente.

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