Porque é Natal

Em todas estas datas, gosto da ideia de interrupção. Interromper a vidinha, olhar alguém nos olhos, por mais distância que haja. Nunca temos a coragem completa de uma vida verdadeira, e sabemo-lo. Inventamos estas datas para não sermos estúpidos até ao fim. Pervertemos as datas que inventamos, mas algo continua a resisitir nelas. Isso é o que conta.

ps: voltarei em janeiro; vocês ficam bem sem mim, mas desejo-vos que fiquem ainda melhor

Gripe B (irra, parece que tenho de ir à bruxa; ou isso, ou meter férias de vez)


Há depois a metafísica destas situações. O que fizemos porque tinha de ser, porque era razoável que assim fosse, e de que mais tarde nos arrependemos. Um arrependimento desrazoável, quase um luxo, a esquina perigosa da culpa voluptuosa. As coisas são tão mais irónicas na idade adulta.

Gripe B (restos, arrumações)


Aconteceu. Agora parte-se daqui. Não vale a pena ser Luís Pacheco, se se passa tanto tempo em esquemas de sobrevivência quanto os burgueses passam em assegurar a sua carreira. Uma obra, ou o que quer que se lhe assemelhe, é sempre apesar de.

bloco-notas # 12 (e ainda às voltas com a gripe b)

Boa noite. Vai realizar o seu primeiro teste de hap [história das artes do palco]. Gostaria de chamar a sua atenção para o facto de que este momento nunca mais se repetirá. O momento e o que nele pretende acontecer, nem mais nem menos do que o seu primeiro teste de hap. Protelo, como já percebeu. Bom, se já tinha percebido é porque estará, talvez — talvez... — em condições de realizar o seu primeiro teste de hap. Repare bem, o seu primeiro teste de hap. Fantástico, não é? Quase que apostaria que neste momento, neste exacto momento em que está prestes a realizar o seu primeiro teste de hap, quase que apostaria que está a ser muito mais fantástico do que alguma vez pensou que poderia ser, precisamente porque há alguém que lhe está a sublinhar isso mesmo. Bom, agora vem a pergunta, para haver o seu primeiro teste de hap tem de haver uma pergunta, e portanto agora segue-se a pergunta. Mas antes quero fazer notar que, atendendo ao facto de este ser o seu primeiro teste de hap, a pergunta é também fantástica, e sobre ser fantástica está ainda dotada de toda a cotação disponível para este primeiro teste, que é precisamente toda, ou seja, a totalidade da cotação, todinha mesmo. Bom, apresenta-se agora a pergunta fantástica que carrega em si toda a cotação disponível: isto que acaba de ler, isto que vai continuar a ler e que é uma continuação do que vem lendo, isto que ainda está a ler... Espere, vamos por outro lado: se isto fosse uma fala de teatro, assim é que é, se isto fosse um exemplo apenas para efeitos de pergunta, portanto: se isto fosse uma fala de teatro, seria de Sófocles ou de Shakespeare? E porquê? Responda argumentadamente bla bla bla. Boa noite e boa sorte.

Gripe B (regressando)


Gripe B (ainda)


Nada de açucar, mel biológico com limão ritmado a chá de funcho.

Gripe B (já quase foi, de novo veio)


Cada acorde do piano na maré dos pulmões, cada acorde do contra-baixo na batida do sangue. A cabeça agradece, lá no sítio etéreo a que ascende.

Gripe B (regularizar a respiração)


Gripe B (B menos, vá)


bloco-notas # 11

Quero apresentar queixa contra a chuva, o nariz entupido, a cabeça pesada, a frase esquiva, o parágrafo renitente e a mais completa falha de inspiração. Transpirar é uma opção em aberto, mas receio bem que nestas condições só por mediação de sauna. Ainda não vi ninguém com portátil, iphone ou simples telemóvel no sauna. Mas concedo que isto é província.

Companhia (quase) nocturna # 82


Nunca desejei a ninguém que sofresse, mas caso lhe saísse essa alta possibilidade em rifa, desejei sempre que aprendesse o máximo possível que a dor pode ensinar. Norah Jones aprendeu. Perdeu a voz inocente e os aconchegos de algodão (nada contra, mas não fomos feitos para a permanência de tanta beatitude). Ganhou batida e líricas afiadas. Enfim, tornou-se um caso sério. 

bloco-notas # 10

[patente] a partir dos excertos nos blogues, Nada de dois é música abelairiana & declinações do foder. ou seja, promete.

bloco-notas # 9

[patente] ...nesse sentido, diria que o estilo peculiar de Saramago nos aparece como o ritmo sustentável da desaceleração com objectivos emancipatórios.

zapping

Quase tudo conversa de café. Acontece que tomo café de pé, ao balcão, e saio quanto antes. Nada mais.

Companhia nocturna # 81


Não é só a colaboração de Chucho Valdés, é bem um cd a meias: cada um vai equilibrar o outro no lado oposto. Quando Buika é flamenco dilacerado, Valdés é quase jazz fluido. Quando Buika é worrld-jazz, Valdés é popular abstracto. A nina de fuego está com uma voz ainda mais avassaladora, o piano de Valdés sabe acompanhá-la, guiá-la e abandoná-la no momento certo.
(é quase uma boa metáfora para esta coisa que tenho de acabar de escrever, mas não misturemos as coisas)

Driving Miss Laura # 28


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Público, 22 de Novembro de 2009

bloco-notas # 8

Ela parecia genuinamente admirada com o facto de ter sonhado toda a noite com ele. Não foi um pesadelo, precisou, e tudo partiu de um facto empírico que a tinha impressionado e que o envolvia. Também parecia genuinamente alheia ao impacto que essa “confissão” pudesse ter sobre ele. A distância que era suposto existir entre ambos justificava a sua genuína admiração e o seu genuíno alheamento. Apesar disso, o sonho tinha existido. Logo, o impacto sobre ele também poderia existir. “Apesar disso” ou “por isso” são as fórmulas reversíveis de todo o começo.

Companhia (quase) nocturna # 80


Na rádio, no shopping ou no bar, não os ouviria de todo. 
No carro, guiando devagar na chuva da auto-estrada deserta, The XX têm a sedução de um mundo paralelo ao meu.
Melancolia adolescente com estoicismo adulto, o mundo deles. Estoicismo adulto com melancolia sem idade, o meu. 

bloco-notas # 7

Eis a coisa intratável: se cada um, pelo seu mérito, merece o chicote, como pode alguém estar acima desse mérito e possuir honra e dignidade?
Talvez o maior mistério não seja de facto o mal, mas a bondade.

bloco-notas # 6

POLÓNIO: Meu senhor, vou tratá-los de acordo com o seu mérito.
HAMLET: Valha-te Deus, homem! Muito melhor. Se tratares cada pessoa segundo o seu mérito, quem escapará ao chicote? Trata-os de acordo com a tua própria honra e dignidade — quanto menos eles merecerem, maior mérito haverá na tua bondade.

Companhia nocturna # 79

Ainda o voltar para trás. Não se trata de regressar, desde um ponto extremo, a um corpo estável de “canções” ou de originais. Que é “Blues”? É um standard, mas um standard de género, sendo para todos os efeitos um original. Ou seja, é a invenção da matriz do blues segundo o modo e a sensibilidade de Jarrett. Como se toda a música tivesse de ter sido inventada por ele para lhe existir enquanto músico (que não enquanto ouvinte). Bach fez isso com as transcrições: a transcrição era tornar seu um material que lhe era particularmente adequado; depois, criava a partir da transcrição, não do original. Talvez se possa chamar a isso fazer de si mesmo um mundo de música (um pouco diferente de se situar num cruzamento de referências ou citações, coisa mais intelectual e “fria”).
Voltar para trás: partir dos confins de si mesmo enquanto mundo de música e encontrar os caminhos de regresso ao largo oceano onde tudo começou e, por isso mesmo, onde tudo se pode aquietar e a vida prosseguir quando não somos tomados pela vertigem e pela necessidade da viagem. É assim que os concertos de Jarrett terminam: com esse júbilo de quem regressa à vida entre os mortais que somos, depois de ter voltado a saber que há mais coisas no mundo do que a nossa pobre filosofia pode imaginar. Não só não é coisa pouca, como será das poucas que vale a pena.


Companhia nocturna # 78


Diz Keith Jarrett que nos seus concertos a solo parte de lado nenhum, sem guião, e que pára sempre que chega a um local já anteriormente visitado. 
Eu diria que os grandes momentos desses concertos acontecem quando a música começa num lugar que não sabe ainda que é caminho que conduz a um anterior altíssimo. 
Por razões que não vêm agora ao caso, tenho horas de escuta atenta de “Blues”, uma composição que pertence a Paris Concert (1990). Só já bem lançada a faixa III de “London” (segundo cd deste Testament) alguma coisa me soou familiar, para do meio até ao final, na fixação de uma linha rítmica, desembocar e sair claramente onde começaria “Blues”. Ouvindo e tornando a ouvir III (London), é claro desde o início o mecanismo da variação, mas também o das grandes correntes oceânicas. Prolongando “Blues” até ele ser já completamente outra coisa, da mesma forma que uma corrente oceânica se mistura com outra e a deixa depois entregue a si mesma, chegamos ao início de III. Depois é só voltar para trás. Os concertos solo de Keith Jarrett são este voltar para trás, partindo de muito longe e fundo no vasto oceano.



Companhia nocturna # 77


Só em alguns casos leio as notas que acompanham os cd’s, e sempre depois de os ouvir. O texto de Keith Jarrett é visceralmente pessoal (e comovente), e diz duas coisas simples (que vou resumir mal): 1) um músico tem vida pessoal, sofre, e o sofrimento pode impedir a música; 2) a música ainda pode salvar um músico. Por vezes esquecemo-nos que também é deste combate pessoal que é feita a grande música. Mas não admira: quando a música é realmente grande, o combate que lá ouvimos confunde-se sempre com o devir do mundo. 

bloco-notas # 5

 
Nunca escrevemos tão bem sobre nós próprios, como quando escrevemos sobre outros. Certo. Mas como se sabe quando é sobre nós próprios? Quando é que começa a ser sobre nós próprios? E finalmente: isso importa, saber isso importa? Ou basta escrever nessa linha de fronteira indecidível? 

"A «coisa seguinte», sendo sempre para Eduardo Prado Coelho a coisa intelectual e estética, é o lado mais solar e pulsionalmente afirmativo do pensamento e das múltiplas sensibilidades, «uma cultura da ironia e do jogo, por contraposição a uma cultura da angústia e da dúvida» (Diário I: 56). Mas uma cultura da ironia e do jogo que reverte o intelectual e o estético às raízes mais indomesticáveis do sujeito, e aí consegue, por exemplo, atravessar uma imagem corporal com uma decisão de uma outra narrativa:
«Compro uma gravata Hermes com elefantes aos saltos lançando esguichos de água pela tromba. Arranjo-lhe um título para apresentação em convívio social: a insustentável leveza dos elefantes (o peso que salta, rebola, ri, brinca com o seu próprio corpo)» (Diário I: 98).
Nada mais saudável do que nos tomarmos também a nós próprios como cena capaz de convocar a «coisa seguinte». E, de alguma maneira, nada mais saudável que aquilo mesmo que transporta esta espécie de nietzscheanismo da grande saúde do corpo, transporte de igual modo o ténue sinal de tragédia que autentifica a indesmentível realidade do que o tempo vai cristalizando em nós. A insustentável leveza dos elefantes não pode deixar de ser também a memória que em surdina obceca, o vivido que persiste em nos habitar e constranger, talvez mesmo o peso específico de todo o lance intelectual e estético quando declina o seu júbilo e sobre ele desce a sombra crepuscular da única interrogação que se repete neste diário: quando chega a infância?
Porque esta interrogação repetida significa, naturalmente, que a infância nunca chegará."


Fora de tempo # 56

Retenho profundamente estes versos de um poema sobre conduzir à chuva: “[...] e fixo à minha frente / A parte inteligente do medo / Que me toca.” (p. 19) 
Não se conduz bem (com ou sem chuva) se não se usar a parte inteligente do medo. Aquela que sabe da máquina e dos processos maquínicos que em nós a prolongam — essa é a parte inteligente do medo.

Fora de tempo # 55


Há livros cujas qualidades reconhecemos, com as quais nos identificamos — e contudo há qualquer coisa que se interpõe invencivelmente entre o livro e o nosso desejo de gostar dele.
Reconheço a secura, a ironia e o alusivo como um mérito. Reconheço o insólito e o risco de tomar como objecto e personagem um carro (é ele o amante japonês). Reconheço a mestria de uma longa metáfora filée e os lugares de amor e morte que atravessa. Um crítico de nada mais precisa.
O leitor que sou identifica-se com os andaimes desta linguagem, a ligação ao carro (também japonês, por acaso), e os lugares de amor e morte a que ele dá acesso. E contudo, senti-me quase sempre de fora deste livro. O leitor que sou precisa de mais qualquer coisa, mas não sabe o quê. Se soubesse, já teria conseguido parar de ler. 
[Não, não é verdade, não quero parar de ler. Quando a identificação acontece, há apenas um intervalo maior para o livro seguinte. E faz-se a vaga promessa de re-ler.] 

bloco-notas # 4

Ainda a velha questão: para haver um poema, não basta um papel em branco com uma assinatura no fim; para haver um quadro, basta um papel em branco com uma assinatura no fim.

Colóquio Letras 172


A abrir, três textos re-lêem Barthes — e o reencontro mostra até que ponto foi (é) precipitado o seu desaparecimento do horizonte de referências teóricas em que se movem os estudos literários. Mas cada autor tem de atravessar o seu limbo, porque a teoria nunca é sem mancha, há que dar tempo a que as imperfeições do presente resgatem as imperfeições do passado.
Em seguida, nove textos sobre escrita do eu e diários analisam Pessoa, Sena, Torga, Vergílio Ferreira, Marcello Duarte Matthias, Luísa Dacosta, Saramago, Llansol e Eduardo Prado Coelho [que é o meu contributo: A coisa seguinte, o chegar da infância e o fim definitivo de todos os tribunais: Eduardo Prado Coelho em diário].
Há ainda a habitual secção de inéditos e de recensões críticas de literatura portuguesa e literatura brasileira.

Pormenores



Ainda hoje, com as excepções que validam toda a “regra”, a reacção à queda do muro permite distinguir as duas direitas e as duas esquerdas. As duas direitas convergem no silêncio e no alheamento: a direita ultra-conservadora tem em curso a construção dos seus próprios muros, a direita democrática só costuma festejar a liberdade do mercado, aos restantes costumes pouco diz; a esquerda pré-perestroika não vê razões para celebrar, só a esquerda democrática lembra a festa da liberdade. Pormenores, já se vê. O outro falava do homem e das suas circunstâncias. Eu acho que se lhe deve acrescentar também os seus pormenores.

Companhia nocturna # 76


(Testament? Vai com calma, não lhe dês pretextos. E olha que tudo é testamento, legado. Contigo, por maioria de razões.)

Driving Miss Laura # 27


 6 de Novembro, sexta-feira, 18.30h
Livraria Centésima Página, Braga
Apresentação por José Eduardo Lima, SJ

Fora de tempo # 54


Não é nada que não se saiba desde tempos imemoriais: temos que nos perder para nos encontrar. Há uma pergunta que decorre disto e que coloco sempre que embarco numa leitura “académica”: quando é que ele (ou ela) perde o pé e se permite ir por momentos na corrente que só pretende analisar de fora? Esse momento é uma imperfeição, a todos os títulos uma imperfeição, mas é a imperfeição semelhante à marca de contraste que assinala o ouro de lei: percebe-se tão analiticamente o objecto de estudo que estamos em condições de reproduzi-lo como autoria nossa.
A etapa clássica desta ambiguidade deu-se em termos de fascínio e contra-fascínio. Coetzee imagina Barthes fascinado com a leitura de Zola, e construindo o contra-fascínio em O prazer do texto, onde Zola é um dos exemplos da literatura sem atrito. Umberto Eco foi mais claro, declarando desde logo que na sua análise dos comics e similares havia um olho de confessado fascínio e um outro de distância sociológica.
A etapa moderna desta ambiguidade veio com a desconstrução derridiana e acontece naquele momento em que o texto desconstrutor segue com ironia, mas com consciência de ser o melhor caminho possível na situação, a estratégia do texto desconstruído. Ou dito de outra forma, acontece quando a dobra que faz avançar a interpretação tem que ser a mesma dobra que fez avançar aquilo que está a ser interpretado. No livro de Quintais, isso acontece sensivelmente a meio do empreendimento, que é o melhor lugar para tais coisas acontecerem:
“Franz começa a revelar, desde 1918, uma intranquilidade permanente. Desconfia das tripulações dos navios em que embarca. Lê-lhes na fisionomia «a dúvida em que estavam acerca da sua nacionalidade, desconfiando que ele fosse alemão e não suíço». Parafraseando o médico português, um estado de desconfiança começa a orientar-lhe infatigavelmente a atenção.” (p. 64).
Tudo se joga no fio da navalha. Porque a simples paráfrase é a impotência da interpretação, mas parafraseando é como uma mudança de velocidade para entrar num outro troço. Chegados aqui, se dúvidas houvesse (mas já não havia), sabemos que o livro está ganho.

Levi-Strauss


Uma certa perplexidade ao saber da morte de Levi-Strauss, como se fosse uma notícia atrasada. Nenhuma crítica nisto. Levi-Strauss tinha desaparecido da vida intelectual activa por razões muito suas. Ou com mais rigor, a sua pessoa tinha-se separado há algum tempo do seu nome de autor. Era como nome de autor que Levi-Strauss existia — um clássico incontornável, na fase em que é ainda lido e discutido. E um desses clássicos que ultrapassa largamente as fronteiras da sua “ciência” — para mim, Tristes Trópicos é também um grande romance (já agora, um grande romance “proustiano”, mas sem tempo reencontrado).  

Fora de tempo # 53


Em 7 de Junho de 1930, em Lisboa, Franz Piechowski mata o ministro alemão em Portugal, o Barão de Baligand. Rapidamente se percebe que o homicida não está em seu perfeito juízo. O psiquiatra Sobral Cid, em 14 sessões, procede ao seu pormenorizado exame clínico, de que resulta um longo relatório: “O caso Franz Piechowski, perseguido, perseguidor e magnicida”. Sobral Cid é o grande herdeiro de Miguel Bombarda e Júlio de Matos, e o caso aparece-lhe como uma oportunidade ímpar de criar jurisprudência na psiquiatria portuguesa e na medicina forense.
Luís Quintais faz a análise detalhada do relatório de Sobral Cid, mostrando como se constrói a evidência da loucura e o paradoxo inevitável que sustenta toda a evidência deste tipo: se os indícios são relativamente objectivos, e consolidados na sua posição de indícios por casos similares, a interpretação deles num diagnóstico de loucura depende da autoridade e subjectividade do médico, isto é, da sua capacidade particular de não se deixar enganar por uma loucura fingida.
O relatório de Cid conta uma história, a de Franz Piechowski, reconstruindo-a enquanto história de um magnicida inconsciente. A análise de Quintais conta a história dessa história, reconstruindo-a enquanto esforço de evidência dos mecanismos de um magnicida. A sedução deste livro reside na escolha deste mecanismo narrativo em segunda instância. Uma festa da inteligência, sim, e da inteligência desdobrada sobre si mesma, mas uma festa da inteligência que magnificamente se subordina à resistência do real, ao naco de vida, quer dizer, à insensatez do sentido.

Driving Miss Laura # 26


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Companhia (quase) nocturna # 75

A tempo, o outono. Atrasado, um texto para acabar. Em modo aleatório, a música.

Driving Miss Laura # 25


No Público de hoje: "O testamento vital e os interesses dos cidadãos".

Companhia nocturna # 74


A liberdade de ir pelo conhecido fazendo-o novo. Tomara aprender. Mas desconfio que mesmo quando se aprende, ou quando os outros nos asseguram que alguma coisa disso aprendemos, só o vemos perfeito fora de nós. Como aqui.

Um tostão ou um milhão

Havia uma tira do Quino que era assim: na hora do almoço, um pobre pedia dinheiro para comprar um pão; um transeunte mais apiedado dá-lhe uma nota; o pobre mal crê na sua sorte, entra todo risonho no restaurante e pede todos os pães que a nota pode comprar. 
Com a corrupção acontece qualquer coisa de análogo. Os que vêm de muito baixo, os que tendo subido nunca perderam os tiques de terem vindo de baixo, medirão sempre o seu preço a pães. Os outros, nas mesmas condições, exigirão diária completa e por um período substancial.

bloco-notas # 3

Há mil e uma formas de um livro nos fugir, apenas duas ou três de nos obrigar a ficar com ele — tão poucas são as coisas que realmente nos interessam. O verdadeiro milagre é encontrá-las, apesar de tudo, em tantos e tão diferentes livros.

Fora de tempo # 52

“Este pequeno espelho rectangular dentro do carro, Sr. Jiabao... Será que nunca ninguém reparou até que ponto pode ser embaraçoso? Como é que, de quando em vez, quando os olhares do patrão e do motorista se encontram neste espelho, ele se abre como uma porta para um quarto de vestir e, de repente, ele se apanham um ao outro nus?” (O tigre branco, p. 149).
Embaraçoso é aqui uma palavra... embaraçada. O termo correcto seria violento, de uma violência facilmente assassina. A possibilidade do reconhecimento em nua humanidade é um mito. A nudez imprevista de dois seres atirados para a presença um do outro só tem dois resultados possíveis: sexo (uma forma de violência accionada pelos mecanismos da reprodução) ou luta ( a violência gerada pela defesa do espaço vital). Todo o reconhecimento é social e laboriosamente construído como um patamar de civilização. O erotismo também. São artefactos, e assim os sentimos. Daí o misto de desencanto e segurança com que os vivemos: não são a coisa natural (que está para sempre perdida), mas precisamente por não serem a coisa natural podemos experimentá-los e sobreviver-lhes.

Fora de tempo # 51


“Eis um facto estranho: assassinamos um homem e passamos a sentir-nos responsáveis pela sua vida — possessivos, até. Sabemos mais acerca dele que o próprio pai e a própria mãe; eles conheceram-lhe o feto, mas nós conhecemos-lhe o cadáver. Somos os únicos em condições de completar a história da sua vida; os únicos a saber por que motivo o seu corpo tem de ser empurrado para a pira antes da hora prevista e os dedos dos seus pés se encarquilham e se batem por mais um instante neste mundo.” (p. 42).  
A elucubração vem a propósito de um desses crimes de classe (simplificando, empregado que mata e rouba patrão) e abre caminho àquilo que será uma gestão irónica da culpabilidade. Reconhecemos o ar dos tempos: não há hoje culpabilidade que não seja mediada pela ironia e até pela irrisão mais completa. O que não é inteiramente negativo, mas o meu ponto é outro. O meu ponto é que a gestão irónica da culpabilidade não anula a fórmula original em que ela se coloca: se tomarmos o facto estranho à letra, na sua seriedade, estamos naturalmente no princípio de uma qualquer religião. O facto estranho continua lá, é em parte por isso que as religiões regressam ciclicamente.

Fora de tempo # 50


Escorreito, irónico e romanesco q.b.. O meu interesse de partida era mais sociológico do que propriamente literário, e nisso não me desiludiu. Não substitui os documentários e os ensaios sobre o “milagre indiano”, mas só a ficção nos dá vidas e pessoas concretas (sim, sim, concretas). Radicalmente, um país não existe. Embora ajude saber coisas sobre isso a que se chama um país. Mas no fim, é sempre sobre pessoas e as suas circunstâncias. E sim, morre-se sempre sozinho, perdendo as pessoas e as circunstâncias.

bloco-notas # 2

Quando ele diz que não sabe, não lhe interessa saber, não quer mesmo saber, o mais importante não é a ignorância. A ignorância nunca seria capaz desta fórmula tão ostensiva de recusa. O importante é o grau de saber a partir do qual ele diz que não sabe, não lhe interessa saber, não quer mesmo saber. Porque nesse grau de saber, o que ele sabe gostaria de não sabê-lo, interessava-lhe não sabê-lo, não quer mesmo sabê-lo. Mas é demasiado tarde. O problema não é a ignorância, é a angústia. Só ela pode formular uma tão ostensiva recusa do mundo. Que por acaso também chega sempre demasiado tarde, porque já estamos plenamente vivendo.

bloco-notas # 1

De um para outro, a repetição não existe. De poeta para poeta, de artista para artista, a repetição não existe. Existem coisas reiteradas, segundo os meios próprios que cabem a cada um. Podemos acentuar o que se aproxima ou o que se distancia, jogar na variação ou na diferença — mas temos sempre duas coisas de que falar, não apenas uma. De um para outro, não é sempre a mesma coisa. Aliás, nunca é a mesma coisa.

Companhia nocturna # 73


Como se fosse ainda a primeira e interminável vez, ombra mai fu.

Companhia nocturna # 72


A música não sabe do sacrifício, é um deus que não precisa de tais ofertas. Nem lhe servem para o que quer que seja. Antes ou depois, sabemos nós dos castrati. Mas durante, sabemos apenas da música. Não é a crueldade do esquecimento ou da indiferença, antes a inocência da arte onde o mundo menos pesa.

Fora de tempo # 49

A suspensão do juízo é uma forma precisa de ajuizar um determinado objecto particular. Não isenta de ambiguidade. A suspensão do juízo pode ajuizar em definitivo — sobre isso nunca saberei o que dizer, sobre isso nada há a dizer, sobre isso melhor será que nada se diga —, ou pode adiar o juízo até novos elementos esclarecedores.
Na crítica literária, a suspensão do juízo devia ser prática mais comum, nunca como modo de ajuizar em definitivo mas como modo de esperar pela continuação da obra. 
Por exemplo: a qualidade de um verso como “o resto é abaixo de gato” não se decide nele próprio nem na obra a que pertence. Será a próxima obra a esclarecer (possivelmente) o lado para que penderá: exemplo de variação fácil de um lugar-comum, ou exemplo de um largo trabalho de desconstrução dos lugares-comuns?

Fora de tempo # 48


“e uma data de poemas na cabeça / ligados por tubos de respirar” (p. 7)
a glória dos poemas na cabeça: não é o lugar nobre e apropriado para haver poemas, é apenas o lugar mais próximo da saída; a eternidade dos tubos de respirar: os cuidados intensivos são a última paragem antes da saída

“os poetas devem morrer de tuberculose, na miséria / isso ou artista doméstico / fato de treino e perversões de periferia / o resto é abaixo de gato” (p. 15)
a glória da parte maldita, a eternidade da recomposição do mundo normal

“nasce o dia / ao sair da cozinha tudo na mesa parece obra do diabo / copos por levantar, o cinzeiro usado, talheres sujos / e livros de poesia” (p. 23)
a glória da enumeração do trivial, a eternidade da parte maldita tornada quotidiano 

Companhia nocturna # 71



Reitero: nunca por nunca chegamos demasiado tarde à música. Ou a um livro que desconhecíamos, um quadro nunca visto, uma paisagem subitamente aberta a nosso lado. Mas à vida sim. E a algumas pessoas nela, mais ainda.

Companhia nocturna # 70


Nunca se chega atrasado à música. Anos, décadas, séculos, a sua paciência não tem limites. A vida sim.

Companhia nocturna # 69



Fora de tempo # 47


Ottinger detém-se aqui. O quadro de relações é demasiado complexo, e de alguma maneira demasiado doméstico e privado, para caber numas “hipóteses elementares”. De Lacan a Duchamp, com segredo, velatura e sexo, sendo que o segredo e a velatura não são, de forma nenhuma, apenas causa ou consequência do sexo. Tudo por junto, é demasiado matricial para não transbordar o elementar.
Porém, uma coisa me interessa, que propriamente talvez até não pertença a esse quadro de relações, embora lhe subjaza como enquadramento ou situação incontornável. Chamemos-lhe o obtuso sociológico (sendo que o óbvio é a remissão para L’Origine du monde): pulsionalmente, a figura de Le gaz d’éclairage é uma figura morta, ou pelo menos fria, e a natureza que a rodeia está mais próxima de uma natureza-lixo ou natureza-baldio, do que da voluptuosidade carnal de Courbet (mesmo quando é apenas a natureza que pinta). De Courbet a Duchamp, aproximamo-nos da morte: mas Imre Kertézs já tinha avisado o quanto o século XX nos mostrou o rosto verdadeiro da nossa existência. 
Resta a ironia involuntária, afinal também ela apropriada a esse mostrar: Le gaz d’éclairage apareceu ao grande público primeiro que L’origine du monde.

Fora de tempo # 46


A segunda hipótese de Ottinger, sintetizando e fazendo avançar outros: há uma ligação entre L’Origine du Monde, cujo original Duchamp viu na casa de Lacan, e Étant donnés: 1. La chute d’eau 2. Le gaz d’éclairage.
Na casa de Lacan, L’Origine du monde estava velada por uma pintura de Masson, seu cunhado, para obstar ao excesso da tela de Courbet. Étant donnés é uma instalação. Há uma enorme porta de madeira, aparentemente maciça, incrustada na parede (La chute d'eau). Quando nos aproximamos, há um pequeno rombo de contornos irregulares numa das faces da porta. Alguns julgam tratar-se apenas de deterioração material e não se acercam mais. Outros aproximam-se para espreitar, habituam a vista ao escuro e acabam por vislumbrar a cena: Le gaz d’éclairage. A figura central lembra de facto L’Origine du monde.

Fora de tempo # 45


O elo entre natureza e sexualidade nunca foi natural. Mas houve uma época em que funcionou com vantagens mútuas, desembaraçando a natureza das suas metafísicas românticas e a sexualidade das suas reprodutibilidades sociais. Por assim dizer, variações da carne tornada extensa: ficavam os humanos com um vasto campo de experiência maior do que eles próprios, repousava a natureza na sua condição terrena, frágil e desejante. Foi esse elo que Courbet pintou, ou de que falaram D. H. Lawrence ou Kerouac. Foi visto pela última vez em Woodstock.
A quase ninguém interessa hoje esse elo. A natureza é preocupação, empecilho ou cenário de jogging. A sexualidade é também preocupação, empecilho ou cenário de fantasmas.
Bem entendido, sou um fóssil. O que vale é que mesmo numa espécie em extinção, ainda se pode morrer aos pares.


ao cimo, La source de la loue e L’origine du monde.

Fora de tempo # 44


A primeira hipótese de Ottinger, sintetizando e fazendo avançar outros: se tomarmos os nus de Courbet, mantivermos os seus agenciamentos essenciais e estruturais, mas transformarmos os segmentos humanos em rochas, bosques e por aí adiante, obtemos as paisagens que lhe interessavam profundamente. Se colocarmos La source de la loue de pé sobre o seu lado direito, vemos que a composição é exactamente a mesma que foi usada para L’Origine du monde.

Da exigência

Não, o eleitor do Bloco não é um feroz anti-PS que não perdoa o mínimo desvio. É outra coisa que exige muito mais cuidados nos caminhos que se escolhem. É bem mais exigente do que isso.

Não me queixando sequer do Roth, que a gente já sabe como é

Má jogada, a do Nobel da Paz. Não se deve premiar o presidente da nação mais poderosa do mundo democrático por estar fazer aquilo que deve ser feito — e honra a Obama por isso. Mas a Paz necessita de trabalho extra-curricular, e é esse que é urgente conhecer e reconhecer.
Ainda assim, dentro das más jogadas, Obama é a melhor possível.

Companhia nocturna # 68


Fora de tempo # 43



Primeiro elogio: o Pynchon segundo Rogério Casanova parece-me de longe bem mais interessante que o próprio Pynchon. Segundo elogio: a sova no Updike devia tornar-se um case study. E mais um: a leitura de Todo-o-Mundo, de Roth, é uma recensão modelar.
Ironia, desembaraço, fórmulas inesperadas e certeiras — sim, tudo isso também. Nos melhores casos, sobre terreno culto, o que deixa qualquer coisa para pensar; noutros casos, é puro incêndio sardónico do quotidiano: alto estilo de devastação, passe-se ao episódio seguinte.
De todos os estilos, é sempre este que tem um prazo de validade mais apertado, embora alto rendimento imediato. Impossível manter-se a vida inteira nisto. Quer dizer, impossível não é, mas este estilo sofre inevitavelmente do síndrome do “Vêm aí os lobos”. Lembram-se da história? O rapaz lançava o alerta, e não era; depois outro alerta, e também não era. Essa história.
Portanto: bem-vindo, Mr. Casanova. Já provou suficientemente que existe. E agora, como é que vai continuar a existir?

Fora de tempo # 42



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Fora de tempo # 41


“escrevo esta carta no início do verão, uma mão litoral no cabelo enquanto hesito. o automóvel está estacionado à porta de casa, o resto a caminho do sul. no final hão-de restar apenas as estrias de sal sobre o dorso, a interpretação desses mapas.” (Tiago Araújo, Livre arbítrio, p. 42)

A poesia (a arte no seu todo) é também (entre muitas outras coisas, algumas das quais ainda mal detectadas) esta possibilidade de um texto que absolutamente nada sabe de nós nos descrever num gesto preciso, fixado num tempo que ainda se não perdeu de todo. A poesia é esta forma de libertação: o texto que nada sabe de nós incorpora o que de nós sabemos como excesso e peso, mas como se fora de um outro, libertando-nos. Transfert involuntário, imensamente disponível; análise terminada, porque deslocada.
Se poesia, entre muitas outras coisas, é isto, crítica, entre outras coisas (mas em menor número), é falar deste transfert acidental como se não houvesse transfert, apenas leitura, e todo o acidental fosse a superfície de uma necessidade escondida que a pouco e pouco se vai iluminando.

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Fora de tempo # 40

A DROWNING

Vinte anos de porfia
para cem, duzentos versos
estimáveis, o fastio
dos aplausos, seis amigos,
quando minto, trinta euros
de chamadas por semestre.
Arrependido? Nem sequer.
Desapontado, se quiserem.

A sensação de ter quebrado
o último brinquedo.
 [José Miguel Silva, p. 35]

Pano. Um segundo acto brilhante, com um fim que em muitos não alcança sequer ser final. Parada alta para o terceiro acto. Supondo que o haja (mas o deserto ou a imolação capitalista já não são soluções defensáveis, e à distracção da vidinha falta a força e a disciplina da persistência, mesmo que apenas para perseverar no desistir).

Fora de tempo # 39


Como sempre na melhor poesia “especulativa” ou “pensante”, a questão não é a da verdade, da justeza de uma afirmação que possamos brandir em direcção a um silogismo, mas a da potência de uma linha de sentido. Uma linha não é o desenho todo, uma linha é apenas uma linha. Como uma rua não é a cidade toda, é apenas uma rua. Moramos numa rua, a nossa vida passa também por outras.
“So Goodnight” é uma rua que frequento bastante: “Não posso dizer que tenha aprendido grande coisa / nos últimos, digamos, duzentos anos. / Há muitas perguntas que vão perdendo altura / à medida que as pessoas tombam e também / as garras já não prendem como soíam. / (...) e por esta altura da minha queda já concedo / que seja o silêncio a condição natural / para uma ave sem nome que Setembro chamou / e que há duzentos anos não aprende nada.” (José Miguel Silva, p. 32). 
Não moro nesta rua. Mas “So Goodnight” é o marcador que uso no deleuziano “O que é a filosofia?”, por exemplo. A ave não tem nome, o seu dono é apenas memória ida, mas o seu vôo nocturno continua a inventar Setembro.

Fora de tempo # 38


A urgência que tinha da poesia do José Miguel Silva. Sobretudo isso, imensamente isso. Distinguem-se quase sempre bem as vozes, não é preciso ir ao índice final ver o que é de quem, há um mundo próprio em cada um. Que aconteceu ao José Miguel Silva para andar desaparecido dos livros em nome próprio?

Fora de tempo # 37


É um livro zurzível a quase todos os títulos, e não posso dizer que não tenha sido avisado. Mas o Paulo José Miranda romancista interessa-me, e como o tom dos seus romances deve bastante a uma “costela filosófica”, dispus-me a ler atentamente estes 99 artigos que compõem A América. Vai para o lugar dos “estranhos até ver”: nada que mereça o meu tempo per si, mas talvez alguma coisa disto venha depois a dialogar com um romance que se lhe siga (ou não, o que seria a melhor hipótese para a sua obra, quer dizer, para a qualidade dela).