Epifanias # 44

Agora ouve. E trabalha. Está tudo por fazer. Sempre tudo por fazer. Outros dirão que se está sempre a meio de qualquer coisa, ou até talvez já um pouco perto do fim. Às vezes tu próprio dizes isso. Sim, muitas vezes tu próprio dizes isso. E não deixa de ser verdade. Mas quando se ouve mais fundo, sabemos que está tudo por fazer.

Epifanias # 43 [prece pelos nossos legítimos inferiores]

Senhor, especialmente a eles, dá-lhes a inteligência de nos entenderem, para que nos possam atacar pelo que somos. E se não for pedir muito, dá-lhes também a inteligência de conseguirem dizer o que pretendem, ou de o conseguirem mascarar tão perfeitamente que se entenda que de facto parece que pretendem qualquer coisa.

Epifanias # 42 [prece geral]

Senhor, já que nos destes o litígio, dá-nos também a inteligência do litigante.

Dar a volta à coisa # 5

Espirra já os canivetes, preciso aqui deles.

Dar a volta à coisa # 4

Esse braço de ferro é meu, tu que pensas?

Asfixia em pequenas notas


Eduardo Pitta responde longa e criteriosamente ao meu post. Algumas anotações em continuação de uma conversa que vale a pena.

1. Pergunta Eduardo Pitta: o desagrado geral perante Bolonha virá do desnorte legislativo que ilustra o nonsense burocrático? Penso que a causa próxima será essa. Agravada por uma sucessão de governos (da queda de Guterres até agora) que manteve interminavelmente a questão em agenda, não permitindo avançar nem resolver. E coincidindo com os anos mais gravosos do Ensino Superior pós 74, combinação explosiva de crise económica aguda e falta de alunos. Alguém se lembra de ouvir falar de desemprego no Ensino Superior a não ser nos últimos dois a três anos? Bolonha transformou-se no bode expiatório perfeito desta crise. Até porque finalmente se foi percebendo que Bolonha, podendo ser uma mudança de paradigma científico-pedagógico (oh, estas eloquências...), era antes de mais uma necessidade de acerto de política educativa dentro da União Europeia para fazer face a outros competidores (Estados Unidos à cabeça, claro). E para isso, que é decisivo, não era preciso tanta parafernália, nem que ela fosse servida com tanto desnorte legislativo.

2. Afirma Eduardo Pitta: “Quanto ao previsível abandono, por parte de muitos, logo no fim do 1º ciclo, julgo não ser diferente do que acontece já, em que muitíssimos abandonam no durante”. No seu valor facial, de acordo. Mas se me permite, isto vai introduzir uma falácia que iremos pagar caro, basta esperar alguns anos. É que os que abandonam agora não levam qualquer diploma, e tão importante quanto isso (crua verdade...) não levam qualquer auto-representação de si mesmos como pertencendo ao leque dos licenciados ou formados. Os que acabarem o 1º ciclo de estudos serão licenciados. Entre estes licenciados e os licenciados de hoje, a sobreposição do nome apagará toda a diferença. E nenhum discurso político se faz ouvir a dizer que a licenciatura, para a competitividade que aí vem (que já aí está...), não basta. Mas mesmo que esse discurso se fizesse ouvir, o nominalismo que se vai instalar teria uma larga margem de triunfo. Bacharel seria a designação certa para esse 1º ciclo, porque diminuiria sem subterfúgio esse propedêutico alargado. Pior que inculto, só um inculto que é levado a pensar que é culto.

3. Descrença na sociedade civil, porque não acredito que, mesmo por vaidade, todos os nomes que referiu sejam motiváveis para abrir os cordões à bolsa tendo como destinatários as universidades? Bem pode dizê-lo. Entre nós, há muito que a Universidade não é distintivo para ninguém. A gente diz o Senhor Reitor, e o povo pensa nos liceus de antigamente, todos presididos por Salazares com pingalim. A gente diz Ensino Superior, e encontra placas de freguesia que gritam que aqui há universidade ou politécnico. Vivemos todos numa América mental, é certo, mas nem todos os símbolos são transponíveis. Os nossos “forbes” é mais artes & música, e já não é mau. Generosos contribuintes líquidos para Ensino Superior só conheço algumas câmaras. E pequenas, está a ver?

4. Claro que lhe faço essa justiça. Já lhe fazia no post, dizendo expressamente que aquilo não era consigo. É daquelas generalidades que ultimamente atingem o funcionalismo público, e que depois alguns esmiúçam aplicadamente a cada corpo profissional em particular. Note que eu até não me importava de ser um desses gajos do superior que não fazem um caracol: o que eu queria ser mesmo quando fosse grande, era ser posto na prateleira, receber o meu ao fim do mês, e ler e escrever o que me apetecesse. Até daria umas aulas de graça, só pelo gozo de partilhar o pensamento e aprender pensando. Utopias, já se vê... Bom, agora vou dar uma aula. Das nocturnas, como o Ministro gosta. E eu também.

Ensino Superior, prós e contras

1. Resumo político: Mariano Gago “pediu” mais um ano para as mexidas necessárias no Ensino Superior quanto à definição da rede, lei da autonomia e estatuto da carreira docente. Agora que os estudos vão ficar prontos, será a fase de extrair as consequências políticas. Seja. Não se pode acusá-lo de incoerência nem de não aplicar às suas decisões os passos metodológicos que exige para todo o conhecimento científico. A ver.

2. À atenção dos nossos liberais: aquela cena dos gráficos do eurostat. Com o Ensino Superior, Portugal gasta umas centésimas mais do seu PIB do que a Espanha. Mas como o PIB português é o que se sabe, o resultado bruto é que a Espanha gasta, por cada aluno no Ensino Superior, o dobro do que gasta Portugal. Na hora da prestação de contas, alguém se devia lembrar disto: que se fazem omeletas com menos ovos, isso é verdade, mas não se pode exigir que saibam exactamente como as outras. E na hora de falar da captação das verbas, idem aspas: se o PIB é o que é, onde é que se vai captar o quê? Para já não falar que o PIB é uma média, e que portanto há instituições de ensino superior em regiões que estão muito abaixo da média, e que há cursos que, pela sua natureza, pouco têm a vender à comunidade.

3. O double-bind das palavras mágicas. Competitividade, empreendedorismo, captação de verbas. Quer dizer, universidades contra universidades, numa luta leal etc etc. Sobredimensionação da rede, necessidade de clusterização, especialização. Quer dizer, universidades a negociar com universidades quem fica com o quê, quem vai até onde, e quem nem fica nem vai. Ser jogador e árbitro ao mesmo tempo parece-me um bocado complicado. Até porque há um governo eleito, não há?

4. Representações simbólicas. Na terminologia “da Fátima”, os Senhores Reitores estavam todos na primeira fila. E o Senhor Presidente do CRUP e o Senhor Reitor Sampaio da Nóvoa, na mesa. E os estudantes, todos representantes das Universidades. Depois havia um representante do Ensino Superior Privado, alguns Reitores privados e ainda o Senhor Presidente do CCISP, que “a Fátima” introduziu como equivalente ao Senhor Presidente do CRUP — vê-se logo a equivalência, claro... Mariano Gago disse que uma das perguntas a que o relatório da OCDE devia responder era se estava claro o papel dos dois subsistemas. Socialmente, está mais que claro: o Politécnico é, e entre nós não se vê como alguma vez deixará de ser, um liceu avançado. Não era melhor acabar com isso e passar tudo para as universidades? Há alguma coisa que as Universidades não façam já ou não possam vir a fazer em rigorosa e lógica extensão daquilo que já fazem? O primeiro ciclo de formação não resolve agora aquilo para que os Politécnicos alegadamente foram criados?

Preparando os prós e contras sobre o ensino superior ou asfixiamos porque queremos, diz o Eduardo Pitta

Eduardo Pitta vê de fora, como muito bem diz, e isso, aos que estamos dentro, deve fazer-nos pensar. Porque Eduardo Pitta não é um qualquer, e se vê como vê, o mais certo é que olhos menos cultos ainda vejam pior.

Um: Eduardo Pitta fica perplexo pelo atrabile contra Bolonha. Culpa nossa, que não nos explicamos.
Primeiro, eu não conheço ninguém no ensino superior que seja contra o Processo de Bolonha. Não conheço toda a gente do superior, claro, mas conheço muita gente e acho que li quase tudo das posições e pareceres que a coisa suscitou. O que conheço é muita gente, entre os quais me incluo, que se insurgiu contra duas coisas:
1. [uma boa parte desta muita gente, mas não toda, verdade se diga, contra] Que Bolonha tenha sido aproveitado para reduzir drasticamente a já de si fraca presença das ciências sociais e humanas na formação geral do ensino superior, afastando com isso instrumentos de crítica social e grelhas de leitura problematizantes;
2. O modo como a “implementação” do processo de Bolonha (não) foi sendo feita. Um após outro, os estudos conducentes, em cada especialidade, à redefinição das regras, foram sendo atirados para o caixote do lixo. Novo ministro, nova ronda. Dois exemplos simples e comezinhos: A) o Decreto-Lei nº 74/2006, de 24 de Março, fixou o regime jurídico dos “Graus académicos e diplomas do ensino superior”, e as normas técnicas para a adequação de cursos ou criação de cursos novos foram fixadas em 31 de Março; o prazo para apresentação das propostas de novos cursos ou adequação de cursos conformes ao Decreto Lei e às suas norma técnicas que quisessem funcionar no ano lectivo 2006-2007 era... 31 de Março. B) O mesmo Decreto-Lei previa que até 15 de Novembro corrente terminassem os processos de adequação dos cursos a Bolonha. Mas como o Ministério da Educação se atrasou a apresentar os requisitos de habilitação para a docência, esse prazo, para os cursos de formação de professores, foi alargado para 31 de Janeiro de 2007. Resta saber quando é que o anteprojecto de Decreto-Lei, lançado para discussão pública no início de Novembro, se transforma efectivamente em Decreto-Lei, e quanto tempo restará então às instituições para fazerem o processo de adequação. Isto depois de duas comissões, uma antes da Ministra Maria da Graça [suponho que era este o nome, ele há figuras que a gente nem se dá ao trabalho de fixar...], outra durante o seu mandato, terem feito o trabalho “todo”. Obviamente, nada disto é muito sério.
Segundo, Eduardo Pitta pensa, e não está sozinho nisto, tem até a companhia de alguns que estão dentro do superior, que Bolonha reduz a duração das formações. Errado. Divide em ciclos, que é coisa diferente. Mas que tem consequências. Uma, é que em alguns casos o segundo ciclo de formação deixará de ser financiado pelo Estado. Outra, é que muitos abandonarão o superior terminado o 1º ciclo de formação. Eduardo Pitta, que continua a não estar sozinho nisto, acha que para caixa de supermercado ou funcionário de autarquia, isto chega. Quanto aos caixas de supermercado, o melhor é perguntarem ao Belmiro de Azevedo, se chega ou não. Quanto a funcionário de autarquia ou qualquer coisa pública similar, acho que temos para aí uns estudos que dizem que, entre outras coisas, uma das causas da ineficiência dos serviços públicos é a baixa formação dos seus funcionários.

Dois: o financiamento. Diz Eduardo Pitta que, ao que sabe, nenhuma universidade encosta as propinas ao tecto permitido. Eu também não sei, não andei a ver. Mas sei que a maioria dos politécnicos cobra o máximo que a lei permite, isso sei. E sei que isso não resolve o problema financeiro das instituições. Nem sequer discuto agora a bondade da lei, sei simplesmente que isso não resolve.
Mas o mais tipicamente liberal na posição de Eduardo Pitta, digamos assim, é mandar as universidades ver como se faz lá fora. Eu até vou dar de barato que o que se faz lá fora (e este lá fora é basicamente os Estados Unidos) é bom e acertado [que do meu ponto de vista não é, mas vou fazer de conta que sim]. Eu só queria que me dissessem onde é que cá dentro estão os milionários ou os quase-milionários ou as grandes empresas que podem ou fazer o mecenato ou comprar a quantidade de serviços às universidades que as possa sustentar. É arranjarem aí a lista que há muito Reitor que está farto de andar atrás disso como de agulha em palheiro.
De raspão, Eduardo Pitta diz que ouviu dizer que a Universidade do Minho é um bom exemplo de venda de serviços à comunidade. Pois... No longo reinado de Machado dos Santos, verdadeiramente o primeiro gestor das universidades públicas, venderam-se serviços, sem dúvida, angariaram-se projectos, sem dúvida, mas sobretudo proletarizou-se a docência [mais horas por menos docentes]. Financeiramente, os resultados foram bons: quando o Orçamento de Estado mal dá para os salários e se consegue poupar nos salários, há sempre uma folga. A investigação, coitada, é que lá se ressentiu um bocado. E a angariação de projectos lá começou a claudicar por causa disso. E a prestação de serviços começou a ter a concorrência de algumas unidades de Aveiro e do Porto, que se desenvolveram um pouco mais (a investigação sempre serve para alguma coisa, não é?..) e começaram a oferecer melhor produto ao mesmo preço. De modo que na campanha para o último mandato, já lá vão uns anitos, o gestor lá reconheceu que, “arrumada a casa”, era tempo de apostar mais decididamente na investigação e na excelência científica... Pescadinha de rabo na boca: a aposta custa dinheiro, mas só com essa aposta se pode ir buscar dinheiro, e nem sempre as coisas se equilibram.
Se me disserem que há instituições a mais, etc e tal, aí a conversa já é diferente. Pelo menos para mim. Redefinir a rede pública, eis a urgência. E a coisa política por excelência. Porque conheço muito pouca gente (e então a nível de reitores ou reitoráveis quase ninguém, e a nível de presidentes ou presidenciáveis do politécnico rigorosamente ninguém) que não ache a sua instituição absolutamente indispensável e a do vizinho nem tanto, para não dizer nada. Mas também, em boa verdade, não lhes cabe propriamente fazer esse trabalho. Se o Estado regula, que regule. Porque o problema da asfixia das universidades só em termos imediatos é das universidades. A não ser que se pense que essa conversa da sociedade do conhecimento é só conversa e que não há uma relação directa entre conhecimento e desenvolvimento [claro que isto já não é para o Eduardo Pitta mas para aqueles que se agarrarão ao seu post como taxistas: esses gajos do superior que não fazem um caracol etc etc e até se dão ao luxo de ter um blog etc etc].

A Leitora, no seu infinito particular (XXX)


É esse o curso da natureza, dizem. Um a um partirão. Os que estavam cá quando cheguei. Os que fizeram disto a casa que habitei. Um a um partirão, já partiram. Os que me chamaram até às fronteiras onde foram. Os que legaram tudo, e tudo deixaram ainda para ser descoberto. Como uma dádiva, uma tarefa, um encolher de ombros. É também esse o curso da natureza, dizem. Talvez. Por isso outros chegam — tão novos. Deveria ser a mesma coisa, mas não é. Visto de fora, será. E compreendo muito bem que seja. Só pode ser, está certo que seja, ainda bem que é. Mas não para mim, não para quem já chegou e começa a perceber um pouco melhor o lugar nenhum por onde partirá. Mas esse é também o curso da natureza, dizem ainda. E só podem estar certos, eu sei que só podem estar certos. Eu sei. Estão certos. Mas curioso como o desajuste nunca se acerta. Nunca. Tão curioso. Nunca. Quase nunca. Não importa.

A Leitora, no seu infinito particular (XXIX)

Depois de infinitamente rodar no carro e em casa e no jogging. Depois de já me ter esquecido dele, mas só um pouco, contudo o suficiente. Depois de muitos dias e muitas noites e outra vez dias. Ressurge de súbito no carro, exactamente no momento em que o relâmpago atingiu a árvore, o carro da frente guinou para a outra faixa e eu me encostei à berma, bem ao lado da cicatriz negra e fumegante, respirando fundo pelo milagre de ninguém vir em sentido contrário nem atrás de mim, ouvindo fundo o carro da frente que voltou à sua faixa quase sem abrandar, como se tudo tivesse sido normal, normal eu também e o carro lento seguindo viagem, apenas a cicatriz negra da árvore e a música, a música e aquele homem atravessando a estrada no retrovisor, nítido ampliado, o carro deslizando curva lenta à direita e o chapéu com a sua sombra sobre o rosto, retiro os olhos do retrovisor para que o homem passe, mas como? como?, não importa, olhar em frente, há-de vir um outro relâmpago, não te assustes, estás perto, o fim de tarde e a música, estás perto.

Cesariny # 6


“Olha, tenho saudades de voar! Ah isso tenho, porque eu, não sei desde quando, mas quase desde miúdo, até aí aos cinquenta anos, eu todas as noites já adormecia a sorrir de gozo, porque eu sonhava SEMPRE que voava, e era uma coisa tão boa, tão boa, tão boa, uuuiiiii! E depois não tinha... quer dizer, não havia... paisagem, era o espaço puro, não se via nada. Depois aos sessenta anos, nunca mais sonhei. (ri) Os freudianos acho que ligam isto também à coisa sexual. Mas eles dizem muita coisa...”

Mário Cesariny de Vasconcelos, Verso de autografia

Cesariny # 5


“E eu estou para aqui, mas eu sou um fantasma, sabes? Já sou um fantasma de mim mesmo, julgas que eu leio os meus poemas? Nunca! Li agora um ou dois. Passou! Passou... Quer dizer, está cá dentro! Não sei se é no fígado, não sei se é no baço, não sei se é... faz favor de perguntar outra coisa.”

“A morte: o Lima de Freitas um dia explicou-me como é. É assim: "Vossa Senhoria é um rio, você vai por ali abaixo todo contente. Depois vai dar ao mar. Está lá no mar, mas já não é um rio. Está lá.»
Então para que é que isto serve? Não sei, serve para foder que é muito agradável e dá muito gozo. Serve para amar... e serve para morrer. Pronto!”

Mário Cesariny de Vasconcelos, Verso de autografia

Cesariny # 4

Se isto são maneiras, vão-me perguntar: nada sobre o homem, nada sobre a obra, poemas que não vêm nas selectas (selectas?), e então Elsinore, e então o louvor e simplificação, e então?...
Exactamente isso, e então? Está tudo por aí. É só rodar. Rolar. Não tem nada que saber.

Cesariny # 3


Todos por Um


A manhã está tão triste 

que os poetas românticos de Lisboa 

morreram todos com certeza

Santos 

Mártires 

e Heróis

Que mau tempo estará a fazer no Porto? 

Manhã triste, pela certa.

Oxalá que os poetas românticos do Porto 

sejam compreensivos a pontos de deixarem 

uma nesgazinha de cemitério florido 

que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de 

recorrer à vala comum

Cesariny # 2


A um rato morto encontrado num parque 



Este findou aqui sua vasta carreira 

de rato vivo e escuro ante as constelações 

a sua pequena medida não humilha 

senão aqueles que tudo querem imenso 

e só sabem pensar em termos de homem ou árvore 

pois decerto este rato destinou como soube (e até como não soube) 

o milagre das patas - tão junto ao focinho! - 

que afinal estavam justas, servindo muito bem 

para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar 

atrás de repente, quando necessário 

Está pois tudo certo, ó "Deus dos cemitérios pequenos"? 

Mas quem sabe quem sabe quando há engano 

nos escritórios do inferno? Quem poderá dizer 

que não era para príncipe ou julgador de povos 

o ímpeto primeiro desta criação 

irrisória para o mundo - com mundo nela? 

Tantas preocupações às donas de casa - e aos médicos - 

ele dava! 

Como brincar ao bem e ao mal se estes nos faltam? 

Algum rapazola entendeu sua esta vida tão ímpar 

e passou nela a roda com que se amam 

olhos nos olhos - vítima e carrasco 

Não tinha amigos? Enganava os pais? 

Ia por ali fora, minúsculo corpo divertido 

e agora parado, aquoso, cheira mal. 

Sem abuso 

que final há-de dar-se a este poema? 

Romântico? Clássico? Regionalista? 

Como acabar com um corpo corajoso e humílimo 

morto em pleno exercício da sua lira?


Durante muitos anos, quis fazer um raccord com Kafka a partir deste poema. Depois deixei-me disso. Acho que simplesmente percebi que o raccord era mesmo comigo. E dizem para aí (alguns…) que a poesia não ensina nada.

Cesariny # 1

Era no tempo em que os poetas não odiavam outros poetas, só alguns, que eram ódios de estimação, por assim dizer, e por isso não eram propriamente ódios. Tal como hoje, aliás, que nestas coisas tudo muda muito pouco.
Cesaryni fez a sua linhagem, como todos os autores (uns melhor, outros nem por isso — aliás como hoje, etc e tal).
Um momento da linhagem foi a exposição Três Poetas do Surrealismo, em homenagem a António Maria Lisboa, Pedro Oom e Mário Henrique Leiria. Ele tinha muitos originais, não sei se dá para entender a responsabilidade que isso traz. E Cesaryni foi muito responsável. E de certeza que me dava uma bofetada se eu dissesse isto ao pé dele. Mas eu nunca estive ao pé dele, e se estivesse lá levaria a bofetada e depois fazia de Derrida, quanto ao legado, e quanto à bofetada. Adiante. O original acima é do Pedro Oom. É muito actual, não é?.. E cá para mim ainda tem um grande potencial de actualidade para desenvolver.

Mário Cesariny de Vasconcelos, 1923-2006

Lugar-comum verdadeiro: poetas e romancistas não morrem. Nós é que morremos um pouco, se não deixarmos que eles nos tornem vivos enquanto ainda podemos sê-lo.

O Poder das Narrativas / As Narrativas do Poder # 5

Para a conversa com Lídia Jorge e José Eduardo Agualusa, o anfiteatro quase encheu. Sobretudo estudantes. Não fizeram perguntas — quando me pareceu que estavam a ficar desinibidos, o tempo esgotou-se — mas ouviram atentos. Não houve saídas a meio nem bocejos incontroláveis. Claro que a presença em pessoa dos autores faz parte do star system, etc e tal. Mas é também uma terapia importante de dessacralização da literatura e dos autores. Ou melhor dito — porque isto de sacralizar tem muitas voltas, que vão do Saramago ao Figo —, é uma terapia importante de desclassicização da literatura (ok, o termo é complicado, depois penso noutro). Trazê-la do pedestal onde por vezes se imagina (e onde esteve no século XIX e princípios do século XX como arte dominante) para a companhia terrestre das outras artes, desde a música pop ao cinema. Quem escreve é de carne e osso. E mais vale que quem é de carne e osso se mostre, dando a ver a distância a que fica do papel. Em todas as artes, quem é bom, é só isso que faz quando vem a público como pessoa: mostrar a distância a que fica da arte que lhe calhou em sorte. O público agradece e predispõe-se a percorrer essa distância: se o autor sobreviveu, está bem e recomenda-se, porque não experimentar um pouco daquilo?

O Poder das Narrativas / As Narrativas do Poder # 4

“-Moderaste muito bem. Fizeste duas perguntas para arrancar e deixaste correr o marfim. Apagaste-te. É como se não estivesses ali. É uma grande arte, passar despercebido.
- Obrigado, mas eu sou mesmo assim. Inexisto.”
(conversa com congressista devidamente identificada)

O Poder das Narrativas / As Narrativas do Poder # 3

“Às vezes os livros tornam realidade a ficção que lá vem. Depois de O vendedor de passados, recebi realmente propostas de gente que queria que eu lhes escrevesse um passado. E eram propostas muito tentadoras, do ponto de vista financeiro.” (José Eduardo Agualusa)

“Eu só queria que se dissesse de mim que tinha conseguido criar uma figura. Criar uma figura que já existe na realidade é fácil. Criar uma figura que pudesse existir na realidade, mas que ainda não existe, isso é a glória de um romancista.” (Lídia Jorge)

O Poder das Narrativas / As Narrativas do Poder # 2

“Ao menos os académicos, os filósofos, deviam-se abster de considerar Paulo Coelho um pensador.” (Lídia Jorge)

“Paulo Coelho entrou na Academia Brasileira, mas a Academia Brasileira nunca foi uma Academia de Literatura, se é que alguma vez foi uma Academia do que quer que seja.” (José Eduardo Agualusa)

O Poder das Narrativas / As Narrativas do Poder # 1

“Há uma suspeita generalizada contra a metáfora. Há uma enorme impaciência contra aquilo que não é directo e imediatamente inteligível.” (Lídia Jorge)

“Hoje lê-se muito, muito mais do que há quarenta anos atrás. Incomparavelmente mais. É verdade que se lê muito mal, mas sempre se leu muito mal. Mas também há gente que lê muito bem. E esses são mais do que eram há quarenta anos atrás.” (José Eduardo Agualusa)

Reencaminhar de mail, até porque não era para mim (suponho...)

Hello!

I am Julia. I am very kind, modest cheerful, merry and sociable. I like
 communicate with interesting and cheerful people. I am very romantic
 person. I am optimist and I always can find good sides in any situation.
 I like kind, sincere and reliable people. I value friendship, and when 
my friends in need, I always come to help them.
 I would like to know you. What is your life foundations? 
I like dance and sing very much, I found of this for many years. I love 
to spend time in open air and walking under the stars. I like nature and 
animals so much. And I adore to have fun time with my friends, but
 sometimes, I want to be alone. I like sport and moving so much and I
 cant to be in one places for a long time. Do you like sport? 
I have some questions for you if you want to get to know me closer:


1/ Are you interested in serious relations with Russian woman?

2/ Are you planning to visit Russia?

3/ Would you like to correspond or to talk by phone?

4/ Why are you interested in Russian lady?

5/ Have you ever been to Russia?

6/ What is important for you in relations and am I right for you?


I will be waiting for your reply to
admin@1BRIDE4UWEB.INFO



I would like to contact with you. Do you have a messenger?

My best wishes, Julia


Dar a volta à coisa # 3

Tira-me as teimas. Eu deixo.

Dar a volta à coisa # 2

Ou sim ou comes a sopa. Tens trinta segundos.

Dar a volta à coisa # 1

Ou fodes ou sais de cima. E é já.

Boa educação # 1

Fazer passar por desvelo o que é dor de cotovelo.

Epifanias # 41

Aquele momento em que o sono e o cansaço baralham de tal modo as histórias que em cada esquina há uma porta para um romance novo. Mas justamente, o sono e o cansaço impedem-nos de entrar.

O Poder das Narrativas / As Narrativas do Poder

É o tema do VIII Colóquio de Outono, organizado pelo Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, a decorrer hoje (quinta) e amanhã.

Mais logo, pelas 17h, haverá uma mesa redonda com Lídia Jorge e José Eduardo Agualusa. Dadas as potencialidades bélicas da temática, actuarei disfarçado de moderador.

Saídas pela direita baixa

Credo, essas coisas nem sequer se discutem.

Saídas pela esquerda baixa

Mas quem me mandou a mim meter-me com esta gente.

Entradas em falso [versão alternativa]

Pois muito bem, disse ele. E fez pausa. Mas não chegou a continuar.

Entradas em falso

Ora bem, disse ele. Mas depois calou-se, não sabia mais que dizer.

Epistemologia da intimidade dos assentos nos carros de última geração (ufff...)



Então é isto: se te vais pôr em cima de mim (o que eu até acho muito bem...), ficas sabendo que sou possessivo e que gosto de coisas bem ajustadas, baby. Daí o cinto de segurança, you see? As long as te ponhas em cima de mim, pode ser só para uma rapidinha, por via do café ou dum drink ali na chafarrica da esquina ou noutro lugar pertinho. Pões-te em cima de mim e tem que estar tudo nos conformes, ok? Bem ajustadinho, bem encaixado, é como eu gosto. Se tiras ou não pões o cinto eu grito. E grito cada vez mais. Espero que distingas gritos de prazer de gritos de dor. Porque depois de gritar, se não te ajustas, eu paro. Stop. Completamente. Totally. Taxativamente. No way. Onde quer que seja, stop. Por questões de segurança, motherfucker. Para te proteger, baby. Ou tens problemas com estes compromissos? Stupid bitch. Só te quero enlaçado enquanto estás enterrado. No resto vais à tua vidinha, não tenho nada a ver com isso. Mas enquanto estás comigo, actually comigo, estás comigo, baby. Então é isto, love: não enlaças, não deslizas. Easy. Attention, safety belt. Ou eu grito. Grito! GRITO! GRITO!!! Stop.

Epifanias # 41 [sem raccord de violoncelo]

Esta pop desconcertante, como se de repente voltasse à minha adolescência céltica, e isso fosse um dos segredos de adulto que tenho de saber perder.

Psicopatologia da vida quotidiana

Prefiro os f.d.p. rasteirinhos, sacanas e hipócritas: sabem que são mesmo f.d.p., estão dispostos a negociar alguma razoabilidade, e percebem quando o outro diz que há coisas inegociáveis. Já os f.d.p. que se têm em alta consideração moral, que agem em nome dos sacrossantos princípios, cada um mais escorregadio e conforme ao rebuscado das conveniências, mas sempre com o cuidado de taparem todas as brechas por onde fosse possível que enchergassem o triste espectáculo deles próprios — esses assustam-me. Um pouco de poder, e ei-los salivando por mais poder. Mesmo que seja uma coisa de caca, ali nos confins da província, um reino de uns quantos metros quadrados e algumas cabeças obedientes. Mas não foi assim que começaram todos os grandes ditadores? Não, Hitler não foi uma excepção. A excepção foi o tempo e as circunstâncias. O que admira é não ter havido mais ao longo da história — mas se calhar eu sei é pouco de história. Se calhar é isso.

A Leitora, no seu infinito particular (XXVIII)

- Com que então, Calimero e Muttley, hem?
- É como vês.
- O Calimero ainda conhecia, agora o Muttley confesso que tive de ir fazer uma pesquisa.
- Tempos antigos, de facto. Almoçava a ver essas séries.
- E porquê o aviso? Véspera de grandes manobras?
- Não te preocupes, eles sabem porquê.
- Oh, eles, estou a ver...
- Em certos momentos é mesmo assim, eles e nós. Com esta diferença importante: antes, não existiam eles nem existíamos nós. Foi na resposta a uma questão que de repente nos achamos de dois lados. De um lado, vi-os a eles. Do outro, ficamos nós. Foi uma escolha, Leitora. Eles escolheram ficar daquele lado, nós escolhemos ficar deste. Tem consequências.
- Sim, estou certa que sim. Mas não vais transformar o blogue numa emissora de recados, pois não?
- Só se tu achares que aquele tipo em quem o Charlot enfia o candeeiro só pode ser o director da EDP ou coisa que o valha... Mesmo que o Charlot visasse de facto o director da EDP lá do sítio...
- Ok, então ficamos assim.
- Ficamos. Mas aparece mais vezes, sim?
- Não quis interromper as tuas epifanias.
- Não interrompias.
- Aquilo vai a algum lado?
- Mas que pergunta, Leitora!
- Ok, então ficamos mesmo assim.
- Espera. E a casa? Ou os tarecos que já não cabem no carro, como é que está isso?
- Pequenas manobras, eu depois explico. Melhor, depois convido-te. Não há nada como ver in loco.
- Ah, a empiria...

Mulheres belas, por assim dizer

Lesley Sharp em Naked, de Mike Leigh

Pelo menos dela lembro-me, e até foi no filme mais esquerdista pessimista dele.

Epifanias # 40 [claro...]


ps: senhoras e senhores professores doutores por extenso, depois não digam que eu não avisei...

Epifanias # 39 [... ser um Muttley?]

Epifanias # 38 [pode um Calimero...]

Epifanias # 37 [da blogosfera como adido de imprensa]

Três ou quatro minutos de leitura nos blogues no costume e foi como se tivesse visto o Santana e o Cavaco e aquela coisa que ganhou as audiências.

Epifanias # 36 [vantagens do trabalho]

Não pude ver nem Santana nem Cavaco nem aquela coisa que ganhou as audiências.

Breve história da leitura em comboio seguida de um pedido aos Senhores da CP

No começo do mundo, aí por volta dos anos oitenta, uma viagem Braga-Lisboa demorava cerca de seis horas. Fora das horas de ponta, até que podia ser uma coisa catita. Havia aqueles comboios que tinham compartimentos para seis pessoas, lembram-se?, e era perfeitamente possível fazer a viagem inteira sozinho. Ler era fácil, e de vez em quando ainda dava para olhar a paisagem. A mala é que ia carregada, porque eram necessários vários livros: mudar o registo era imprescindível, para não esmorecer a atenção.
Vieram depois os inter-cidades. Maior conforto, mais rapidez, ler era um regalo, e a mala ia um pouquinho mais aliviada. Até que, mesmo fora das horas-de-ponta, viajar em segunda se tornou um banho de multidão, com conversas altas, miúdos a berrar e outras coisas perniciosas à concentração da leitura.
Voltei à primeira classe e por lá me mantive, a bem da leitura, até ao advento dos telemóveis. Se o seu sucesso foi o que se sabe, nada como a experiência própria para poder assegurar que, antes da sua vertiginosa democratização, foram um gadget elitista. E como as pessoas não estavam habituadas, que para tudo é preciso aprendizagem, era ver como respeitáveis cavalheiros que no “tu cá tu lá” não passavam de um sussurro discreto, se erguiam a vozeirão de sargento falando em andamento para os seus clientes e escritórios. Ainda hoje guardo o trauma de ouvir distintamente o distinto Dias Loureiro — à altura ministro, nem mais —, com pelo menos dois telemóveis (um em cada mão eu vi, no resto não passei revista) e cem problemas urgentes para resolver logo ali, cada qual exigindo ordem mais alta e sonante.
Voltei brevemente à segunda classe, mas foi sol de pouca dura. Nunca um anúncio foi tão educativo como aquele do “tou xim!”: o povo aprendeu a atender, e de repente toda a carruagem era só pastores e eu deixei de poder pastar as minhas ervinhas pensantes em paz...
Por razões que não vêm ao caso, durante uns anos calhou não frequentar comboios. Agora que a eles voltei, pouco espaço há para a leitura: a classe turística é impossível, entre telemóveis e filmes em computador com som “ambiente”; a classe conforto impossível é, entre telemóveis e conferências em alta voz.
Senhores da CP: que tal uma carruagem, ou meia-carruagem, em que não fosse permitido atender telemóveis, ouvir música em auscultadores ou falar com o parceiro do lado? Obrigado.

Alfa Pendular, classe conforto # 6

O meu chefe quer-me mandar seis meses para Espanha. Tenho que agarrar isto, é uma promoção, mas acho que vou perder o Jorge. (...) Ele não é desses, estás a ver? (...) Não, ainda não lhe disse. (...) Ainda não está nesse ponto. Eu é que decido. Mas vou perdê-lo, estás a perceber. (...) Isso também não.

Alfa Pendular, classe conforto # 5

É, agora começou uma terapia ocupacional, está melhor, mas isto é muito pesado. (...) Quando as coisas chegam a este ponto, que é que se pode fazer? (...) Só quem vive estas coisas é que sabe. Todos os dias me apetece fugir e todos os dias vou lá. Não consigo deixar de ir lá.

Alfa Pendular, classe conforto # 4

Querido, o papá agora tem uma chamada para atender. Faz os deveres, sim? (...) Sim, podes comer um, mas só um, está bem? Vá, xau, um beijinho, filho, xau, um beijinho.

Alfa Pendular, classe conforto # 3

A versão oficial é que eu não sei. Esse anexo tem que ver com as frequências mensais, mas a versão oficial é que eu não sei. (...) Não, não vamos fazer isso. Vai por mim. Deixa-os pousar. Depois a gente entra a matar. (...) Mas claro que não lhe vais dizer nada, nem uma palavra. Muito menos a esse tipo. Nem uma palavra, ouviste? Agarra-te à versaõ oficial. Eu não sei de nada, percebes? Faz como te digo.

Alfa Pendular, classe conforto # 2

Ó Susana, não percebo aqui este documento. Os mil e duzentos quilos foram facturados a pronto ou a noventa dias? (...) Mas ó Susana, isso é um disparate, valha-me deus. Diga já ao Nelson para escrever isso tudo. E não se esqueça de marcar o almoço com o engenheiro, ouviu?

Alfa Pendular, classe conforto # 1

Estive um mês sozinha e tu ligaste-me uma única vez. Não me venhas agora falar da nossa relação porque não há relação nenhuma.

E por falar em trabalho

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Não resta hoje um único edifício inteiro — como acontece em praticamente todo o interior angolano. [Pedro Rosa Mendes, Baía dos tigres, p. 43]
Todas as proporções guardadas, este é o resultado de praticamente um dia de trabalho sobre a obra de Pedro Rosa Mendes. Um último save, uma encrenca qualquer, e de repente as oito páginas ficaram como a amostra de cima. Consultados os pronto-socorro do costume, o veredicto é simples: se houve save, nada a fazer. Pelo menos, nada tão rápido que permita o texto já para amanhã. Um pouco mais da noite para reconstituir o que me calhou pensar. E amanhã falar com uma rede muito esburacada. Enfim, se me estatelar, do chão para baixo não passo.

De volta à realidade, uma certa espécie de luta de classes

Trabalhar, trabalhar, trabalhar.
Se alguns de nós, em vez de produzirmos textos ou guiões para aulas e seminários e cursos, produzíssemos penicos (penicos?! mas nem vale a pena psicanalisar), acho que pela certa haveria um novo design revolucionário: o penico-vaso, o penico-candeeiro, o penico-fruteira, o penico-tacho...
Mesmo sabendo que alguns de nós não são a maioria de nós — oh! sei-o muito bem, então não sei? —, mesmo assim, acho que no índice de produtividade nacional os alguns de nós não devem ser contabilizados. Porque quando me perguntam quantos dias de aulas dou, e eu explico que não é por dias mas por horas, que são oito, e que o resto é para estudar em casa e para trabalho administrativo, o olhar que me devolvem só tem uma pergunta: mas onde raio estão os penicos que fazes?!

Epifanias # 35 [homeway from home]

Com o nevoeiro, falhei a saída da auto-estrada. O computador de bordo dizia que tinha gasolina para mais 547 km. Why not?

Keith, Gary, Jack

Não há ponta de narcisismo, auto-complacência ou exibicionismo na música deste trio. São como crianças grandes: tudo sabem, mas não perderam ainda o encantamento por descobrir. E isso transmite-se.

Keith Jarrett, Gary Peacock, Jack DeJohnette

O trio vive em estado de perfeição. Isso já se ouvia nos discos, mas não há como a actuação ao vivo para se perceber o quanto é verdade. O entendimento faz-se por dentro da música, e os pormenores chegam a valer tanto como o todo: esse momento que percebemos perfeitamente que está a acontecer ali com inesperada naturalidade. Por exemplo: um solo de Jack DeJohnette, com Jarrett e Peacock a dialogarem em fundo sobre o tema principal. Ou o modo como em alguns finais Jarrett parece querer recomeçar e os companheiros sintonizam de imediato, criando-lhe o espaço para essas pequenas derivas. Ou o modo imperceptível como o trio acelera e desacelera.
Tudo esteve perfeito. Mas seria injusto não dizer que Gary Peacock teve uma noite mais-que-perfeita.

Keith Jarrett

Havia alguma tensão no ar. Há 25 anos foi o que se sabe, e Jarrett tinha jurado que nunca mais viria a Portugal. Na semana passada, em Paris, houve tosse a mais. Daí o aviso da direcção no princípio: tussam o menos possível…
Por duas vezes, Jarrett abandonou momentaneamente o palco, uma delas interrompendo a introdução ao tema. Calafrio. Mas era apenas qualquer coisa nos óculos.
Em nenhum momento o público aplaudiu na passagem de Jarrett para Peacock – foi quase sempre essa a passagem -, provavelmente com medo de que ele se desconcentrasse. Mas Peacock foi aplaudido, e tinha um sorriso bondoso.
Jarrett esteve todo o tempo de costas: é essa a posição que decorre da organização do trio, mas faltou uma palavra ou um sorriso mais aberto.
No fim, o sorriso veio. Jarrett rendeu-se ao público do CCB. Estava bem disposto, e nos gestos para os companheiros disse que tinham de dar ainda um segundo encore. Foi When I fall in love, it will be forever. Já não havia tensão nenhuma, apenas encantamento. E sim, seria fácil ficar ali para sempre.

Patricia Barber # 3 [tomem lá o que querem]

De Mythologies, apenas um tema. No resto, standards: um programa muito defensivo, pensando num público conservador. Sobretudo no início. Depois a coisa foi-se soltando. E é espantoso que ainda se possam dizer coisas novas sobre Autumn leaves, por exemplo.
Uma surpresa (para mim, pelo menos): Patricia Barber é uma excelente pianista; duas confirmações: o quarteto é orgânico, e não vive apenas da mestria musical da sua lider; a postura solta de Patricia Barber assenta numa organização muito meticulosa do programa de cada composição, sobre o qual se vai fazendo o que o momento dita.

Patricia Barber # 2 [coisas que só num concerto]

Entrou e sentou-se ao piano. Descalçou as botas e tirou as meias. Esteve descalça até ao fim. Disse que a madeira do palco era muito confortável. Também levava uma máquina fotográfica. Quando a música estava entregue aos outros, tirava-lhes fotografias. No final, já de luzes acesas, fotografou o público e a sala. E o público fotografou-a a ela.

Patricia Barber # 1 [antes e depois]

Sala cheia, mas dos mares de gente nova de ontem quase nada. Toda a brigada do reumático marcou presença, pessoas que não via há muito tempo, porque a cidade é grande e as convergências poucas. Não sei se isto são boas notícias para o jazz, mas adiante.

Epifanias # 34 [restos do sono, 2]

Disse o anjo: Reparaste nos músicos? Vi-os a todos no teu sonho. Homens. Excepto a violoncelista.

Epifanias # 33 [restos do sono, 1]

Disse o anjo: Estive a ver atentamente os teus sonhos. Foi como assistir ao concerto com comentários. Sabes que te lembraste muito do Quando tudo arde?

Antony and the Johnsons / Charles Atlas # 4 [almodovar]

O encore. Com os modelos todos espalhados pelo palco, em repouso e convivência como numa grande casa de sororidade. Precisamente, Sisters. A grande e terna humanidade.

Antony and the Johnsons / Charles Atlas # 3 [corpo & raccord]

Antony não é Lura. Mas é também e só corpo. Mais exactamente, mãos e braços. Como se Vera Mantero lhe tivesse desenhado os movimentos que descompassam a melodia que segue perfeita à superfície. Mas que leva no fundo o desequilíbrio da existência. E que dele extrai o que só verdadeiramente pode ter existência como música. Aquilo é a vida dele.

Antony and the Johnsons / Charles Atlas # 2 [ao vivo]

Quase perfeito. A dimensão da imagem foi o menos conseguido. Mistura um pouco monótona de MTV e Canal Moda, explorando os rostos de cada um dos modelos que, canção após canção, subiam para um minúsculo palco giratório ao lado direito, e eram projectados em circuito vídeo no écran que fechava em fundo o palco. A vantagem dessa monotonia é que não se sobrepôs ao fluir natural da música. Mesmo assim, houve pontos altos na conjugação música & imagem. O mais extraordinário de todos terá sido o longo momento de suspensão em negro — falling in love for a dead boy —, e algumas passagens da cor para o preto e branco.

Antony and the Johnsons / Charles Atlas # 1 [antes e depois]

Já se sabia que a sala estava esgotada, mas foi bom comprovar que era mesmo verdade. Algumas caras da minha geração. E mares de gente nova. Uma cidade um pouco mais viva. No fim, o passeio em frente ao Teatro Chirco foi estreito para as conversas e a vontade de estar. O projecto de prolongar o túnel, transformando toda a largura da avenida em área pedonal, faz sentido.

Epifanias # 32 [modo de espera]

Antony Patricia Barber Keith Jarrett
sexta sábado domingo

Epifanias # 31 [track 2: repeat mode]

Quando chego àquele ponto em que quero saber exactamente qual a letra transportada pela melodia, e a letra acerta sempre.

I’m a little lost / Without you / That could be an understatement / Now I hope that I have paid the cost / to let a day go on by and not / Call on you / ‘Cause I’m so busy, so busy / Thinking about kissing you / Now I want to do that / Without entertaining another thought.

I’m a little lost / Without you / That could be an understatement / Now I hope that I have paid the cost / to let a day go on by and not / Call on you / ‘Cause I’m so busy, so busy / Thinking about kissing you / Now I want to do that / Without entertaining another thought.

I’m a little lost / Without you / That could be an understatement / Now I hope that I have paid the cost / to let a day go on by and not / Call on you / ‘Cause I’m so busy, so busy / Thinking about kissing you / Now I want to do that / Without entertaining another thought.

Epifanias # 30 [concreta]

Três gatos à lua das sete da tarde. Agora sim, a hora mudou. Fora da empiria há salvação, mal de nós se não houvesse. Mas nada chega ao encontro do concreto do mundo. Ainda que nestes três gatos, o gato número dois, precisamente o gato número dois, aquele que está entre o gato número um e o gato número três, tenha sido o violoncelo do senhor arthur russel. Mas já se sabe: poucas coisas são tão criativas quanto o concreto do mundo.

Epifanias # 29 [da Leitora, raccord em violoncelo]

Já me tem acontecido: chegar tarde a certos momentos da música, quando o que veio depois enterrou o que estava antes. Fora do jazz (e mesmo aí...) ou da clássica, acontece muito. A Arthur Russel, por enquanto, chega-se a tempo. Obrigado, Leitora. É bom saber que tu sabes.

Epifanias # 28 [isto sim, é uma epifania]

Decididamente, I can’t get no satisfaction refere-se ao trabalho. Melhor. Ao trabalho que advém de uma profissão que tem muita mais proletarização e burocracia do que aquela que nos disseram à partida. Não fomos escolhidos por sabermos fazer isso, mas a partir de um dado momento parece que tudo se resume a fazer isso. Fui apanhado.

Epifanias # 27 [Hooper no terminal de mercadorias]

O grande armazém branco, com o logótipo azul da Secil. Os sacos brancos de cimento ordenados cá fora. E também em cima dos wagons abertos. Os projectores fortes nos candeeiros altos, contra um céu azul escuro. Hooper está do lado de lá da linha férrea, no terminal de mercadorias. Do lado de cá está a laranjeira, o monte em frente, a relva aqui em baixo. Não é só uma questão de para onde se olha, mas também daquilo que a luz permite olhar. E daquilo para onde os projectores obrigam a olhar.

Epifanias # 26 [da Leitora]

Com isto, tudo o que tenho deixa de caber no carro. Nem sabes o medo que isso me faz. Nunca fui menina de brincar às casinhas, percebes?

Epifanias # 25 [que só a si o estudo se ilumine?..]

Há uma dose de autismo que é inevitável. Por exemplo, quando temos de arrancar a nós mesmos aquilo que não sabemos, porque estamos cegos e incapazes de o encontrar aí por fora. É um dos limites do cansaço, mas é também uma ponte para o descanso possível. Como em tudo, há autismos e autismos. Há Lobo Antunes. Há Rostropovich. E há esta coisa de tresler umas quantas páginas para delas extorquir uma ideia. Ou um esboço de ideia. Ou o seu rasto ténue. Ou ponho lá a ideia que depois hei-de encontrar. O que também é complicado. Sem deixar de ser uma questão de autoridade. Rostropovich tinha essa autoridade. É por isso que a gente ouve e estremece dos dois lados. Do lado do não é assim, e do lado do que se calhar melhor fora que tivesse sido assim.

ps: começou a chover. obrigado.

Epifanias # 24 [finalmente, alguém que me compreende…]

Era isso que devia estar a fazer, não a bloggar, nem a procurar papers num poço seco, nem às voltas com bolonha, nem a aturar-me a mim mesmo, nem… pronto, pronto, já me calei, realmente não há pachorra para tipos como eu.

Epifanias # 23 [se ao menos chovesse, achava que era menos desperdício ficar a trabalhar]

Hum… dieta metafísica rigorosa que implica grande contenção na escrita de textos curtos? Assim de repente não me parece um mau programa, se calhar também precisava. Temo é que a minha também pouca sanidade mental não aguente: faltam-me os três anos de endurance.

Epifanias # 22 [ressalva]

Certo, acreditei noutras coisas. Seria um assassino se não tivesse acreditado. Continuo a acreditar. Mesmo que tudo esteja já desfocado. Eu incluido.

Epifanias # 21 [so what?]

Desse ponto de vista, é um beco sem saída. Mas não me lembro de alguém me ter prometido alguma vez o contrário. Bom… até prometeram. Mas eu nunca acreditei.

Um pouco da inútil realidade, a epifania segue dentro de momentos # 3

Voltando à nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário, vulgo TLEBS. Vê-se a léguas que a coisa deriva desse complexo de cientificidade que em tempos não muitos recuados assaltou os estudos literários e foi responsável pelos delírios formalistas e semióticos. O que é engraçado é que quem quer que alguma vez tenha tido na mão um protocolo de experiência científica a ser conduzida em laboratório, dessas experiências em que um pouco mais disto ou daquilo, para além de deitar por terra todo um trabalho em sequência, pode de facto dar origem àquelas explosões que associamos aos cientistas loucos — pois quem quer que tenha visto um protocolo desses e não seja da área, só pode ter ficado surpreendido pela sua extrema clareza e simplicidade.
Eu acho que o equivalente disso, dessa clareza e simplicidade, para o que ao ensino básico e secundário diz respeito, seria manter a terminologia clássica: para as funcionalidades que se desejam, chega e sobra. Mas a história das disciplinas é feita também da sua aproximação à área do poder e da visibilidade simbólica que adquirem, e tudo indica que tenha chegado a hora dos linguistas. Bem sei: não de todos os linguistas, nunca é de todos, mas precisamente daqueles que estão em condições de falar em nome de todos.
A questão, sobre ser científica, é pois também política. E é aqui que me parece que a intervenção de Vasco Graça Moura, tão elogiada, acaba por ser contraproducente para a causa anti-TLEBS. Vasco Graça Moura não argumenta cientificamente, remete para os argumentos de outros. Os argumentos não ficam invalidados por isso, é claro, mas o artigo de VGM coloca-se já na plataforma do xiste político, visando claramente o ministério. Ora, eu penso que VGM deve ter plena consciência de que o seu tom político raramente visa senão a erradicação pura e simples do adversário. Neste artigo, o tom até é relativamente comedido, mas a fama do articulista acrescenta-lhe o fel que de facto lhe falta. O que naturalmente será entendido pelos adversários como uma razão acrescida para o enquistar das suas posições. Se VGM quisesse de facto combater a TLEBS, ou visse nesse combate um imperativo maior do que esgrimir politicamente contra o ministério, saberia com quem falar ou a quem pedir que falasse sem correr riscos de má ou de sobre-interpretação política. Não é o ideal em termos democráticos? Seguramente que não. Mas há que saber viver com isso. Ou estarei enganado?

Um pouco da inútil realidade, a epifania segue dentro de momentos # 2

Cá está outra coisa de que eu não percebo nada, já não tenho tempo para vir a perceber, nem verdadeiramente quero perceber: gramática.
Sempre estranhei a persistência de algumas ideias que a prática desmentia a cada minuto. Por exemplo: a ideia de que saber gramática era indispensável para escrever bem. Tive um litígio com a minha professora do quarto ano (agora é o oitavo) a propósito disto. Cheguei a pegar nos exercícios da turma, para mostrar que os que tinham boas notas na “Redacção” tinham sempre notas mais baixas no grupo da gramática, às vezes até tinham notas negativas, como no meu caso. Mas a professora era ela.
Ou essa ideia ainda mais delirante, muito em voga na minha faculdade, de que saber latim era indispensável para se escrever bem.
A verdade é que tirando declinações verbais e alguns casos de formação de palavras ou de uso de proposições — tudo coisas que um simples prontuário ou a boa leitura elucidam facilmente —, nunca vi grande utilidade em saber o que é uma oração relativa e coisas assim. Claro que o estudo estilístico, de obras literárias ou não, é outra coisa.
Mas esta introdução à nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário, vulgo TLEBS, já está a ficar grande. E agora vai chegar o técnico do gás, para mudar todos os tubos e condutas, que esses têm prazos de validade e todos os cuidados são poucos. Se não houver acidentes, volto mais logo.

Um pouco da inútil realidade, a epifania segue dentro de momentos

Cahora Bassa podia ter vindo para Portugal, juntamente com todos os teres e haveres dos que regressaram. Acho que até nos teria feito jeito, ali para os lados do Alqueva. Mas não veio. Ao que me dizem, que disto eu percebo pouco e também já não tenho tempo para perceber, teve de por lá ficar, tal como prédios, cidades, hotéis, estradas. Eu até pensava que, naturalmente, aquilo já fosse moçambicano. Mas como disse, eu percebo pouco disto. Aliás, já nem sei a que propósito é que vem esta conversa. Ah, já sei. Fui à procura do cão — gosto muito destes passeios com o cão — e ia caindo ali nuns buracos de ressentimento com alguns comentadores à volta. Mas estou bem, obrigado.

Epifanias # 20 [Wispelwey, algum tempo depois]

Gravar a mesma obra alguns anos depois não é análogo a reinterpretar o mesmo texto alguns anos depois. A música permite-nos a repetição e a diferença. Reinterpretar só nos pede a diferença, no resto manda-nos calar. Mas isto vem mais de trás. Pode ser um problema do meu pequeno círculo de convivência, mas não conheço ninguém, a começar por mim próprio, que re-leia tanto um texto quanto ouve repetidamente uma música.