Fora de tempo # 37


É um livro zurzível a quase todos os títulos, e não posso dizer que não tenha sido avisado. Mas o Paulo José Miranda romancista interessa-me, e como o tom dos seus romances deve bastante a uma “costela filosófica”, dispus-me a ler atentamente estes 99 artigos que compõem A América. Vai para o lugar dos “estranhos até ver”: nada que mereça o meu tempo per si, mas talvez alguma coisa disto venha depois a dialogar com um romance que se lhe siga (ou não, o que seria a melhor hipótese para a sua obra, quer dizer, para a qualidade dela).


Fora de tempo # 36

 
Os lugares não são os meus, nem me reconheço na linguagem em que eles se compõem. Mas o saber está em todo o lado, e seria estupidez não aprender de novo.  
Tome-se “A Andorinha ou Tudo é Relativo”: “Da andorinha dificilmente se dirá / que é um animal feroz. Pelo contrário, / convêm-lhe adjectivos como grácil. // Mas a grácil andorinha abre / para o mosquito uma boca aterradora.” (p. 29).
Ou tome-se “Degradação”: “Toda a gente foi domingo / alguma vez. // Depois nas fezes aparecem / sinais de sangue, ou na urina. / Declaram-se abcessos, / coágulos, tumores. // Passamos então a ser uma sombria, / pesada, intransitiva / segunda-feira.” (p. 70).
São poemas que dispensam interpretação. Mas que não dispensam a execução que deles a vida fará em nós. Questão de tempo e circunstâncias, apenas.

Fora de tempo # 35


Ela, a que foi suficientemente inteligente para aprender a dar ao rabo com um pato, quase-quá, ela dispõe-se a acompanhá-lo na sua morte: “e agarrar-lhe-ei a mão com força e dar-lhe-ei um beijo na testa, um beijo como deve ser, só para lhe lembrar o que deixa atrás de si. Boa noite, Senor C, sussurrar-lhe-ei ao ouvido: sonhos cor-de-rosa e voos de anjos, e tudo o resto.” (p. 240-241). Autoridade é isto: um romance acabar na calma vulgar da comum humanidade, e isso ser o cume indesmentível de uma arte maior.

23:52

fico-me então pelo plano A, amanhã levanto-me às sete e vou trabalhar

22:40

pelo andar das coisas, nem incidências louçã nem portas, nem as faianças da Titi vão a lado nenhum

21:40

falou manuela ferreira leite, depreende-se que vamos ter algumas incidências parlamentares por abstenção
entretanto, maria de lurdes rodrigues não aceita as faianças da Titi no seu gabinete

21:09

previsões às nove: um pouco de sócrates, um pouco de louçã, um pouco de portas, um pouco de caos, incidências parlamentares

20: 47

a menina da sic: o ps dramatizou, ou nós ou o caos, parece que afinal vamos ter um pouco de sócrates e um pouco de caos

20:42

piquena dúvida: mando as faianças da Titi para o brasil, ou será suficiente guardá-las no gabinete da maria de lurdes rodrigues? empréstimo para estudo sociológico, claro...

19:42

plano A: amanhã levanto-me às sete da manhã e vou trabalhar;
plano B: amanhã levanto-me às seis da manhã, despacho as faianças da Titi para o brasil, vendo as acções, desfaço-me dos PPR, e vou trabalhar;

Fora de tempo # 34

Assim a correr, ocorrem-me uma série de razões para eleger o último capítulo de Diário de um mau ano como um dos melhores últimos capítulos de sempre. Mas argumentar isto levava tempo demasiado. A qualidade de um primeiro capítulo depende exclusivamente dele mesmo, a qualidade de um último capítulo depende da sua relação estrutural com o todo, e isso já é uma conversa longa. Ainda por cima, este último capítulo são três, ou qualquer coisa do género. Salto por cima disso tudo e fico apenas com a razão mais subjectiva — Dostoievski. Desde sempre um dos mestres de Coetzee, desde sempre um dos meus autores absolutos.
“Ontem à noite reli o quinto capítulo da segunda parte de Os Irmãos Karamazov, o capítulo em que Ivan devolve o bilhete de entrada no universo que Deus criou, e dei por mim a soluçar incontrolavelmente.” (p. 237). Percebo, oh se percebo. Mas há que saber exactamente porque se chora. Porque a argumentação de Ivan, diz-nos Coetzee, não é das mais poderosas enquanto argumentação. Concedamos. O que impressiona “são as notas de angústia, a angústia pessoal de uma alma incapaz de suportar os horrores do mundo.” (p. 238). É essa angústia convincente, é convincente e autêntica a voz de Ivan? “A resposta é sim.” (p. 239). E é por ser convincente e autêntica que não só a ouvimos como a lemos, e enquanto a lemos “há espaço bastante para pensar também: Louvado seja Deus! Até que enfim a vejo diante de mim, a batalha levada ao seu mais elevado nível! Se a alguém (Aliocha, por exemplo) for dado derrotar Ivan, por palavras ou pelo exemplo, então a palavra de Cristo será de facto vingada para sempre! E por conseguinte a pessoa pensa: Slava, Fiodor Mikhailovich. Que o teu nome ressoe para sempre nas galerias dos famosos!” (p. 239-240).
A batalha levada ao seu mais elevado nível — é esse o legado, a batalha para dentro de nós, que o lemos e prolongamos. Há sempre outros termos, talvez até a ideia de a batalha ser uma outra batalha, mas a nota de angústia, quer devolvamos o bilhete ou não, essa é levada ao seu mais elevado nível. Slava, Mr. Coetzee. As tuas lágrimas são justas. E o resto não é literatura, o resto é coisa de quem não sabe até onde pode ir a literatura.

Fora de tempo # 33

Mr. Coetzee é um ensaísta como há poucos. Sobretudo naquelas coisas em que uma vida num certo lugar segue pelos seus próprios meios aquilo que a literatura de outro lugar já foi contando: “É este, em grande parte, o tema profundo de William Faulkner: o roubo da terra aos índios ou a violação de escravas regressa de forma imprevista, passadas gerações, para atormentar o opressor. Olhando para trás, o herdeiro da maldição abana pesarosamente a cabeça: Pensávamos que eles eram impotentes, diz ele, foi por isso que fizemos aquilo que fizemos; vemos agora que eles não eram nada impotentes.” (p. 58-59)

Ponto de passagem 2009

Por mais importante que seja, uma eleição é apenas uma eleição. Não é o princípio da democracia, muito menos a sua finalidade, menos ainda o seu fim. Votar é simplesmente um ponto de passagem. Mas ponto de passagem fundamental. Neste ponto de passagem de 2009, calma e criticamente, votarei Bloco de Esquerda.

Fora de tempo # 32

Quando se descobre isto, a liberdade, sobre ser trágica e angustiante, torna-se também irrisoriamente leve (uma roleta russa obsequiosa, deferente, mas sempre irreparável):
“O eleitorado — o demos — acredita que a sua tarefa é escolher o melhor, mas na realidade a sua tarefa é muito mais simples: é ungir um homem (vox populi vox dei), não importa quem. Contar os votos pode parecer um meio de descobrir qual é a verdadeira (ou seja, a mais alta) vox populi; mas o poder da fórmula da contagem de votos, tal como o poder da fórmula do primogénito varão [na sucessão monárquica], reside no facto de ser objectiva, isenta de ambiguidades, exterior ao campo da contestação política. Atirar uma moeda ao ar seria igualmente objectivo. Igualmente isento de ambiguidades, igualmente incontestável, e poderia, por conseguinte, pretender-se igualmente bem (como já se pretendeu) que traduzisse a vox dei. Não escolhemos os nossos governantes atirando uma moeda ao ar — a moeda ao ar está associada ao jogo, uma actividade de baixa categoria —, mas quem se atreveria  argumentar que o mundo estaria em pior estado do que aquele em que se encontra se os governantes tivessem sido desde o princípio dos tempos escolhidos pelo método da moeda ao ar?” (Mr. Coetzee, a páginas 22-23).

Fora de tempo # 31

Só para lembrar algumas verdades simples: “é uma falácia elementar concluir que, pelo facto de numa democracia os políticos representarem as pessoas, os políticos são pessoas representativas.” (Mr. Coetzee a páginas 129).

Fora de tempo # 30

Mr. Coetzee dá-lhe voz a Ela, a mulher nova do romance, e o mais certo é que tenha ouvido o que se segue a uma Ela (pobre vida heterossexual, se nunca ele ouviu dela algo parecido): “Acho que o fui buscar aos patos: um abanar do rabo tão rápido que é quase um arrepio. Quase-quá. Porque havíamos de ser altivos e poderosos de mais para aprender com os patos?” (p. 40).
É isso: quase-quá.

Fora de tempo # 29



Sim, já tudo foi dito sobre homens velhos e mulheres novas. Ou postas as coisas noutros termos, sobre homens para lá do prazo de validade e mulheres que começam a desconfiar da sua segurança sexual, ainda que a exerçam imperialmente. Acrescente-se isto ao rol:


“Ao observá-la, senti pregar-se-me uma dor, uma dor metafísica que não fiz nada para conter. E de uma maneira intuitiva ela sabia disso, sabia que havia no velho sentado na cadeira de plástico ao canto qualquer coisa de pessoal a passar-se, qualquer coisa que tinha que ver com a idade e a mágoa e as lágrimas das coisas.” (p. 14)

É este o “momento”: quando o que se ergue num homem não é o seu corpo, mas o tempo que desse corpo se afasta; quando o que recebe numa mulher não é o seu corpo, mas o tempo que nele começa a assentar.

Fora de tempo # 28

 
“Aquilo em que os grandes autores são mestres é a autoridade. Qual é  a origem da autoridade, ou daquilo a que os formalistas chamavam o efeito de autoridade? Se a autoridade pudesse ser alcançada apenas por truques de retórica, Platão teria certamente justificação para expulsar os poetas da sua república ideal. Mas se a autoridade só puder ser atingida abrindo o eu-poeta a uma força superior, deixando a pessoa de ser ela própria e começando a falar profeticamente?” (p. 167-168)
O que é uma força superior? Não é Deus, a História, o Partido, a Musa, a Pátria, coisas assim. Uma força superior é qualquer coisa que se nos impõe, sem sentido pré-dado, e que nos arrasta até lá, para que o saibamos por fim sem realmente o possuirmos. Uma fala profética não é a fala que sabe mais do que os outros, é a fala que diz aquilo que não sabe.
Nos romances, as personagens “conseguidas” costumam ser bons exemplos de “forças superioras”. Mas esta forma de expressão já trai o essencial e apenas mostra a nossa dificuldade em lidar teoricamente com isto. Uma personagem “conseguida” não é conseguida pelo autor, mas consentida pelo autor, e quantas vezes contra ele próprio. A vantagem de um Grande Velho é que já se está bastante nas tintas para ele próprio — o que vem através dele já não encontra tantos obstáculos, tantas pseudo-certezas. E contudo, a coragem de um Grande Velho não tem paralelo: o vazio que reconhece em si, e que deixa espaço largo para o trânsito do que não sabe, é já o passo adiantado da morte. Para a qual caminha decididamente. 

Companhia nocturna # 67


A realidade pode ser a grande surpresa. Mas na arena dos  combates titânicos  raramente o é. A ciência da guerra é vasta, tudo assimilou, assistimos não mais do que a variações ou repetições de jogadas há muito catalogadas. O grande senhor jogou forte e perdeu. O fiel servidor consente ser oferecido como bode expiatório. O adversário triunfa com discrição, prefere ganhar uma dívida de hipotética cobrança do que partir para o assalto final. Enquanto isso, é possível — é sempre possível — encontrar um trio superlativo.

Fora de tempo # 27

 
Salvé, Grande Velho, graças pelas coisas de que só um velho é capaz, a liberdade sardónica, a autoridade que não esmaga, o sexo que ri, o pensamento que não se leva a sério e vai pensando sempre mais, a falta de paciência para esperar pelas histórias, a poesia inusitada de coisa nenhuma, a gravidade imperceptível de existir.

Fora de tempo # 26

 
! (yep, é mesmo um ponto de exclamação, aliás, um grande ponto de exclamação)

Fora de tempo # 25

 

De um poema intitulado “Espírito olímpico”:

O poeta deve procurar a palavra certa?
Deixemo-nos de conversas.
Temos à disposição palavras limpas
e palavras com restos de terra e sujidade.
Qualquer palavra se pode confundir com outra.
Já não é possível confiar em palavras. (p. 15)

Donde: poesia é aquela prática de palavras que não receia confundir-se com outra qualquer prática de palavras, e procura às cegas a sua diferença.
Donde: nunca confiar, mesmo naquela prática de palavras que reuniu alguma consensualidade em chamar-se de poesia.
Donde: ............
Donde:
[agora vou nadar os meus trezentos metros estilos e duas braçadas de mariposa — e já se vê que a minha incapacidade poética descende em linha reta da minha incapacidade de nadar mariposa]

Fora de tempo # 24




400 METROS ESTILOS

Pensara em poema tão diferente:
água, sede, um qualquer estribilho.
Porém, não vieram as palavras certas.
E o ritmo logo se desfez.

Completara já os primeiros cem metros.
Em boa verdade, concluíra já a prova
quando saltei para a piscina 
e dei as curtas braçadas que antecedem a partida.

José Ricardo Nunes, Versos Olímpicos, p. 8

Fora de tempo # 23


José Ricardo Nunes, Versos olímpicos
Um atleta olímpico de sofá pode ser uma experiência inusitada quando a poesia se intromete na preguiça do espectador. Nunca o termo “sobre” poderia ser mais adequado do que aqui: versos sobre os jogos olímpicos assistidos pela televisão. E por isso mesmo, nunca o termo “sobre” seria mais inoportuno do que precisamente aqui: quaisquer imagens da vida ou das práticas da vida, por mais referenciáveis, são um pretexto do sentir e do sentido poético, que as atravessa arrastando as suas próprias questões, imagens e práticas.

Fora de tempo # 22


É bom pelo que evita, mais do que pelo que acrescenta. Mas talvez que os inícios de um escritor que se filia por inteiro na tradição anglo-saxónica de narrar consistam precisamente nisso: evitar o máximo possível de “voltinhas” da receita (ainda que lá pelo meio as muletas de fazer andar apareçam, sem que apareçam os desenlaces canónicos), enquanto não se tem ainda um olhar que se deixe guiar por aquilo que o mundo tem para dizer.

Continua a esmiuçar

Problemas de uma mãe. Um  filho de 13 anos que se masturba diariamente. Fonte de “inspiração”? Umas fotos da mãe, jovem e nua, descobertas por acaso. Um filho de 17 que se atira de cabeça para uma relação com uma mulher que tem a mesma idade e o mesmo “perfil” da mãe. A única coisa perturbante é isto parecer-se demasiado com o quadro sintomatológico das nossas legislativas 2009.

Fora de tempo # 21

“... reparara enfim que Roman Bogdanovitch, um homem distinto com barba, tinha uma palavra a dar, uma palavra que segurava dentro da boca como um caramelo grande.” (p. 36).

Fora de tempo # 20

 
A autoridade irónica estabelece-se com um único lance: “O cume do namoro não passou para mim de um modesto outeiro com uma vista sem tréguas. Afinal, para viver feliz, um homem tem que ter de vez em quando uns quantos momentos de perfeito vazio.” (p. 16).  
Romantismo engaiolado e humor negro pela trela, mas passeando por todas as avenidas da vida. É mais do que um aviso, porque é a coisa tão transparente quanto pode ser.

Fora de tempo # 19

Tal e qual como quando olho algumas das minhas fotografias adolescentes: já não se usam aquelas calças à boca-de-sino, a praia e a sua fauna desapareceu, a classe média baixa entretém-se com outras coisas noutros lugares, mas os fígados daquelas gentes, como dizia a minha tia — os fígados daquelas gentes são tanto os nossos fígados que até nos arrepiamos. A minha tia não dizia a alma, dizia os fígados, o que é coisa um pouco diferente. Se a minha tia fosse dada à literatura diria que havia a alma pathos-lógica do Dostoievski, a alma melancólica do Tchekhov, e os fígados irónicos do Nabokov.

Fora de tempo # 18

Ninguém parte de repente
à procura de mais mundo,
ninguém chega por acaso
ao seu nenhum sentido
olhando simplesmente
da varanda. (p. 39)

Talvez assim se estabeleça, mais uma vez (ainda), a necessidade operativa da poesia (complexa, distinta, de alguns) para chegar a “nenhum”. Não é por acaso, diz-se. Porque se o fosse, mesmo o tom menor, postado à cabeceira de uma esfinge que nunca se deu por doméstica, ficaria por demais em perigo.
Não é por acaso, portanto. Talvez não seja. Mas um olhar simples da varanda pode muito bem encontrar tudo o que há para encontrar — nenhum sentido. Dir-me-ão que a simplicidade de um tal olhar só um culturalismo bem incorporado a pode estabelecer. Talvez. Mas é fora do culturalismo que o olhar não espera que o nada se faça anteceder de quaisquer fanfarras. É apenas isso que lá está, vê-se simplesmente da varanda, tem a sua vida própria misteriosa, não nos diz respeito — estamos sós.

Dostoievski 2009

Fora de tempo # 17


“Já notaram que, neste século, tudo se tornou mais verdadeiro, e ele mesmo mais verdadeiro? O soldado tornou-se um assassino profissional; a política, delinquência; o capital, fábrica para destruir os homens, equipada com fornos crematórios; a lei, regra de um jogo de patetas; a liberdade universal, prisão dos povos; o anti-semitismo, Auschwitz; o sentimento nacional, genocídio. O nosso tempo é um tempo de verdade, isso é inquestionável. E embora se continue, por força do hábito, a mentir, toda a gente percebe; se alguém grita: amor — todos sabem que soou a hora do crime; se é: lei — é a do roubo, da pilhagem.” (p. 57).

Uma parte do meu século XX é isto mesmo, um hegelianismo em negativo, que deixa ver o espírito do mal sem subterfúgios — a verdade pode ser um país inabitável quando por fim lá chegamos. Mas o meu pessimismo nem sequer vem daqui, desta lição mais recente de que ainda sentimos os efeitos. O meu pessimismo é ontológico, como ontológico é o meu optimismo sem bandeiras desfraldadas. Encolho os ombros à neurose e caminho sempre. A morte recolher-nos-á — mas uns quarteirões mais à frente.

Fora de tempo # 16

“Não esqueçamos que Auschwitz não foi liquidado por ser Auschwitz, mas porque a sorte das armas virou” (p. 57). 
Já Guantanamo não. Vai ser liquidado mercê de mais e mais democracia. Tão frágil quanto isto, e contudo nada mais forte do que isto.

Fora de tempo # 15

 “Auschwitz é um desses desastres enormes que devem servir de aviso ao homem — se o homem quiser prestar atenção. Em vez disso, atira-se para a frente com motivos científicos e fala-se, por exemplo, da banalidade do crime, que é como um postal de boas-festas do inferno.” (p. 44-45).

Todavia, Arendt não tem culpa. E haverá sempre uma parte “metafísica” da questão a alimentar o nosso espanto e a nossa vergonha, sobre ela não cessaremos de rodar os argumentos de todos os lados possíveis. A questão está na pedagogia. Como evitar que se repita. Não acredito em qualquer pedagogia directa: contar e re-contar o holocausto, memoriais, museus, etc. É fundamental para o luto das gerações próximas, para o luto da própria ideia de civilização e cultura, mas não é pedagogia fundamental. A única pedagogia fundamental para estas coisas é mais e mais democracia. Tão frágil quanto isto, e contudo nunca inventaremos nada mais forte do que isto.

Prescrição

Um, dia sim dia sim. Não podendo, um, dia sim dia não. Para debates, noticiários e blogues at the present time, recomenda-se the real thing.

Fora de tempo # 14

 “É absolutamente verdadeiro aquilo em que desemboca Wittgenstein: que, na crença religiosa, é, sobretudo, e essencialmente, o ponto de partida que é verdadeiro, a saber, que a situação do homem é desesperada.” (p. 18).

Absolutamente verdadeiro, sim. O que sempre me espantou é como Wittgenstein demorou tanto tempo a lá chegar, porque foi dar uma volta tão grande. E o pernicioso que disso passou para a chamada filosofia analítica: quando acertam, demoram voltas e voltas de fundamentação, já andamos nós a fazer outras coisas há séculos. Tenho uma hipótese: eles dão voltas e voltas porque estão a fugir à cama. A coisa é sempre sexual. Naquele sentido de que há um júbilo da situação desesperada do humano, e é só na cama que se sabe dela: se fôssemos auto-suficientes como deuses, a cama não estaria aí para nada.

Fora de tempo # 13

 “Terei sempre desejado, creio, viver assim: num apartamento de renda acessível (que não é meu), entre móveis simpáticos (que não são meus), sem casa, independente, fazendo o que tenho de fazer (neste preciso momento, traduzir Wittgenstein), sem grandes preocupações no dia-a-dia, num país estrangeiro, onde as lembranças das coisas familiares, mesmo nunca tendo existido, acaso, me assediassem...” (p. 14).  

Conheço este desejo melhor do que a mim mesmo. Isto significa que a minha vida, de facto, seguiu um caminho diferente desse desejo.

Fora de tempo # 12

 
Farrapos — histórias pensamentos dúvidas divagações quotidianos — farrapos.
Gosto de farrapos. Há uma coerência subjacente à nossa vida, mas é apenas a superfície das águas ou o espelho em que nos revemos para assinalar um lugar e um nome. Deixamos isso muito por conta da burocracia: bilhete de identidade, talões de compra, escrituras, o que for. Depois há o incerto, o enviesado, o demasiado perto e desfocado, o demasiado longe e tremeluzente, nós indo — farrapos.
É nos farrapos que melhor se vê as diferenças abissais entre histórias (uma coisa), pensamentos (outra coisa), dúvidas (outra coisa ainda), divagações (mais outra coisa), quotidianos (nunca  a última coisa). Todos os dias saltamos abismos, é o modo natural de existir. E também isto: histórias pensamentos dúvidas divagações quotidianos — são ainda outra coisa quando os vemos segundo o modo dos farrapos.

Harry Flint & Isabella

... se me permitem, não quero intrometer-me, mas não pude deixar de ouvir, e aliás de concordar inteiramente, a duzentos por cento, se posso dizê-lo, e então quanto à dureza da coisa, realmente, liberdade a quanto obrigas, e obrigas a tanto, mas assente isso, essa dureza que nos obriga a defender por princípio de liberdade de expressão revistas como a Hustler, ocorreu-me que poderia ter acontecido esta coisa improvável da Isabella ter entrado para a Hustler, a Isabella, lembram-se?, aquela freira que deixou de ser freira e queria ser pornógrafa, essa mesma, a personagem de Amateur, e escreveu e escreveu e escreveu, e agora imaginemos que era o Harry Flint a analisar a prosa, ele poderia ter-lhe dito exatamente a mesma coisa que lhe diz o editor no filme: “Isto não é pornografia, é poesia. E nem te atrevas a negá-lo!”, e pronto, o Harry Flint não publicava a Isabella, decisão redactorial, homegeneizar a pornografia sem qualquer interferência da poesia, a Isabella que fosse poetar para outro lado, que os há, que os há, mas aquele era o lado do Harry Flint, a sua liberdade de expressão, a sua linha de liberdade de expressão, o diabo a quatro, a dureza a quatrocentos por cento, ...

Fora de tempo # 11

O livro termina com “Desenhos feitos pelos meus filhos”. Coisa literal. São dois desenhos infantis. O autor meteu-os na gaveta de papéis. Os autores fazem muitas vezes isso. Não sei se é por serem autores. Ou se é por isso que são autores. Talvez seja só por serem pais. Podemos sempre tentar o lance salomónico: a gaveta de papéis é dos pais, a Gaveta de papéis é do autor. Mas acho que isto nada tem de salomónico, pois não?

Fora de tempo # 10


Dou-me conta de que não leio Gaveta de papéis por ele próprio mas como repositório de indícios esparsos para re-ler os romances de José Luís Peixoto. Não me pergunto porque não se me impôs este livro, não tenho tempo para todos os meus devaneios e impasses. A questão é nunca confundir isto com um juízo crítico, mesmo que o adornemos com umas quantas justificações sobremaneira intelectualizadas.
Indícios para re-ler. Isto, por exemplo, pode ser uma descrição exacta e “explicativa” de algumas cenas espectrais dos seus romances: “Faço perguntas às minhas próprias dúvidas e lembro-me de um filme antigo quando percebo que não respondem: silêncio a preto e branco.” (p. 22). E depois há esse poema “Eu sou eu sempre, mas sou também a Dona Adelaide”, em que um pouco à maneira interseccionista se vão fundindo gradualmente as vozes  do “eu” e da Dona Adelaide, até desembocar numa voz narrativa que é dialógica não tanto porque dê espaço ao discurso indirecto livre de cada personagem mas porque é em si mesma o espaço onde esses discursos se constroem como interdependência e desdobramento a perder de vista (daí as repetições, a litania, uma fala única com cambiantes, que são o lusco-fusco das personagens, mais do que com “identidades” diluídas, como é o caso em Lobo Antunes).

Fora de tempo # 9

 
Às vezes um livro vem ter connosco, exactamente àquele lugar onde nos encontramos, a esse momento do quotidiano em que uma palavra ou uma sequência de palavras aquieta o real, o torna verdadeiro, justo, habitável. Abro ao acaso, é este o momento: “... em cada cidade, pode existir um fim de tarde assim: as ondas estendem-se sobre a areia, as ondas estendem-se sobre a areia.” (p. 16) 

Companhia nocturna # 66

 
João Paulo explorando a música de Carlos Bica. Por acaso, são ambos portugueses. Não por acaso, é jazz de primeira água.

Fora de tempo # 8

O que é a nossa história quando nela se impõe o sentido das coisas elas mesmas? Uma tragédia ou uma hagiografia. Os géneros mais consistentes enquanto géneros. Não podemos saber disso directa ou espontaneamente. A tragédia é a última barreira que interpomos entre nós e o trágico, como a hagiografia é a última barreira que interpomos entre nós e os desígnios insondáveis de Deus, que é o que resta da tragédia a um olhar religioso.

Fora de tempo # 7


Nas nossas histórias, o sentido quase nunca é o sentido das coisas elas mesmas, mas o sentido das coisas existindo-nos. Não há mal nenhum nisso, como não há mal nenhum em inconscientemente elidirmos isso em direcção ao conforto de um suposto sentido comum. 
Tomemos este poema, cujo título é suficientemente concreto para assinalar a experiência individual de uma vivência — “rua serpa pinto, nº 6, 2º esq.”: “O corredor, a alcatifa, a mesa / da cozinha, a disposição dos / quartos, a cor dos azulejos, / o branco das paredes, a vista / para o muro das traseiras. / As casas que habitámos / ainda nos habitam.” (p. 16).
Como muitas vezes acontece, o remate salta do eu para o nós, buscando fixar o sentido comum. Salto  mortal? Nada disso. Muitos se reconhecerão nesse sentido comum, e precisamente por se reconhecerem nele nem se darão conta de que estão perante uma coincidência de sensibilidades individuais e não perante um “universal”. Como sei eu isto? Muito simples. Porque não coincido com esta sensibilidade individual. 

Fora de tempo # 6


Essa poesia narrativa que conta uma história por intermitências, escavada, limpa, emergindo como “um verso apenas — ou menos ainda” (p. 47).
Essa narrativa que circunda duas sombras: uma que é todo o passado, mesmo que já devoluto, atravessado como prova banal de existência, ainda assim essa figura persiste, como se não fosse possível (e não é) avisar esse jovem de que há um lado de cá de tudo e é já aí que estamos: “Aos 14 anos, o futuro era um território confuso, / um pais estrangeiro; não sabíamos como lá chegar.” (p. 21); outra que fecha o livro, chama-se terra incógnita, é ainda o futuro, o tempo por vir: “A partir daqui, / não sabemos nada.”
Essa história por intermitências que é a história própria de cada nome e que tem a sua metáfora exacta, de matéria marginal gastando-se, em “néon”:

Como nos bares decrépitos
do red light district, há letras
do meu nome que já não
se acendem e outras
que piscam ou
tremeluzem
a noite inteira. (p. 53)  

Fora de tempo # 5

Prazer suplementar. Imaginar Hélia Correia traduzindo Onetti, corrigindo Onetti, sendo corrigida por Onetti, indistintamente inventando para português o que sempre chega numa língua estrangeira: nós, o mundo, a existência — tudo quase ilegivelmente estrangeiro. Eu disse prazer suplementar?

Fora de tempo # 4

O segredo que se mantém segredo, mesmo quando pensamos que parcialmente desvendado, torna-se exercício de cuidada ambiguidade. Como não admirar essa estratégia, a sua fina relojoaria, o modo como sucumbimos com prazer às reviravoltas ditas e às postumamente adivinhadas? (Postumamente? Curioso, muito curioso...).

Mas pouco me interessaria (ou só museologicamente, digamos assim) se, desde o princípio, esse homem que chega ao lugar do sanatório arrastado pela sua doença, não viesse para morrer: “Incrédulo, de uma incredulidade que ele próprio foi segregando com a atroz resolução de não se iludir. E, dentro da incredulidade, uma desesperação contida sem esforço, limitada espontaneamente, com pureza, à causa que a faz nascer e a alimenta, uma desesperação à qual já está acostumado, que conhece de cor.” (p. 18-19).

Conheço este homem melhor que a mim mesmo. E sei exactamente que o que há de obscuro em mim é existir ainda.

Fora de tempo # 3

O mais terrível no destino? Percebermos depois, muito tempo depois, que tínhamos o necessário para que as coisas fossem diferentes — mas não o sabíamos. E que não é culpa nossa, continua a não ser culpa nossa, mas como não há mais ninguém a quem realmente possamos culpar, ou escolhemos a inocência geral do universo ou aceitamos como nossa essa culpa. A questão é que na inocência geral do universo nós não contamos nada. Preferimos a culpa. O mais terrível no destino, portanto? Ele revela a nossa culpa, e essa parece ser toda a história a que temos direito.

Fora de tempo # 2


Este podia ser o primeiro de uma série de contos de um McEwan maduro, uma ponte com esse McEwan inicial que desde sempre faz parte da minha biblioteca portátil. Mas McEwan aprendeu a fazer os andaimes em que segura o seu talento. É uma carpintaria irrepreensível, de beleza clássica, exímia em suspender o desenvolvimento narrativo quando já nos apanhou como qualquer criança gulosa pelo que vem a seguir. Aqui, bastava a noite de núpcias e um ou outro apontamento do passado. Não eram necessários os pais dele e os pais dela, nem a distinção de classes e meios. Não é que esteja mal, aliás nunca me deparei com nada que estivesse “mal” na ficção de McEwan. Simplesmente, nada acrescenta ou elucida sobre aquela dramática noite de núpcias e um tempo que se define por inteiro logo no início: “Eles eram jovens, licenciados, ambos virgens naquela sua noite de núpcias, e viviam numa época em que uma conversa sobre dificuldades sexuais, que nunca é fácil, era simplesmente impossível.” Um réquiem.

Fora de tempo # 1

A quantidade de dor, sufoco, vulgar vida de frágeis humanos que me impediu de te ler quando me chegaste às mãos. Soterrado sobre outros, sim, sempre os livros me existiram soterrados sobre outros, esperando a sua vez, mas nesses tempos era sobretudo a vida que nos tinha soterrado. Como de resto acontece muito, e não era sequer a primeira vez. Limpo à tua volta esse passado incorrigível e já aceite. Chamo a esta praia Chesil. A ela tanto lhe faz, que sabe apenas de areia, mar e passagem do tempo. Quando te acabar, voltará ao seu nome e nós ao presente que ainda temos: areia, mar e passagem do tempo.


Póstumos

O título dava o mote: Oh, que prazer! Ter um livro para ler e pegar noutro para se perder... Assim mesmo, com ponto de exclamação, reticências, e aquele “h” aspirado, really british. Mas o template agora é minimal, há que cortar. Considere-se o mote dado. E subentenda-se no novo título — Fora de tempo — todas as implicações do anterior e ainda o clima blogosférico presente. A postagem seguirá o modo automático. Se ainda for vivo, ressuscitarei depois das eleições.

Frente-a-frente

Quando não se está a escrever aqui, está-se a escrever noutro lado. Aliás, quando se escreve aqui, é sempre para ir para outro lado. Apenas se passa por aqui. Mas o metabloguismo já teve os seus dias, adiante.

Como se desta janela se visse o mar nocturno

As obras de remodelação estão quase concluídas. Pequenos acertos ainda, mas a casa está habitável e já se pode trabalhar com sossego. Nada disto seria possível sem o Carlos Vaz, que com grande paciência e subtil bom gosto, deu corpo às minhas vagas ideias minimalistas. Obrigado, Carlos.

hum...