Isso

The box and the Key: I don’t have a clue what those are.

David Lynch, Catching the big fish. Meditation, consciousness, and creativity. p. 117

Interregno

A minha geração quase inteira está no poder e na oposição. E convenhamos que desilude q.b. Apanharam-se com os electrodomésticos que o sr. cavaco forneceu ao país em vez de futuro, e com o socialismo na gaveta que o sr. soares deu ao país em vez de política, e agora é só repetir a dose com pequenas variações e cumprir os ciclos sem fazer grandes ondas. Mas isto é conversa de café, porque todas as gerações desiludem ou não fosse a vida maior que nós. E também conversa séria, porque cada povo tem apenas a mediania que é capaz de se oferecer colectivamente a si mesmo. Não me consta que os países nórdicos tenham governantes geniais, mas é sabido que têm exigências altas com a cultura e a mentalidade da cidadania.

O acaso objectivo

Quando o pior acontece e é lógico. Os tempos já não têm grama de surrealismo, mas uma precisão técnica que explica o aleatório como precipitação para a queda.

O bondoso caos do mundo

A indiferença das coisas umas pelas outras, acho que dizia Eva Lopo*. A disparidade do que acontecia em simultâneo, acho que ela pensava. Chamava a isso o bondoso caos do mundo. Sempre achei um nome merecido para um assassino tantas vezes gentil.

*Personagem de A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge

Senhor Fantasma # 6. Geração, epílogo

Como problema de tradução, e movimento de transporte dentro desse problema, Senhor Fantasma deixa-nos em terra de ninguém, tendo andado embora por caminhos supostamente conhecidos. Não é aventura única na poesia portuguesa mais recente, mas é a que menos cede a estruturas já codificadas de disforia. E a que nos deixa uma reserva de inteligência e de emoções poéticas cuja lucidez e ironia, a um tempo implacável, agónica e salutar, nos dá maior entendimento do mundo que nos calhou. Numa leitura apressada, alguns destes versos podem ser lidos como variação dos “desertos que crescem”, com as suas implicações de espírito blasé e de teatro interior mansamente pós-apocalíptico: “Nada disse nada. / Porém tornou-se terra estéril / o espaço entre a flor / e a pedra.” (p. 27). Mas é necessário que não nos esqueçamos do cavalo, o que põe em marcha o que não pode ser dito, o que se pressupõe capaz de ir para lá de terra estéril, flor e pedra. A cada geração seu cavalo, andamento e trote. Há aí uma história para contar, por exemplo a que vai de um certo "cavalo verde" de António Ramos Rosa até ao "cavalo isto" que aqui entrevemos. Mas são coisas para outros senhores fantasmas.

O vazio de uma casa # 5

Os pássaros. Das árvores perto para a relva ainda mais perto. Ajustar a cadeira ao ângulo que os torna visíveis. Consentir-lhes também a invisibilidade.

Senhor Fantasma # 5. Política, assalto, erva

Neste vai e vem sem lugar para grandes desígnios históricos joga-se ainda a sorte de uma geração. O que há de político na consciência de se ter uma determinada idade, isto é, de se ser geração, é que os gestos individuais ganham o estatuto de exemplo – mesmo quando o denegam com unhas e dentes. O que até não é o caso no poema que se segue, que abre com o programa mais comum que as gerações se auto-atribuem:

ASSALTO

Quando decidimos tomar o mundo de assalto
não sabíamos nada um do outro
e as ramagens das árvores
quase tocavam a tua janela.

Quando desistimos de tomar o mundo de assalto
Não falámos disso
e ouvimos discos de 33 rotações.

Nunca começámos do chão
e agora é tarde.
A erva cresce depressa
e em breve
é muito alta.
(p. 38)


O que há neste poema de politicamente caracterizador do tempo presente é que nada se sabe das razões que levaram à desistência de tomar o mundo de assalto. Mas nada se sabe por deliberadamente nada se falar, o que é aceitação do preço do fantasma. No resto, paga-se tributo a uma difusa ideia de perfeição inalcançável, o que politicamente se pode dizer que emerge de qualquer um dos quadrantes. O fantasma é também isso: o que conduz o político ao lugar onde as coisas falham prosaicamente, porque parecem sucumbir ao movimento da natureza. Não o movimento da natureza enquanto teleologia possível ou verdade natural, mas o simples crescer da erva que em breve é muito alta. Dito de outra forma: “De manhã não vencerei.” (p. 67).

Adenda a uma conversa privada # 3

Sabes que podias fazer isso. Que também faria sentido fazer isso. Que a tua história mudaria e ficaria mais perto, mais em linha recta, daquilo que desejas que seja a tua história ainda por vir. Mas não fazes. Fazes até aparentemente o contrário disso. Não por arbitrariedade, por auto-destruição, mas por necessidade interior. Imperiosa e cega, mas calmamente evidente. E esperas que também isso te conduza àquilo que desejas que seja a tua história ainda por vir.

Senhor Fantasma # 4. Tradução, transporte, isto

A incorporação pacífica de poemas traduzidos num conjunto de poemas próprios confirma, se preciso fosse, que o problema que constrói este livro é o da poesia como movimento de tradução de mundo, sujeito e história. Mas não se pense, relativamente aos poemas traduzidos, que se trata apenas de uma incorporação pacífica do cânone. O texto origem, relembremo-lo, pode estar em qualquer parte. O que também é, indirectamente, uma natural questionação do cânone. Por exemplo, para a geração de Pedro Mexia, uma parte substancial da poesia é lyrics, ou seja, letra de canção. Talvez não por acaso, um dos poemas nucleares de Senhor Fantasma é de Jarvis Cocker, conhecida figura do mundo da pop (embora não tenha conseguido averiguar se o poema é lyric — e diga-se que até não parece nada ser lyric). Nuclear porquê? Porque coloca com enorme clareza essa outra questão fundamental deste livro, a da tradução que a poesia é como problema de transporte entre dois pontos, quaisquer que eles sejam. Visto de outro ângulo, é uma primeira aproximação à questão da história, e à questão da história enquanto questão política. Mas vamos por partes. Eis o poema (p. 83):

E ISTO
[Jarvis Cocker]

E
isto vai para aqui

e isto vai
para aqui

e isto vai para
aqui

e depois
acabou.

A questão do transporte no poema de Jarvis Cocker tem a universalidade vazio de um “isto”. É de facto o fantasma que se desloca, o que não se nomeia senão pelo seu anonimato e pela sua vaga repugnância. A sua gramaticalidade evidente não deixa trânsito fácil para a subjectividade, tal que o movimento do “isto” se pudesse confundir com vontade ou afirmação pessoal. Por isso mesmo, o poema de Jarvis Cocker tem esse traço modernista peculiar de ser figuralmente a síntese perfeita da sua semântica: deslocação posicional entre versos, palavras de um lado para o outro. E claro, depois acabou. Sem resto, sem sublime. Equidistante dos lances dramáticos ou da construção tensa de uma disforia. Vai e vem do mundo. Isto, precisamente.

O vazio de uma casa # 5

O router não sobe nem desce escadas. Não foi ainda tocado pela graça do simplex.

Senhor Fantasma #3. Baseado, decalque, [sem angústia de influência]

Sim, claro, é sabido: nisto da literatura, o texto origem é todo e qualquer texto anterior integrante da literatura ou susceptível de a vir a integrar. Haveria aqui boas lições existenciais, se as quiséssemos extrair. A de que a origem não nos pertence a nós nem a ninguém, está disseminada, disponível, é afinal o presente fazendo-se connosco, sempre maior do que nós (e maior para todos os lados). Mas o campo literário tem também as suas regras guerreiras, ou o seu modo ancestral de ocupar os grandes espíritos com as distracções dos comuns mortais: rivalidade, inveja, ódios de estimação. Ora, a vantagem de enfrentar e aceitar o fantasma é que toda essa quinquilharia de salão mundano, com maior ou menor verniz metafísico, se dissolve. E começa a funcionar esse transporte de palavras que não quer mais do que procurar no que há os modos de chegar a fazer existir o que vai haver.
De um modo assumido e completamente pacífico, há neste livro três formas de indicar a presença de outros poetas e outras poéticas. Há os poemas que são “decalque” de, os poemas “baseados” em, e os mais numerosos de entre este conjunto, os poemas que simplesmente indicam por debaixo do título, entre parêntesis recto, um nome de autor. Não se trata de exibição enciclopédica ou culturalista, construção de linhagem ou mero exercício de estilo, ainda que seja certo que a enciclopédia é incontornável, haja um certo ar de família nas escolhas, e o exercício de estilo revele capacidades rítmicas e prosódicas de virtuoso. Também se pode dizer isto de outro modo, não com mais exactidão mas com maior propriedade literal: são poemas traduzidos.
Que nos trazem eles, esses poemas traduzidos? Por um lado, certos motivos “retro” do amor e da amizade, que são inversamente simétricos da devastação do amor e da amizade que aqui existe. Por outro, certas construções prosódicas mais musicais, mais da índole da litania, também elas inversamente simétricas do carácter aforístico ou epigramático de muitos dos restantes poemas. Tudo isto sem trauma, sem angústia de influência, simples viagem do Senhor Fantasma entre o que histórica e canonicamente lhe pertence por direito, e o que no presente deixa já entender a sua sombra sem drama: “Uma vita nuova exige novíssimos tormentos. / E esta é apenas vida velha em divisões mais amplas. / Quis que não viesse alguma carga desnecessária, memória e bibelôs. / Veio tudo, espectral e sem fadiga.” (p. 66).

Adenda a uma conversa privada # 2

Não estou a defender-me. Sobretudo, não estou a defender-me. Pode-se contar a história, o que sabemos da história de sermos isto ou aquilo. Se nos perguntarem. Mas não faz sentido defendermo-nos por sermos isto ou aquilo. A partir de um certo limiar, não faz sentido. Somos isto ou aquilo, desde que isso faça sentido para nós. Precisamente como são aqueles que nos dizem que o nosso sentido não faz qualquer sentido para eles.

Senhor Fantasma # 2. Cavalo

Senhor Fantasma é aquele momento da obra em que o poeta se tem de defender da sua imagem pública de cronista e diarista-bloguista falsamente confessional. Porque se é jogo aceitável, até porque facilmente reconduzível aos terrenos da ficcionalidade, que crónica e diário inventem um sujeito mais interessante e cheio de peripécias do que aquilo que a vida própria de cada um tem por vezes para nos oferecer, quando se chega à poesia o caso muda de figura. Não devia mudar, mas muda. É o peso da tradição, que sempre pressupôs a poesia sub specie lírica, e a lírica como efusão mais ou menos contida de um sujeito.
Certo que as coisas sempre foram mais complicadas que isso. Aliás, para quem sabe de poesia, as coisas nunca foram senão mais complicadas que isso. Mas adiante. Senhor fantasma, desde o título, corta quer com o suposto sujeito lírico, quer com uma deriva ficcional de que ele se pudesse revestir. Mesmo se alguns poemas, aparecidos inicialmente em Estado Civil, parecem manter intacto o jogo de falsa confessionalidade que caracteriza a escrita do blog de Pedro Mexia, a sua inserção no livro altera-lhes por completo o tom. O que no blog é tensão entre um conhecimento expresso e o seu reenvio labiríntico para um sujeito suposto existir, é aqui meditação de alcance impessoal, não porque pretenda universalidade mas porque não tem um sujeito de aplicação. Quando qualquer coisa parecida com um sujeito se tenta aplicar a qualquer coisa parecida com aplicação do conhecimento, a lucidez — e a lucidez é realmente o fantasma do conhecimento, o que o retarda e difere — , a lucidez manda dizer o seguinte:
“E se nada posso dizer, se não posso / estudar, nem prever, nem pressentir, / ainda assim conheço, como um cavalo / que levanta as patas e põe em marcha / o que não pode ser dito.” (p. 58).
Entre os sapatos sensatamente arrumados debaixo da cama e um cavalo que põe em marcha, talvez tenhamos que reformular um pouco o “problema” do programa poético: é um problema do domínio da tradução, certo, mas sobretudo naquela vertente em que um problema de tradução é um problema de transporte. Não a questão de saber identidades e diferenças entre A e B, mas de saber como ir de A para B.

Adenda a uma conversa privada # 1

"Generalizations.
It’s dangerous, I think, to say that a woman in a film represents all women, or a man in a film represents all men. Some critics love generalizations. But it’s that particular character in this particular story going down that particular road. Those specific things make their own world. And sometimes it’s a world that we’d like to go into and experience.
[David Lynch, Catching the big fish. Meditation, consciousness, and creativity. p. 89]

...E outras vezes, foi um mundo que visitamos e do qual depois queremos sair. Sem ser necessário generalizar que os homens ou as mulheres isto e aquilo. Ou que um certo tipo de homens ou um certo tipo de mulheres. É sempre esta história particular, estas pessoas particulares, por mais que nunca ninguém seja estranho a certas regularidades de espécie, grupo, classe ou perfil. Mas no princípio e no fim, seria pena que fossem as regularidades a chamar-nos ou a afastar-nos.

Senhor Fantasma # 1. Caixa negra, sapatos

Em Pedro Mexia há sempre um programa poético, é a sua condição de poeta inteligente. Não é um manifesto, coisa que em toda o caso já não é de uso; nem propriamente uma poética, naquele sentido de apresentar os andaimes de um estilo ou uma teoria sobre o alcance eficaz da palavra. Um programa poético é como um projecto de investigação sem a parte das conclusões, por provisórias que sejam: define um “problema”, vias de acesso ao “problema”, e entrega necessariamente as conclusões que não há à conjectura dos leitores.
O programa poético, aqui, será este: “O «sofrimento» é uma emoção / poética, estamos / Sempre sozinhos com o nosso fantasma / e os versos o papel químico do mundo.” (p. 19). É um programa, digamos assim, do domínio da tradução. Mas há que ter algum cuidado com estas fórmulas. Porque se quiséssemos desenvolver a analogia, teríamos de dizer que aqui não há texto origem. O texto de chegada é suficientemente distorcido para se considerar como tal, isto é, como um traduzido: o sofrimento não só carrega as aspas como pertence a uma ordem que não é do estritamente empírico (é uma emoção poética, claro...). Mas que dizer de um texto origem que é um fantasma? E, já agora, de um tradutor que é papel químico que afinal transforma mundo em versos?
É por isso que “Caixa negra”, título da segunda secção do livro, adquire uma ressonância muito particular. O que está na origem será tão indiciador e tão eventualmente inconclusivo como o que fica depois do desastre. Ambas as situações são da ordem do fantasma. Mas esta poesia só é possível enquanto “caixa negra”, isto é, depois do desastre. Aliás, é bem possível que “depois do desastre” seja sinónimo de vida no mundo poético de Pedro Mexia. Que não sendo um poeta de queixume fácil nem de melancolia desabusada, toma o desastre como segunda natureza e aos costumes responde com sensatez o seu tanto sardónica: “Vamos morrer, mas somos sensatos, / e à noite, debaixo da cama / deixamos, simétricos e exactos, o medo e os sapatos.” (p. 61)

O vazio de uma casa # 4

Há duas semanas que não conseguia tempo para o Ípsilon e para o Actual. São poucos minutos, as mais das vezes, mas são minutos. Minutos e um lugar qualquer à procura de ritual. Agora foi na mesa da cozinha. Acho que não vou repetir. O pequeno-almoço ocupa demasiado as mãos para o virar das páginas.

Bom polícia, mau polícia # 10

- Esperas sempre o pior?
- Digamos que fatigo o meu medo.

O vazio de uma casa # 3

Curioso como os mecanismos da superstição, por vezes, funcionam segundo uma linha estritamente lógica.
A equipa das mudanças tinha dois siberianos que arranhavam razoavelmente o português . Ambos disseram, quando aqui chegaram: ah, uma casa nova... é preciso atirar um gato preto lá para dentro, para dar sorte.
A coisa passou. Hoje de madrugada, da janela da cozinha: um gato preto em cima do pilar da entrada. O gato desceu para a relva e foi beber da pia. Deu umas voltas por ali, descansou, subiu de novo ao pilar, e quando passei ao escritório já tinha desaparecido.
Negociei rapidamente o sentido desta visita. É certo que o gato preto não entrou em casa. Mas é certo também que eu e a casa não somos tão exuberantes quanto os siberianos – talvez que esta visita contida e comedida seja suficiente para os mesmos efeitos. Na verdade convinha que fosse, porque estou a precisar de um pouco de sorte. O ponto é esse. E não deixa de ser um ponto lógico. E mesmo comedido.

WC Lectures # 18

Bill Amend, série Foxtrot

O pai é careca, bronco, e tem a mania que joga golfe. A filha liceal avançada sonha com namorados, roupas, e bronzeados perfeitos. O filho liceal avançado é uma nódoa no baseball, nos estudos, e come desalmadamente, apesar de ser magro. O filho liceal menor é o tipo de inteligência que adora matemática e jogos de computador, deprime quando não tem aulas, e prega partidas a toda a gente. A mãe é a consciência social e política, e tem a mania de cozinhar saudavelmente umas verduras que toda a gente substituiria de bom grado por pizza. Ou seja, percebe-se bem que Hilary Clinton possa ser a próxima presidente e que possa sempre haver surpresas nas próximas gerações americanas.

Bom polícia, mau polícia # 9

- Que mala catita, essa aí!
- É, não é? Também gostei. Tem os meus restos mortais, é para ser entregue no Panteão.
- Bom, bom... Queres dizer que há-de ter os teus restos mortais...
- Não, Leitora, tem os meus restos mortais, ainda sei o que digo.
- Mas, Luís, tu... quer dizer...
- Eu à pátria já disse tudo, minha querida. Agora não me macem mais com isso.
- E pode-se ver o que vai na mala?
(Abre a mala. Espreita. Fecha a mala. Olham um para o outro. Desatam a rir com gosto.)

Direitos de musa

Juraram-me a pés juntos e sem figas nas mãos que o anúncio sobre reciclagem de electrodomésticos que tem uma das melhores punch lines dos últimos tempos — Livre-se dos seus monos! —, foi totalmente concebido e realizado antes de se saber que ia haver directas para o PSD e quais os candidatos em causa.

Thinking in a diner # 3

O mundo sem mim é-me simples de imaginar. Também o mundo sem cada um dos que conheço. Mais simples ainda o mundo sem cada um dos que não conheço. Mas todos ao mesmo tempo — eu, cada um dos que conheço e cada um dos que possivelmente possam existir na sombra do meu desconhecimento... é tão excessivo, tão absolutamente o negativo da minha condição, que como que involuntariamente sou devolvido à existência. E contudo, isto não prova necessidade alguma, nem sequer a da espécie globalmente considerada. Prova apenas os limites da nossa imaginação. Mas também, de que nos serviria uma tal imaginação, caso a tivéssemos?

Acordar do acordar

As pessoas imaginam muito, mas no que imaginam esquecem-se de sujeitar o imaginado à prova da realidade já conhecida. Isso diminuiria drasticamente o espaço de manobra da imaginação, quer dizer, de uma parte importante da nossa vida acordada.

O vazio de uma casa # 2

Contaram-me que nos jardins japoneses não se desenham os arruamentos no projecto. Deixa-se que as pessoas os utilizem, e os arruamentos nascem da vida prática e material. Numa casa devia ser assim. Lugar virtual das mobílias até a vida prática definir os ângulos, as correspondências, as migrações. Mas tudo tem demasiado peso para deslocações posteriores. Um pouco como os actos passados da nossa existência. É por isso que a nossa vida não é um jardim, ainda que tenha partes ajardinadas (e apetecia-me dizer que isto não é propriamente uma metáfora, se isso não se tivesse de dizer de todas as metáforas...).

Boa educação # 12

Mas nada desfila tanto para a glória como este título redondamente exarado em letras douradas na porta de um gabinete:
PROFESSOR DOUTOR ENGENHEIRO Fulano Beltrano de Sicrano e Sicrano, Phd

Bom polícia, mau polícia # 8

- E desta vez, a que se deve a interrupção?
- Tenho de me justificar?
- Não é isso, não é isso... Não é uma pergunta sobre a falta a um dever, mas sobre a não frequência de um prazer...
- Pois... A PT, de novo. Mas nem tudo pode ser imediato.
- Embora nestes casos até devesse. Por princípio, digamos assim.
- Pois... Mas também é verdade que estive em lugares em que poderia postar, não se desse o caso de ter aberto oficialmente esse longo percurso paranóico-crítico que se chama ano lectivo...
- Hum... Um blog que não funciona nas horas de expediente... (risos)
- E que mal cabe nas outras. Coitado de mim. Eu é que sei, coitado do Álvaro de Campos, eu é que sei... (risos)

11 de Setembro

Como se sabe que a história do mundo se tornou também parte integrante da nossa história? Pode-se ter estado lá, e isso não ser suficiente. Será difícil em alguns casos, mas pode acontecer em todos eles. Pode também haver um elo de ligação em simultaneidade que ajude a colocar essa parte da história do mundo dentro da nossa história — entre nós, a célebre pergunta “onde estavas no 25 de Abril?”. Mas isso, igualmente, pode não ser suficiente.
Por mim, a prova decisiva de que a história do mundo se tornou também parte integrante da nossa história é quando o que nos acontece agora, espontaneamente, chama ao nosso entendimento esse episódio da história do mundo – e tudo ganha uma nitidez aterradora e incontornável. Como ontem, quando de repente fiquei sem saldo no telemóvel, longe de tudo, e o único que pensei foi que não poderia despedir-me de ti se o meu mundo se tornasse uma torre em chamas.

O vazio de uma casa # 1

O trabalho que dá encher uma casa. E não estou a falar de coisas, mais coisas, e ainda mais coisas. Trata-se de encher com aquele vazio por entre as coisas para se poder respirar e habitar. Um vazio que se molda às coisas, as empurra, desloca, atrai e às vezes subtrai.

Os que não mudaram # 8

- Poesias, de Florbela Espanca. O principezinho, de Saint-Exupéry. O livro vermelho, de Mão Tsé-Tung. A mensagem, de Fernando Pessoa. A minha luta, de Adolf Hitler.
- Isso é o começo da tua lista, Luís?
- Seria. Pela ordem cronológica com que me cruzei com elas.
- Seria?..
- Porque nada mudando na minha vida, mudaram tanto como aqueles outros que me mudaram. Fiquei a conhecer alguns dos discursos dos demónios e das ilusões. Humano, demasiado humano. E eu lá pelo meio, como penso que nós todos, mas hoje é Sábado e deve-se dar descanso à metafísica. (risos)
-E relês, estudas, quando não é Sábado? (risos)
- Sem dúvida. E é assustador, às vezes, melhor, quase sempre, como reencontramos essas matrizes por aí à solta, todas aperaltadas e com colunas nos jornais e tudo.
- Até porque são matrizes bem antigas...
- Oh, sim, bem antigas...
- Descansamos, então?
- Descansamos, pois.

Thinking in a diner # 2 ou Os que não mudaram # 7

(Restaurante buffett. Comem uma salada)
- Uma espécie de melancolia outrora agora. Se tivesse de dizer, diria assim: uma espécie de melancolia outrora agora. Tu que achas, Leitora?
- É uma outra lista, essa. Parece-me que é uma outra lista...
- Será. Tens razão. Mas está tão dentro desta. Os livros que lamentamos sinceramente que não tenham mudado a nossa vida... (pausa sonhadora e melancólica)
- (com muito jeitinho meditativo) Um exemplo?..
- Um exemplo?.. A crítica da razão pura.
- (com muito jeitinho meditativo)Kant?! Tu lamentas que Kant não tenha mudado a tua vida?!.. Tu querias ser kantiano?!..
- Foi um longo estudo, sabes? Matéria curricular, o professor era bom, realmente kantiano, estavam reunidas todas as condições.
- Que aconteceu, então?
- Muita leitura extra-curricular de Nietzsche e Freud, foi o que aconteceu. (risos meditativos)
- Isso já condiz, estava a ficar preocupada. (risos meditativos)
- Mas tenho pena, sabes? É disparatado, porque a vida é como é, e de uma certa maneira tudo se recompõe...
- (interrompendo meditativamente) Mas só de uma certa maneira...
- Sim, só de uma certa maneira... Mas eu devia ter sido kantiano primeiro. Para depois Nietzsche e Freud me mudarem para outro sítio. Era uma mudança melhor. O que teria permanecido teria sido mais sólido. Se calhar... (pausa sonhadora e melancólica)
- Percebo, percebo... Mas nunca pensaste regressar a Kant agora? Regressar de uma outra maneira? Depois de também já te teres mudado do Nietzsche e do Freud?
- Regressar com inocência pós-crítica?
- Nem isso. Regressar como quem lê uma tragédia grega, por exemplo. Que aquilo é realmente a quinta-essência da tragédia grega, e acho que o Kafka o percebeu muito bem. Regressar assim.
- Não tenho tempo, Leitora. Não tenho tempo... (pausa sonhadora e melancólica).
- (com muito jeitinho meditativo) E se agora fôssemos buscar a sopa?..
- Sim, vamos.
(não se mexem meditativamente)

Correio quase interno # 2 ou Os que não mudaram # 6

Também subscreveria a tua carta à Carla, escrevendo uma ou outra coisa depois de a subscrever, mas não aqui, de modo absolutamente nenhum não aqui:

“cada um de nós nada vale na história da vida dum livro. Nem sequer na daqueles que nós próprios escrevemos."

E não, os livros que escrevi não mudaram a minha vida. Aliviaram-me dela, mas não o suficiente. Não o suficiente. O que também não interessa, propriamente. Nem se calhar a mim mesmo.

Correio quase interno ou Os que não mudaram # 5

Por mail, o Abel Barros Baptista elabora a partir do post abaixo:

“ (...) A respeito do Quixote (e nota que não estou a discordar de ti, apenas a elaborar a partir de uma frase que escreveste e que, sei bem, não corresponde necessariamente ao que pensas) não me parece que seja sobre uma personagem cuja vida foi mudada pelos livros que leu: é sobre uma personagem cuja vida foi mudada realmente por ser... personagem de um livro que alguém leu! Houve quem lesse esse livro (a primeira parte) e fizesse acontecer (na segunda parte) o que nele não chegou a acontecer. Se se quiser falar da acção ou dos efeitos dos livros sobre a vida das pessoas, o assunto nasce e morre com o Quixote.”

Subscrevo por inteiro. Mas depois talvez tivesse de escrever também algo um pouco diferente. Mas seria depois de subscrever por inteiro, o que faz uma grande diferença de não subscrever nada de nada. E subscrevendo, só escreveria algo mais neste sentido: há coisas na literatura que estão sempre a regressar, é da natureza da coisa, ainda que eu não me atrevesse a postular qualquer natureza à coisa, longe de mim... E nessa natureza da coisa que eu não me atreveria de todo em todo em postular, os efeitos dos livros sobre a vida das pessoas são uma das cenas de origem, parte trauma parte promessa falhada parte comunidade por vir. Enfim, coisas sempre de muito antigamente, sem dúvida.

Os que não mudaram # 4



- E tu concordas com o Vasco M. Barreto via Francisco?
- No primeiro momento sim. A morte, o azar, o acidente, isso muda a vida de uma pessoa. Face a isso, um livro parece não ter a mesma força. A não ser um livro das religiões, ou acrescentaria eu, um livro das políticas entendidas como religiões. Para acrescentar também que nesses casos o livro é sempre o prolongamento do espírito de grupo, e portanto não é bem ele que muda a vida. Mas enfim, aceitemos o argumento tal qual.
- Mas, Luís, o primeiro romance europeu, o D. Quixote, é sobre uma personagem cuja vida foi mudada pelos livros que leu. Mal mudada, ao que parece, mas mudada.
- Outros tempos, Leitora, outros tempos... Há mais exemplos, a Madame Bovary é um deles, são tudo exemplos de livros que falam do efeito pernicioso dos livros, se bem que a leitura possa ser bem mais complexa que isso, mas eram outros tempos, definitivamente outros tempos.
- Quanto a isso concedo.
- E não esquecer também que os livros sempre acharam muito por bem falar de outros livros, parodiar outros livros, enfim, ocupação do tempo.
- Mas voltando ao Vasco M. Barreto...
- Sim, voltando, num segundo momento discordo completamente. Mas é num segundo momento, depois do primeiro momento em que concordo, e é preciso sublinhar isto muito bem.
- Estás a ficar demasiado sério (risos).
- É do calor (risos).
- Do calor?
- Eu depois explico.
- Ok. Dizias então...
- Que num segundo momento discordo completamente. A morte, o azar, o acidente, nada disso muda a nossa vida.
- Porque a nossa vida nunca muda?
- É uma hipótese que merecia ser explorada... Mas não era nisso que pensava. Quando a gente diz que um livro mudou a nossa vida, dizemos sempre o sentido em que ela mudou, e esse sentido é coextensivo ao sentido do livro, ou àquilo que dizemos ser o sentido proposto pelo livro. A morte de alguém é um facto. Apenas um facto. Necessita interpretação, e é essa interpretação que pode mudar a nossa vida. E é bem provável que nessa interpretação haja a muleta de muitos livros, por exemplo...
- Mas um livro não precisa também de interpretação?
- Pois, pois... Os limites da interpretação, claro. Se a coisa está lá, ou se está toda em nós. Mas está lá alguma coisa no livro. É do senso comum. Na morte está o facto, o resto é connosco. (pausa) Este calor... este calor...
- Entaramela a lista, não é?..
- Entaramela?! (risos) Ora aí está, Leitora, uma palavra que bem pode dar conta de alguma mudança na minha vida! (risos)
- E portanto, da lista?..
- Há mais problemas, há mais problemas. Há sempre mais problemas que soluções... (risos)

Os que não mudaram # 3


- O que eu gostava de saber, Leitora, é que Moby Dick ou que A Montanha mágica se leu antes para que não tivessem produzido efeito quando se leram.
- Achas então impossível que não produzissem efeito?
- Basicamente, acho. Em leitores assim, entenda-se. Moby dick não mudou a minha vida, aliás ficou a meio, verdade seja dita, mas sei exactamente porque é que isso aconteceu.
- Conta lá, sem ser pessoal... Ou mesmo que seja...
- A questão é que apanhei com Apocalipse now pelo meio, e no dia seguinte devorei o Conrad de O coração das trevas.
- Estou a ver, compreende-se.
- Moby dick foi a obra errada no momento errado. Mas percebo muito bem que possa mudar uma vida, e só não mudou a minha porque ela já se tinha mudado para o lugar para onde ela me ia mudar.
- Quer dizer, recomendas ainda?
- Sempre. E se os livros remetem todos uns para os outros, a minha Moby dick foi O coração das trevas/Apocalipse now.
- Como para outros O coração das trevas/Apocalipse now pode ter sido a Moby Dick.
- Sem que a coisa seja propriamente comutativa.
- Pois, já estava a achar demasiado fácil. (risos) Mas se não é exactamente comutativa, como é que tu mudaste exactamente para o lugar para o qual supostamente irias ser mudado?
- É comutativa só numa parte, naquela parte que seria essencial no momento. O horror, por exemplo. Naquele momento o essencial era o horror. Tê-lo-ia visto pior a partir de Moby Dick, por ser no alto mar. Gosto do mar a partir da praia, percebes? É uma coisa pessoal, uma coisa de afectos.
- Mas terias visto na mesma a partir de Moby Dick?
- Não só teria visto como percebo que se veja sem qualquer necessidade de se vir a comutar por outra coisa qualquer. Porque a verdade, quer dizer, a minha verdade, é que mesmo que tivesse visto a partir de Moby Dick, seria sempre para vir a comutar por alguma coisa cujo contexto fosse do lado do “mar visto a partir da praia”. O horror em terra, se quiseres. Dirás que não é o essencial, e não é o essencial, mas só chegamos ao essencial através do nosso particular.
- Queres as histórias de cada lista, é isso. Já tinhas dito, não já?
- Já, já tinha dito.
- É uma lista de particularidades.
- Ou de singularidades. E é uma história daquilo a que Foucault chamava os fundadores de discursividade.
- Marx, Freud, lembro-me disso...
- Voltas sempre lá, estás sempre a recomeçar, para prosseguir, ampliar, recusar, substituir, mas estás sempre dentro daquela discursividade.
- Moby Dick, ou outro título qualquer assim reconhecido, como uma maneira de recomeçar a literatura daquela maneira, com o seu comentário, a sua ampliação, a sua recusa...
- Isso, isso. E nós uma pequena história fazendo-se nos interstícios dessas histórias. O mar visto a partir da praia também a sua versão muito própria de perdidos no alto mar.
- Sim, penso que sim... (pausa) E a lista, Luís?
- Calma, ainda estamos no terceiro considerando. Há mais problemas.
- Pois, já estava à espera... (risos)

Os que não mudaram # 2

- É grrrave, extrrremamente grrrave, como te tinha dito!
- Calma, Luís, calma. Conta lá tudo desde o princípio, estou aqui para te ouvir. Mas primeiro respira. Vá, respira...
- Não há nada para respirar. Se soubesse não me tinha metido nisto. Em menos de dez minutos recebi três telefonemas. Que raio! É grrrave!
- Insultos?
- Não, pedidos em voz doce. Extremamente amáveis, persuasivos. Enfim, cheios de razão. É muito grrrave.
- E pode-se saber quem te telefonou assim tão cheio de razão?
- Primeiro foi a Margarida Rebelo Pinto. Uma doçura, uma gentileza, nada do que por aí se diz ou seria de esperar de quem tem nome próprio como marca registada.
- E que queria a gentil dama?
- Queixar-se. E com toda a razão, por isso é que é grrrave! Primeiro do Eduardo. Não há direito, ter escolhido o Dinis Machado em vez dela, quando salta à vista que ela é muito pior, mas de longe muito pior. E depois do Francisco e do Rui. Não se admite, realmente! Verdadeiros intelectuais não podem apontar como livros que não mudaram nada na sua vida obras que pertencem aos vários cânones. É um bocadinho snob, dizia ela. Fez-me tanta pena, estava tão desconsolada, coitada!
- Mas isto não é uma lista dos piores, é uma coisa mais subjectiva, mais... não sei bem, mais...
- Mais grrrave! Mais grrrave... Depois ligou-me o Paulo Coelho, uma simpatia também, um verdadeiro gentleman. E o ponto é este: se não são os verdadeiros intelectuais a dizerem que os seus livros não mudaram nada nas suas vidas, como é que as pessoas comuns irão perceber que os livros deles é que são os indicados para elas?
- Hum... Mas por outro lado, repara, quase de certeza que nem o Eduardo, o Francisco ou o Rui alguma vez leram a Margarida Rebelo Pinto ou o Paulo Coelho. Em bom rigor ético não podiam indicá-los, certo? A questão do snobismo parece-me mal colocada.
- Pois, talvez, mas olha que não sei. Estavam ambos tão tristes, coitados. (pausa) E agora diz-me cá: e aquela quantidade de livros que eles lerem e que já nem se lembram que leram? Não devo ser o único a quem isso acontece, pois não? Não achas que os dez livros deviam sair daí? Não estás a ver aqui a piscadela de olho?
- A piscadela de olho?
- Tipo: todos sabemos do grande cânone, mas de entre isto, a minha ideia de literatura ou de vida mudada pela literatura não passa por este e por este e por este, e vão os dez de enfiada. Mas o curioso é que eles se lembram, percebes? Lembram-se desses e não se lembram dos outros que esqueceram completamente. Lembram-se, ora aí está!
- Então achas que isto é mais tipo: estou a gostar muito deste tempo de infelicidade contigo?
- Aproxima-se mais, aproxima-se mais! E também dessa outra coisa que a gente sabe mas esquece muito rapidamente: um não vai sem o outro, um suscita a oposição do outro. Um está dentro do outro e o outro está dentro do um.
- Bem... (risos)
- Mas é simples e nada grrrave (risos). A sério. Olha outro exemplo: se leres o Hemingway de uma certa maneira, vês que no fundo do mar dele há o lodaçal do Faulkner. E se leres o Faulkner de uma certa maneira, vês que no fundo do mar dele há a praia cristalina do Hemingway.
- Hum, não estou lá muito convencida. E que é isso de ler de uma certa maneira? Que maneira é essa?
- É aquela maneira em que tu lês um sabendo que o outro existe. E sabendo que para veres o que Faulkner vê não podes ver ao mesmo tempo o que Hemingway vê.
- Condição finita do olhar, é isso?
- E necessidade de escolheres uma certa forma de olhar. E também de não colocares os olhares diferentes a uma distância incomensurável, em que nada pudesses dizer deles, nem sequer que não te mudaram a vida.
- O conforto dos estranhos! Essas listas são listas do conforto dos estranhos!
- Talvez, Leitora, talvez...
- E então, qual é o teu olhar? Faulkner ou Hemingway?
- Não é bem assim...(risos) Passo respeitosamente ao largo de Por quem os sinos dobram ou de O som e a fúria, mas recomeço sempre O velho e o mar e Na tua morte. Coisas...
- Mas podes explicar, não?
- Justamente, haveria que explicar, só isso é que tem interesse, a explicação. Mas primeiro haveria que criar as condições para que a explicação não fosse pessoal nem entendida como pessoal.
- Esse pessoal dito também de uma certa maneira, certo?
- Pois...
(pausa)
- E o terceiro telefonema, de quem foi?
- Não posso dizer, prometi que não dizia... Até porque nunca incluiria essa pessoa e livro na minha lista, embora perceba as suas razões e as vantagens da publicidade negativa.
- Oh, vive-se bem disso, da publicidade negativa.
- Mas não da minha publicidade negativa, como lhe expliquei e se percebe bem. Portanto...
- Portanto, se bem entendo, vais mesmo fazer a lista...
- Calma, ainda estamos no segundo considerando. Há mais problemas.
- Grrraves, já sei... (risos)

Os que não mudaram # 1

- E agora, Leitora?
- Agora respondes ao repto gentil do Eduardo Pitta e fazes a lista dos dez livros que não mudaram a tua vida. Qual é o problema?
- Mas são vários problemas... Vários, até demasiados. No antigo clube isto dava logo uma reunião de emergência, uma crise maior do que a do BCP, uma declaração de calamidade pública, uma...
- Calamidade pública?!
- Porque isto é grave, muito grave, eu sei lá... Grave, pronto.
- Por exemplo? Vá, só para ver se te percebo, um exemplo...
- Um exemplo, dizes tu?
- Sim, um exemplo. Vá lá, um exemplo. A ver se te entendo. Grave, muito grave, como por exemplo...
- Mas tu farias nas calmas uma lista dos dez livros que não mudaram a tua vida e a tua relação com a literatura?
- É como dizes, nas calmas.
- Sem quaisquer considerandos epistemológicos, digamos assim?
- Oh, então é isso!.. Já estou a ver, vais considerar tanto que vais concluir que é epistemologicamente impossível fazer essa lista.
- Mas é que há problemas, vários problemas, demasiados até... Por exemplo... Querias um exemplo, não era?
- Hum hum...
- Por exemplo, o Ulisses, do Joyce.
- Muito bem, o Ulisses, do Joyce. É um bom exemplo, suponho, porque foi eleito como não tendo mudado a vida nem do Eduardo Pitta, nem do Francisco José Viegas, nem do Rui Bebiano. E no caso do Eduardo e do Francisco nem mudou sequer a relação com a literatura.
- Pois, mas mudou, olá se mudou...
- Mentiram, eles?!
- Não, que ideia! Se o Ulisses também não mudou nada na minha vida!.. e contudo, mudou, e muito... olá se mudou... é o problema do armazém do Esteves, percebes?
- Armazém?! Não era uma tabacaria?
- Isso era o Esteves do Álvaro de Campos. Este Esteves tinha um armazém de roupa, a minha mãe levava-nos lá. Eu barafustava sempre, porque o Esteves não tinha as gangas da Levis.
- Tu ligavas às marcas? Não imaginava...
- Levis e cigarros Marlboro, ok? A questão é que andei sempre de ganga, mas nunca foram Levis. Até que um dia, lá teria de ser, fui comprar umas Levis com a minha mesada. Vesti-as, já estava a bainha marcada, mas alguma coisa não estava a funcionar, eram demasiado caras para não estar a sentir diferença nenhuma. Foi uma grande humilhação interior, nem te conto...
- Humilhação?!
- Porque tinha de reconhecer que a minha mãe tinha razão! (risos) Era ganga igual à outra, se não fosse a marca eu nem saberia dizer... Aí tens. As Levis não mudaram a minha vida. Não cheguei a comprá-las sequer. Mas de alguma maneira usei sempre Levis, é impossível explicar a minha adolescência sem as Levis.
- Excesso de expectativas?
- Como?
- Achas que o Ulisses não mudou a tua vida porque tinhas excesso de expectativas em relação precisamente a ele mudar a tua vida?
- E porque já a tinha mudado, entendes? Ainda não tinha lido o livro, e ele já me tinha mudado. Ou achas que algum de nós tropeçou no livro por acaso? Olha, um livro chamado Ulisses de um tipo chamado James Joyce, e se eu desse uma vista de olhos? Apostava qualquer coisinha que, por junto, antes de chegarmos realmente a lê-lo, já todos devíamos ter lido mais páginas sobre ele do que o tamanho que ele tem.
- É um livro grande...
- Eu sei, eu li-o.
- Mas vais fazer a lista ou não?
- Calma, ainda estamos no primeiro considerando. Há mais problemas.
- Graves, já sei... (risos)

Thinking in a diner # 1

I used to go to Bob’s Big Boy restaurant just about every day from the mid-seventies until the early eighties. I’d have a milk shake and sit and think.
There’s a safety in thinking in a diner. You can have your coffee or your milk shake, and you go off into strange dark areas, and always come back to the safety of the diner. [David Lynch, Catching the big fish, p. 39]

Os que falam em masturbação intelectual ou pequenos delírios da burguesia bem-pensante – they have a point.
Os que falam na incomensurável diferença entre pensamento e acção – they have a point.
Os que falam na absoluta necessidade de distância e segurança para pensar — they have a point.
Os que não falam nada porque nem percebem qual é a coisa de se estar horas a pensar sobre dark areas – they also have a point.
At last, ou estás lá porque não sabes de outro lugar onde pudesses estar melhor, ou simplesmente não estás lá. Mas se estás lá, é melhor que realmente lá estejas. That’s all the point.

PS: na foto, não o Bob’s Big Boy de Los Angeles, mas o de Chofu, Tokyo. Lynch havia de gostar: aqueles telhados aumentam imensamente o sentimento de segurança.

Totalmente domingo

- Tens os anteriores, Leitora?
- Hum... Assim tanto, também tu?
- Bastante, bastante. Olha cá: por acaso não tens maneira de enviar um recado à Susanna and the magical orchestra?
- Ah, também te ocorreu?
- Absolutamente. Há por aqui três ou quatro canções em que ela bem podia pegar. Ou que pelo menos eu gostaria de ouvir na sua versão.
- Mas não desfazendo nesta bateria joe division/new order, certo?
- Isso nunca. Apenas estar também do outro lado, só isso.

Matt Pavolka quartet

6 de Setembro, quinta-feira, Museu Nogueira da Silva, Braga, 21h 45m. Directamente dos lugares mais avançados do novo jazz nova-iorquino, o quarteto do contrabaixista Matt Pavolka.
O pessoal que vem desses lados costuma achar imensa piada ao kitsch do museu, ficam logo com uma vontade terrível de fazer uma cena marada! Vantagem nossa...

Micronarrativas

Uma revista dedicada exclusivamente a micro-narrativas não é frequente. Há boas razões para perder um pouco de tempo e navegar entre alguns inevitáveis escolhos...