Nada mais havendo a tratar

Havia. Haveria sempre. Mas há momentos em que as fórmulas nos protegem da nossa própria queda metafísica. Nem sempre com vantagem, diga-se em abono da verdade, mas a verdade não é propriamente matéria para estas “reuniões”.

Um despedimento por acentuação

É como eu disse, de noite todos os gatos são pardos. Enfatizando pardos.

Um convite por acentuação

De noite todos os gatos são pardos, disse ela. Enfatizando noite.

Da insatisfação, claro

Eu percebo o alcance da picada ne varietur... E Tomaz de Figueiredo como um do mais insatisfeitos ficcionistas portugueses, eu concedo. A coisa é dele, e presunção e água benta cada um toma a que quer. (Mesmo assim, em insatisfação, o Vergílio Ferreira é capaz de não lhe ficar atrás, e o Diário lá está para o atestar). Agora dos maiores, isso já é seu, e deixa-me de queixola aberta — e olhe que eu li, academicamente tive que ler, para mal dos meus pecados e gáudio sádico de um professor que achava que a contemporaneidade tinha a modos que acabado com o Aquilino...

Vinte e sete

Recarreguei o telemóvel. A Tmn recompensa o meu gasto oferecendo-me um bilhete grátis na compra de um bilhete normal nos cinemas Lusomundo, de segunda a quinta, nos próximos dez dias. Tive direito a vinte e sete mensagens, cada uma seu bilhete. Vinte e sete, ok? De segunda a quinta, ok? O socialismo da abundância imaginava para o futuro a cada um segundo as suas necessidades, o capitalismo do consumo, quando oferece, oferece muito mais do que nos é possível consumir no imediato. Depois — bem, depois tem de ser comprado, claro.

A caixa # 2


Braga é uma cidade periférica, disse eu à procura da caixa. JMF, via mail, diz-me que julga saber que aquela coisa forrada a pano é um exclusivo da FNAC para Portugal... Bom, atenua, mas a tese mantém-se, e haveria alguns milhares de pormenores para o comprovar. Em todo o caso, aquilo não era exactamente uma queixa, porque quem não está bem muda-se, e eu até já me podia ter mudado e não quis. Adiante, pois, e quanto a Fnac, sempre fica mais à mão tê-la aqui ao pé de casa. E a caixa, aquele vermelho da capa e o forro aveludado a preto — que coisa tão ironicamente cardinalícia, não é? E claro que isto só poderia ocorrer a um gajo que, mesmo não ligando puto a essas coisas, vive há demasiados anos em Braga...

Contrapartida sinalagmática

A aluna (em voz baixa): nós queríamos saber se o professor estaria interessado em contrapartidas sinalagmáticas...
Eu: contrapartidas quê?.. como é que você consegue usar uma palavra, sem ser da gíria, cujo sentido eu desconheço? que nota teve? sabe mais destas palavras?
A aluna (com impaciência): professor...
Eu: sim?
A aluna (com desconfiança): o professor não sabe mesmo o que a palavra significa?
Eu: não. não é nada indecoroso nem menos próprio, pois não? espero bem que não.
A aluna (com desalento): professor...
Eu: sim?
A aluna (indo embora): nada, nada.
Eu (entre dentes): vou ter de ir ao dicionário, está visto.

Elipses # 2

De volta. A doença muda-nos, naquele sentido forte de que, se não mudamos de vida, a doença muda-se em definitivo para dentro de nós. Mas essas são outras histórias.

Dizia-se

Pensava-se que implodia. Não era verdade. Explodia ao retardador. Quando a causa já tinha sido esquecida e as consequências arrumadas no sótão. Tinha crises metafísicas, dizia-se.

A caixa

Braga é uma cidade periférica. A coisa nota-se em pequenos pormenores. A caixa Dylan, por exemplo. Impossível encontrá-la por aqui. Apenas o duplo com o mais conhecido do melhor. Ainda perguntei nos hiper que tinham o duplo, ficaram a olhar para mim — que caixa? E aquele calafrio quando entrei na recentíssima Fnac-Braga e nos expositores apenas vislumbrei os minguados duplos. A caixa?, perguntei com medo da resposta. Estava noutro lado. A ver se ao menos em matéria de discos e encomendas dos ditos... E apenas falo das coisas de maior circulação. A ver...

Quatro da manhã

In the real dark night of the soul it is always three o’clock in the morning.
(F. Scott Fitzgerald, em epígrafe de A luz da madrugada, de Fernando Pinto do Amaral).

A noite escura da alma adequa-se aos timings próprios de cada um. Três da manhã é a hora de quem ainda não começou a dormir nem o conseguirá fazer como forma mínima de esquecimento. Quatro da manhã, que é a minha hora, é já depois do primeiro sono, um acordar brusco no meio da vida a que momentaneamente me tinha subtraído. Creio que não morrerei nunca de álcool e tabaco e longas noites de insónia. Antes um ataque súbito ao acordar, ou quando no meio da vida abrimos os olhos para a realidade e ela nos fulmina. Mas o post não era para chegar aqui, onde é que me desviei?

Ainda o Outono

À minha memória, este é o mais longo Outono. Dois dias de chuva e vento e as árvores já estariam nuas. Por contraste com seis anos atrás, em que o Inverno foi súbito, precoce, infinitamente comprido para além de qualquer primavera. Há registos. Isto não chega a ser uma elipse, não exige decifração, nem são sinais de nada a não ser deste Outono doce como forma de vida das cores e da luz. O tempo ensina. A gente pouco aprende. E quase sempre demasiado tarde.

Elipses

A fórmula nunca me foi totalmente convincente, mas posso reconhecer-lhe alguma pertinência: o escritor é a voz (ou dá voz) aos que não têm voz. Neste momento, interessa-me sublinhar o contraponto disto: o escritor não deve usurpar a voz dos que querem falar pelos seus próprios meios. Sobre os últimos acontecimentos que muito em contraluz este blog deixa sub-entender, não serei nem mais claro nem mais insistente. Eles serão relatados em primeira pessoa noutro lugar, pela voz própria de quem é o centro involuntário dessa história. Sou acompanhante, de alguma forma sobrevivente, e há aí também uma história. Mas não antes de a história principal ser contada. Os que sabem do que estou a falar, compreendem que, eticamente, esta é a coisa certa a fazer; os que não sabem do que estou a falar, compreenderão que penso ter motivos fortes para algumas elipses.

Como se

Enquanto andarmos por aqui, é sempre “como se”. Certo, há metáforas melhores do que outras. Ou que nos tocam em lugares do entendimento que nós nem sabíamos que tínhamos. Ou que nos desentendem e nos atiram para fora de qualquer coisa. Mas siga.

Lenz Buchmann: cirurgião, político, morto

Nas séries de Gonçalo M. Tavares, a tetralogia O Reino, dos livros negros, é a casa do romance. Aprender a rezar na era da técnica, o romance que encerra a série e chega às livrarias na próxima semana, é um exemplo superior de romance reflexivo, servido por uma escrita depurada, quase cruel na forma como torna legíveis certos dispositivos da vontade de domínio que piedosamente escondemos de nós próprios. Lenz Buchmann é o nosso tempo visto à contra-luz de uma época não tão desaparecida quanto isso.
Um grande romance de um definitivamente grande escritor.
Um excerto em pré-publicação:

(…)
A sua equipa médica nas operações mais complicadas nunca ultrapassara as sete pessoas, e agora ele via-se envolvido em reuniões em que as suas declarações eram escutadas por dezenas de colegas de Partido. Estes encontros políticos revelavam uma espécie de energia magnética que funcionava ou não dentro de um grupo, ligando os seus elementos constituintes de uma ponta à outra.
Este sentimento de comunidade era uma das invenções deste novo tempo em que Lenz entrara. Não tinham sido discutidos pressupostos, ou seja, homens vindos de sangues completamente distintos, de famílias que nunca se haviam cruzado na cama ou nos grandes pactos de rendição ou de declaração de vitória, estavam agora, lado a lado, parecendo, afinal, ter combatido durante séculos no mesmo exército.
Esta ilusão — que o era — não cegava Lenz. Mesmo nas reuniões em que a paisagem parecia ganhar uma fisionomia única e em que a necessidade de ligação entre os homens se aproxima do limite a partir do qual só o amor físico pode saciar, Lenz mantinha-se em dois pontos: estava ali, em baixo, a afinar as armas em coro com os outros e, simultaneamente, em cima, num posto de vigia, num posto secreto, escondido, e, por que não dizê-lo, num posto que revelava uma traição, pois nele tinha acesso visual, não ao campo do inimigo mas ao campo dos próprios elementos aliados.

214 # 5

É uma realidade muito clara. De certeza que numa outra vida foi uma alucinação.

214 # 4

Era um grunhido. Um gemido? Não, um grunhido. De metal. De metal? Sim, de metal. Meio carro e meio dor que já não nos pertence e circula a alta velocidade.

214 # 3

Como está o mundo lá fora? Continua a ser Outono. Mas como está o mundo lá fora? Não muito diferente daqui, apenas em maior.

214 # 2

Continuar para além das partes.

214 # 1

Recomeçar por qualquer parte.

Directiva Antecipada

Para os fins que se revelarem necessários, quero/queremos tornar pública a “Directiva Antecipada” abaixo transcrita. Sem mais quaisquer comentários, por agora.


DECLARAÇÃO / DIRECTIVA ANTECIPADA

Eu, LAURA FERREIRA DOS SANTOS, na plena posse das minhas faculdades mentais, elaboro esta Declaração como uma directiva/solicitação a ser seguida se me tornar definitivamente incapaz de participar em decisões que digam respeito à minha saúde do ponto de vista médico. Estas instruções reflectem a minha firme vontade de recusar tratamento médico nas circunstâncias abaixo assinaladas, embora, infelizmente, estas Directivas Antecipadas ainda não tenham valor jurídico em Portugal.

. Peço ao pessoal médico que me esteja a assistir (se isso for possível, peço-o directamente a quem tem vindo a ser ao longo dos anos o meu clínico geral, Dr. ........) que, caso eu esteja numa condição mental ou física incurável ou irreversível, sem expectativa razoável de recuperação para uma existência com qualidade de vida, não faça uso de meios ou tratamentos que apenas prolonguem desnecessariamente o meu morrer.

. Estas instruções aplicam-se caso eu esteja:
a) numa situação terminal;
b) em estado vegetativo persistente; ou
c) se o meu cérebro se encontrar irreversivelmente danificado e nunca mais puder recuperar a capacidade de tomar decisões e expressar os meus desejos.

Solicito que os cuidados de saúde a serem-me então prestados se limitem a manter-me confortável e a aliviar a dor, aqui incluindo qualquer dor que possa derivar de não se recorrer aos meios de “tratamento” que recusei, ou de se ter posto fim ao seu uso. De um modo especial, peço que, nas circunstâncias indicadas, não me deixem morrer com a sensação de sufocação e não me deixem entrar em delírio ou alucinações, evitando qualquer outra situação que provoque mal-estar ou dor.

. Se estiver nas condições acima indicadas, penso concretamente o seguinte acerca das formas de “tratamento” / esforço terapêutico abaixo especificadas:
. não quero “ressuscitação” cardíaca;
. não quero respiração mecânica (ser ligada a ventilador);
. não quero nutrição e hidratação artificiais (desde que retirar a hidratação não me aumente as dores ou dificulte a sua eliminação);
. não quero antibióticos.

De qualquer modo, reafirmo veementemente que, nessas circunstâncias, solicito o máximo alívio da dor, mesmo que apresse a minha morte.


Em caso de dúvida, sobretudo em relação ao que eu poderia entender por “expectativa razoável de recuperação” e “qualidade de vida”, constituo o meu marido, Luís Alberto Seixas Mourão, como meu representante, pela total confiança que tenho nele e pelo conhecimento que tem do meu pensar.
A não ser que eu tenha anulado estas directivas/solicitações numa nova Declaração, ou que claramente tenha indicado que mudei de pensar, o que aqui acabo de escrever deve ser entendido como expressando a minha vontade.
Para as redigir, tomei como referência a “New York Living Will”, tal como vem apresentada no livro de Timothy E. Quill, M. D., A Midwife through the Dying Process, Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 1996, 237-8.

Braga, 26 de Agosto de 2003
Braga, 04 de Novembro de 2007 (reafirmação)

Que nada se sabe

Há momentos na vida em que tudo o que sabemos não serve de nada. A gente tenta agarrar-se a qualquer coisa e não há. Mas esses são também exactamente os momentos em que a inteligência mais conta. A inteligência mais nua e compassiva, disposta a recomeçar a história naquelas condições que não determinamos mas nos couberam na roleta russa.