Inês, diz sim

Se ele se chamasse Pedro, se calhar o caso já estava resolvido. Chama-se António, e ao que parece tem sido difícil convencer a Inês a casar-se. O Manchas, que de vez em quando é um blog dado a sentimentalismos, não conhecendo nem o António nem a Inês, ficou seduzido pelo “imperativo categórico” (cá está, o Manchas nunca consegue ser humanamente sentimental, que raios...) lançado pela Inês: o António tem de reunir dez mil assinaturas para convencer a Inês a casar-se com ele. É mais do que o exigido para ser candidato a presidente da república. E assim é que está bem.

Aumento da população & lei das probabilidades

Os desastres de amor não são diferentes dos desastres de viação. Têm que acontecer, é uma correlação inexorável com o volume de tráfego.

Fogo

Quem disse que o regresso às origens é sempre da ordem da nostalgia e da melancolia? Ok, muita gente, e eu também fui na onda. Mas nem sempre é verdade. Felizmente, nem sempre é verdade.

A Leitora, no seu infinito particular (LVIII)

susanna and the magical orchestra, melody mountain

Toma este para troca. Perdeste o espectáculo dela no Theatro Circo, o que foi uma pena, de certeza. Sei que vais gostar da versão Dylan (aquela espécie de baixo-contínuo, tão suficiente para dizer tudo) e da versão Joy Division (assim mais lento que lento percebe-se melhor o que separa). Mas depois falamos. Manda lá o fogo de que falaste. Sempre quero ver — melhor, ouvir.

Grande Prémio de Novela e Romance APE/IPLB 2006

A obra de Maria Gabriela Llansol marca um trajecto singular na literatura portuguesa contemporânea, pela forma consistente e intransigente como tem procurado novos caminhos para a escrita do romance.
Como sempre na sua obra, o vivido comparece sem os traços vulgares dos decalques realistas. O que a sua escrita visa não é a restituição de um real reconhecível na sua legibilidade imediata, a falsidade de um conhecimento de apropriação, mas o encontro do fulgor que cada ser ou situação comporta, aquilo que o vivo tem como potência de sentido e que é a tarefa e a responsabilidade de existirmos.
Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004 é um romance particularmente exigente face a esta responsabilidade, pois que parte do confronto com “O Golpe”, que é sempre a inscrição da morte no nosso existir. Sem qualquer pathos sentimental ou ilusão de transcendência, Amigo e Amiga cria a vida pós-dor. As suas múltiplas figuras, algumas vindas de romances anteriores, constroem a aliança entre o que perdura, o que muda subitamente de sentido e o que emerge para a restante vida. A todas acolhe o silêncio, aquilo que preserva o texto e o existir da banalidade sufocante, aquilo que reconduz a ética da literatura — ou de qualquer outra tarefa — ao seu lugar de invenção de uma realidade que se mede apenas pela capacidade de devirmos dentro dela aquilo que de nós próprios desconhecíamos.

O domingo depois de um sábado qualquer # 6

O mar. Sempre o mar. Mas agora vê se dormes.

O domingo depois de um sábado qualquer # 5

Em todo o caso, não completamente Tchekov. Que me lembre, não usei roupão nenhum dia do ano. Isto deve ser sinal de qualquer coisa, mas não sei bem de quê.

O domingo depois de um sábado qualquer # 4

O que é a vida de um tipo que ainda pode medir o tempo por sábados e domingos? Presumo que a resposta deve situar-me algures numa das peças de Tchekov.

O domingo depois de um sábado qualquer # 3

Também no céu há outro mar. A transposição não custa. Leva a vida toda atrás. Tudo fica na mesma. É assim que deve ser. Não aguentaríamos o contrário. Não saberíamos que fazer com o contrário. Nem adiantaria muito que houvesse o contrário.
Também no céu há outro mar. É só.

O domingo depois de um sábado qualquer # 2

não é bem mais difícil esquecermo-nos do mar
depois de o olharmos
depois de o ouvir
depois de termos nele mergulhado?

João Miguel Fernandes Jorge, Termo de Óbidos, Relógio D'Água, 2006, p. 59

O domingo depois de um sábado qualquer # 1

de súbito encontramos o mar: um país
nem razão nem consciência, obscura força de subterrânea
corrente governa os homens, os barcos —
eventos que são a nossa vida toda.

João Miguel Fernandes Jorge, Termo de Óbidos, Relógio D'Água, 2006, p. 28

Um sábado qualquer # 4

Regressar com o mar. No motor do carro, na noite aberta, na música baixa — desdobramentos do mar. Voltar ao trabalho — nadar.

Um sábado qualquer # 3

Deveria dizer desde sempre? O mar desde sempre? Mas é só a minha vida. Parte dela. Por intermitências. O que sei por ontologia aplicada não me serve para dizer desde sempre. É irrelevante. Mas serve-me para o conforto da minha brevidade. Para esses momentos em que o conforto da brevidade se sobrepõe à angústia. Passarei. Passarei completamente. O mar. Sempre o mar.

Um sábado qualquer # 2

O mar e o vento. Sempre o mar e o vento. Depois, só o mar.

Um sábado qualquer # 1

O mar. Sempre o mar.

Uma lentidão que parece uma velocidade

Completo desastre, o projecto que Tânia Carvalho apresentou ontem no Theatro Circo. Título belíssimo, ouvido em Cocteau, ligação de ideias falhada. Por mais voltas que dê é-me incompreensível como é que uma performer de dança contemporânea pode conceber que vai tocar uma sonata de Mozart como se fosse uma coreografia para dedos. Mais de metade do tempo do projecto é isso: Tânia Carvalho sentada ao piano, executando ao vivo a sonata. Sem um mínimo sentido de fluxo melódico, “martelando” as notas justamente como numa coreografia de dedos. Mas porquê?! Excruciante. E o número de dança foi sem rasgo nem inventividade. Não haverá ninguém no círculo de Tânia Carvalho com quem ela possa discutir estes projectos e lhe diga que isto são ideias redondamente falhadas?..

A impossibilidade de negar

No mesmo JL, Mafalda Ivo Cruz assina um notável pequeno texto sobre a sua alegria pelo prémio atribuído a Llansol. Dois excertos:

Há obras que se podem ler até ao infinito pois não acabarão nunca de se explicar. São obras cujo corpo (a explicação) é um recomeçar a falar numa ordem que de cada vez se recria e se organiza, com uma disciplina sempre diferentes, mas sempre igualmente impositiva e luminosa. Exactamente como o falar das pessoas com quem vivemos, que faz parte do nosso labirinto pessoal. E são a nossa vida íntima mental. (...)

Ouvindo, como já ouvi tantas vezes, outra versão da Oferenda Musical enquanto escrevo este texto não posso deixar de aproximar a leitura de um e da outra. Qual será a substância da força que se limita a elevar-se, a ficar sempre ao lado do agir e da clarificação que não cessa?
O que define um grande autor é a impossibilidade de o negar. É que em nós não possamos fazer nada contra ele. (...)

PS: Precisamente: nada contra ele. O que não impede de se poder preferir outro. Ou de ter votado, no ano transacto, num romance cuja "ideia de literatura" é substancialmente diferente.

Contra?

Eu sei que é uma pequena notícia, e que o essencial é dito: Maria Gabriela Llansol venceu o Grande Prémio APE 2006. Mas certos deslizes semânticos estragam o bom jornalismo, e são menos desculpáveis ainda num Jornal de Letras, Artes e Ideias. Depois de informar que o júri deliberou o prémio por maioria de três votos, a notícia não assinada acrescenta:

votaram contra Cristina Robalo Cordeiro e Fernando Pinto do Amaral, que preferiram, respectivamente, Cemitério de Pianos, de José Luís Peixoto, e A Ronda da Noite, de Agustina Bessa-Luís” (sublinhado meu, JL nº 956, de 23 de Maio a 5 de Junho de 2007, pag. 5).

Desde quando, e logo em literatura, preferir é ser contra aquilo que não se prefere tanto?

Génio

Ora bem, disse ele, para início de discurso. Depois calou-se e não disse mais nada. Vão passar muitos anos até se reconhecer que este foi o seu discurso de génio.

Precaução

Procurem já por aí um indulto qualquer, uma cláusula miudinha que permita dar a volta à palavra dada, não vão os diabos vermelhos tecê-las mais logo à noite e ficamos sem esse blog do caralho. Para o que lhe havia de dar, grande porra!

Lembra-me

- Diz-me três coisas que gostes em mim.
- A oitava, sem dúvida. E a quinta - oh, a quinta, absolutamente. E a segunda, mas isso nem preciso de to dizer.
- E qual dessas três gostas mais?
- Depende. É conforme os dias. Mas a quinta, ultimamente... Hum...
- Lembra-me: qual é ao certo a quinta?

Isto? # 4

João Queiroz*

Esta paisagem desconhecida tornada sensitiva porque se abandonou o lugar de espectador.

*Chiado 8 - Arte Contemporânea. Até 15 de Junho

Isto? # 3

Tentemos de outro modo. Suponha um beijo. Sim, um beijo. Já beijou, certo? Ora aí está. Um beijo. Suponha alguns momentos antes do beijo, suponha até aqueles momentos em que ainda não é previsível que venha a existir o beijo. Vê perfeitamente o rosto, a pessoa toda, o rosto de novo. Repare agora, que se iniciou o movimento de aproximação do beijo. Vamos fazer ao ralenti para se perceber melhor. Vê a lenta desfocagem do rosto à medida que se aproxima para o beijo? O modo como se vai transformando numa paisagem desconhecida? E agora que o beijo começou, percebe como essa paisagem desconhecida se torna paisagem sensitiva, como o movimento dos lábios é uma mistura de cores, e o aflorar da língua dissolve essas cores em direcção a outras? Agora imagine que queria pintar isso. Essa paisagem desconhecida tornada sensitiva porque você abandonou o lugar de espectador.

Isto? # 2

Está a ver ali aquele monte? Não vê você outra coisa todos os dias, não é verdade? Agora feche os olhos. Não, não vai reconstruí-lo de memória, como se estivesse a lembrar uma fotografia. O monte está vivo. Não se perca a olhá-lo. Sinta-o por dentro dos olhos fechados. Veja-o através disso que sente. Como as cores se misturam, a luz irradia e vai mudando, as matérias são diferentes na sua densidade ou na sua transparência, no seu peso ou na sua leveza. Não se preocupe com a coerência daquilo que vê, não procure um ajustamento à realidade, veja só o que sente.
Pois, percebo, conhece demasiado bem o monte... Quer dizer, não demasiado bem, mas tem uma fotografia mental de reconhecimento, é com ela que prova todos dias que o mundo continua a ser o mesmo..

Isto? # 1

João Queiroz*

A preguiça e a alegre incompetência levam-me a digitalizar algumas imagens num centro informático. Eles sabem, são rápidos e eficientes, eu poupo tempo. Mas com estas imagens, pela primeira vez — e percebo porquê — surgiu a pergunta: isto o que é? Logo seguida duma espécie de justificação: sou muito prático, muito terra-a-terra, não consigo identificar isto. O pedagogo absurdo que há em mim, como diria o Abelaira, sentiu o desafio.

*Chiado 8 - Arte Contemporânea, até 15 de Junho

Não havia necessidade

de tanto suspense, carago...

Arte & Contexto # 2

Por razões tão comezinhas que podemos passar adiante, aconteceu-me na última quinta-feira, em Aveiro, entrar cerca de vinte minutos antes no pequeno auditório onde iria falar. Arrumadas as coisas vim-me sentar cá atrás, como um mero espectador muito madrugador — e, no caso, o seu tanto sonolento. Muito lentamente, as pessoas foram chegando. Primeiro um grupo de quatro jovens, em conversa animada, que se foram sentar na primeira fila. Falavam da Madeleine, ingleses, Algarve. Ouvi dispersamente, um pouco mais atento quando uma disse que quase nunca via televisão mas que tinha ficado para ver aquele programa verdadeiramente estúpido, mas não sei que programa era porque entretanto entraram mais três jovens que se sentaram a duas cadeiras de distância, outras conversas, aquelas expressões de geração, isto não é normal, é bem, coisas assim. A sala foi-se enchendo, chegaram os professores organizadores e sentaram-se também nos seus lugares de espectadores, faltava o conferencista mas as conversas estavam animadas. Ninguém estava sozinho (apenas eu), sentia-se a vida a correr, havia um fresco na sala que protegia do sol lá fora. Tantas histórias, aconteceu-me pensar, tantas vidas cruzadas — e tudo se iria interromper por causa de outras histórias, de outras vidas cruzadas que nem seriam assim muito diferentes. Mas as pessoas vinham por causa dessa interrupção. Por motivos diferentes, bem sei, entre obrigação escolar e mera curiosidade. Mas esperavam o jogo dessa interrupção. Faltava o conferencista. Até que do grupo de organizadores veio o sinal e eu tive de me levantar. Caminhei para a mesa enquanto se extinguiam as conversas e nascia aquela pergunta vagamente trocista — mas este caramelo estava sentado lá atrás a fazer o quê?

Grande Prémio do Romance da APE – 2006


Para Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004, de Maria Gabriela Llansol.

O júri foi constituído por Silvina Rodrigues Lopes, Ana Mafalda Leite, Luís Mourão, Cristina Robalo Cordeiro (que votou em Cemitério de Pianos, de José Luís Peixoto) e Fernando Pinto do Amaral (que votou em Ronda da Noite, de Agustina Bessa-Luís).

WC Lectures # 15

Andar de bicicleta numa extensa poça de água e encontrar um jacaré é mais comum do que se possa pensar. Conseguir matar o jacaré não. Por isso o jacaré tem de dizer que morreu, não vá a gente pensar que ele está apenas a brincar connosco enquanto não se resolve a fechar a partida. Coisa que sempre acontece, aliás. Se não é este jacaré, outro será.

WC Lectures # 14

Andar de bicicleta numa extensa poça de água e encontrar um jacaré é mais comum do que se possa pensar. Não obstante, a alegria do jacaré é perfeitamente compreensível: a cada dia a sua possibilidade de um encontro imprevisto. Se isto fosse uma história zen (mas não é), os da bicicleta dariam graças pela possibilidade de uma morte singular.
Gosto da bicicleta. Não precisa de pedais, o que tem toda a lógica. As sapatilhas pertenciam à história anterior. Não aparecendo aqui, porque apareceriam os pedais? Lógico.

Derivas

Amanhã, na Universidade de Aveiro (15h), no ciclo de conferências Derivas, organizado pelo Departamento de Línguas e Literaturas, falarei sobre "Saramago contra Saramago, e o romance contra ambos".

WC Lectures # 13

O que qualquer lugar tem de humano é exactamente o que ele tem de inumano: traz as diferenças a um mesmo plano de convívio, em que a dificuldade do reconhecimento é substituída pelas boas maneiras. E pelo menu à la carte: que comas o prato ou as iguarias tanto faz, desde que te sentes de costas direitas e no teu espaço próprio.

WC Lectures # 12

The doubtful guest (O hóspede suspeito) é uma daquelas histórias que me servem perfeitamente. Alguém que chega a um lugar (uma família é sempre um lugar, um ninho da espécie), que é diferente, que causa um vendaval, mas que com o correr do tempo é incorporado em indiferença e se torna ele próprio indiferente a si mesmo.
As sapatilhas são esse pormenor que entreabre a autobiografia de cada um de nós — kilómetros até um lugar. Dizemos de cada vez: é só por um par de dias. E de cada vez ficamos para sempre. Por assim dizer. Isto é: tempo demais. Que é sempre de menos. Contos largos, contos muito largos.

WC Lectures # 11

Edward Gorey

Eis um autor no seu lugar — se isto é um lugar.
Tudo condiz e está certo. As sapatilhas têm muitos kilómetros — é por isso que isto deve ser um lugar.
Claro — nada interessa o autor quando temos a obra. E se interessar um bocadinho, não será certamente pela sua figura. Mas agora não me macem com teorias e ponham aí que olho para isto com um interesse pós-impressionista e pós-biografista. Ou qualquer coisa do género.
Edward Gorey foi a prenda de natal da TC. O obrigado de agora é pós-leitura. Não o obrigado da amizade, mas do reconhecimento intelectual. O obrigado por um novo autor.

WC Lectures # 10

“A julgar pelo que dele se diz, Edward Gorey será um dos melhores autores de qualquer coisa que não se sabe bem o quê do século vinte. A bibliografia de Edward Gorey ascende a uma centena de livros. Boa parte deles são histórias desenhadas.
(...) na imagem de marca de Gorey, reconhecível por um traço reminiscente das gravuras em madeira, pela opção preferencial por um desenho em cada página e ainda pela luxúria vocabular (ninguém como ele consegue usar tantas palavras raras do Oxford English Dictionary em vinhetas tão sucintas) dos seus textos destacados na mise en page.”
Da nota introdutória, presumivelmente de Margarida Vale de Gato.
Errata edições, 2003.

Arte & Contexto # 1

«Numa experiência inédita, Joshua Bell, um dos mais famosos violinistas do Mundo, tocou incógnito durante 45 minutos, numa estação de metro de Washington, de manhã, em hora de ponta, despertando pouca ou nenhuma atenção.

A provocatória iniciativa foi da responsabilidade do jornal "Washington Post", que pretendeu lançar um debate sobre arte, beleza e contextos. Ninguém reparou também que o violinista tocava com um Stradivarius de 1713 - que vale 3,5 milhões de dólares.

Três dias antes, Bell tinha tocado no Symphony Hall de Boston, onde os melhores lugares custam 100 dólares, mas na estação de metro foi ostensivamente ignorado pela maioria. A excepção foram as crianças, que, inevitavelmente, e perante a oposição do pai ou da mãe, queriam parar para escutar Bell, algo que, diz o jornal, indicará que todos nascemos com poesia e esta é depois, lentamente, sufocada dentro de todos nós.

Bell, que é uma espécie de 'sex symbol' da clássica, vestido de jeans, t-shirt e boné de basebol, interpretou "Chaconne", de Bach, que é, na sua opinião, "uma das maiores peças musicais de sempre, mas também um dos grandes sucessos da história". Executou ainda "Ave Maria", de Schubert, e "Estrellita", de Manuel Ponce - mas a indiferença foi quase total. Esse facto, aparentemente, não impressionou os utentes do metro.

"Foi uma sensação muito estranha ver que as pessoas me ignoravam", disse Bell, habituado ao aplauso. "Num concerto, fico irritado se alguém tosse ou se um telemóvel toca. Mas no metro as minhas expectativas diminuíram. Fiquei agradecido pelo mínimo reconhecimento, mesmo um simples olhar", acrescentou. O sucedido motiva o debate: foi este um caso de "pérolas a porcos"? É a beleza um facto objectivo que se pode medir ou tão-só uma opinião? Mark Leitahuse, director da Galeria Nacional de Arte, não se surpreende: "A arte tem de estar em contexto". E dá um exemplo: "Se tirarmos uma pintura famosa de um museu e a colocarmos num restaurante, ninguém a notará".

Para outros, como o escritor John Lane, a experiência indica a "perda da capacidade de se apreciar a beleza". O escritor disse ao "Washington Post" que isto não significa que "as pessoas não tenham a capacidade de compreender a beleza, mas sim que ela deixou de ser relevante"».

Extraído da Newsletter 18 do Centro de Estudos de Jazz, www.jazzportugal.ua.pt

Faltam uns pudicos cinco por cento

A fotografia vinha no Público de 21 de Abril deste ano, acompanhando a notícia de que o Metropolitan Museum de New York tinha aberto novas galerias para a arte da antiguidade clássica. A legenda dizia: 95 por cento da colecção de arte grega e romana está agora exposta.

“Também tu, Brutus?” ou brevíssimo tratado da obscenidade política

Quando César se torna César sabe que uma das possibilidades do seu fim politico é ser morto pelos seus inimigos. E também por alguns dos seus amigos. César sabe que só é César enquanto se mantém vivo, e que isso implica, por vezes, matar os seus adversários. Matar literalmente. Em democracia, é menos frequente matar-se literalmente os inimigos. Os mecanismos são outros. Mas a morte política é a mesma.
A pergunta de César quando vê Brutus no grupo dos que o assassinam não é uma queixa nem uma acusação que identifique um traidor. A pergunta de César é uma forma de auto-recriminação. César enganou-se sobre Brutus. O problema não está em Brutus, que se limitou a ser quem é, ou a revelar-se finalmente quem era, ou a aproveitar o momento para se tornar naquilo que queria ser. O problema está em César, que não soube avaliá-lo. Em política, uma traição bem sucedida revela sempre a fraqueza do traído. Em política, o derrotado, se se quer manter na arena, guarda silêncio sobre juízos morais do senso comum e redefine as suas estratégias. Ou retira-se e escreve as suas memórias. Que, como todas as memórias, são as memórias de um morto.
Os juízos morais do senso comum estão fora da cena política. Literalmente: obs-cenum. Há normas jurídicas e constitucionais. E há o confronto das singularidades. Nada mais confrangedor do que um político a queixar-se da traição dos seus pares e a querer que essa queixa tenha a pertinência política que necessariamente negou aos que antes se queixaram dele. Nada mais confrangedor do que um político a queixar-se do juízo da opinião pública, como se não tivesse sido essa mesma opinião pública que antes o sancionou no lugar que ocupa.
A não ser que o problema esteja noutro lado: os políticos já não lêem Shakespeare, limitam-se a ver e a imitar as telenovelas.

Private, but not a joke

Veremos. Eu disse veremos.
Não disse que sim. Não disse que não. Não disse que nem sim nem não.
Disse veremos. Acho que é tudo.

Psicopatologia da vida quotidiana # 27

Fala de bombeiro: “Assim que conseguimos a penetração, extinguimos o fogo de imediato”.

Dar a volta à coisa # 12

Raramente se conhece a mamã do menino da mamã.

Não era pintura

Capa de Álvaro Lapa

Era amigo de um amigo. Nessa duas tardes de um verão em Castelo de Neiva ouvi-lhe alguns monossílabos. Desesperado com a tese sobre Adorno. Não que não gostasse, ou que não sentisse o desafio. Simplesmente, não era pintura. Passei lá por acaso, hoje. A casa continua a ser de emigrantes, abre sobre a praia, foi pintada de amarelo vivo. Não encontrei nenhum dos dois. Nunca nos conformamos, e o tempo pouco nos ensina. Mas a vida impõe-se. Simplesmente, não é nem era pintura.

A Leitora, no seu infinito particular (LVII)

Joe Henry, Tiny voices

Uma quase obra-prima que de repente reencontrei. Do tempo em que ainda não nos conhecíamos, tu não tinhas um blog e eu não te aturava as agruras existenciais. Que tudo se resume a tiny voices, very tiny voices. E sim: a quem de vez em quando nos ouça. Como sempre, desde o princípio do mundo. Sabendo da solidão no princípio, no meio e no fim. Como sempre, também. E contudo: tiny voices, very tiny voices.

Multiplex 31 # doze

(O mesmo apartamento, à mesma hora. Tudo arrumado. Silêncio. O telefone toca. Entra o atendedor de chamadas. Ruídos indistintos, primeiro. Depois grunhidos de porcos, ursos, e choro de crianças. A chamada é desligada.
Silêncio.
A televisão abre. Ecrã com granulado, emite apenas ruído estático. Cada vez mais forte. Extingue-se de súbito.
Silêncio. A luz vai descendo devagar, até ser fim de tarde.
Barulho de chave na porta e ferrolhos a correr. Entram A Leitora e Luís. Conversam animadamente, mas não se ouve o que dizem. Cada um pega numa peça de fruta, continuam a conversar animadamente, abrem a janela, sobem para o parapeito com inteira normalidade e dão um passo para fora como se estivessem a sair pela porta.
Silêncio.
Barulho de chave na porta e ferrolhos a correr. Entram o Homem Branco e o Homem Preto, que traz consigo o rádio. Logo a seguir entram também o urso, o porco e o rapazinho. Conversam animadamente entre si, mas não se ouve o que dizem. O rapazinho nota a janela aberta e fecha-a.
A conversa continua animada, mas não se ouve o que dizem.
O Homem Branco aproxima-se da janela, abre a janela, sobe para o parapeito com inteira normalidade e dá um passo para fora como se estivesse a sair pela porta. Todos estes movimentos são seguidos pelas restantes personagens com o máximo de atenção.
Poucos segundos depois o Homem Branco ter desaparecido, as restantes personagens atropelam-se umas às outras para chegar à janela. A cena lembra as pantominas de Charlot. Todos acabam por sair pela janela.
Silêncio. A luz desce ainda mais, e pela janela entram as luzes da cidade. Lentamente, o rádio que o Homem Preto transportava vai ficando iluminado em cima da mesa. Começa a transmitir "Your side of my world", de Joe Henry. No final da canção, todo o cenário está imerso na mais completa escuridão, à excepção do rádio, que cintila. Silêncio. O rádio continua a cintilar.)

Thought that bell was in my dream,
All in my head,
Until the trucks were in the yard
And the fire was in my bed.
Oh, can you hear the ringing bell,
Telling time like time was to tell?
Can you see the smoke rise and cut
All the way from your side of the world?

...

Let’s pretend we’ve never loved
Let’s pretend our hands are clean,
Free of all the spit and shine
And the smell of gasoline.
Cause here come the planes and the tambourines,
The funeral march, and the beauty queens,
The circus freaks selling lemonade
From the back of an open-air motorcade.
Here come the heart machines and the baby shoes,
The ship-to-shore relay of the sporting news,
That mail-order brides – fake tits and pearls
All making way from your side of the world.

Joe Henry, "Your side of the world", Tiny Voices (2003)

Multiplex 31 # onze

(O mesmo apartamento. A Leitora e Luís almoçam)
- Está bom, estás aprovada como cozinheira!
- Obrigado. Mas é uma coisa tão simples...
- Simples mas perfeita. Tudo no sítio certo. Até esta luz. Esta luz de Lisboa...
- Hum...
- Agora este pedaço aqui, se não te importas, vou comer à mão...
- (rindo) E precisas de pedir?
- São muitos anos de educação...
- Sempre vamos ver o Lynch?
- Vamos. Aliás, é bom que vás comigo. Se eu me perder, conto contigo para me ires buscar às profundezas das imagens... Nunca se sabe...
- E se for eu a perder-me?..
- Tens aqui um verdadeiro cavaleiro andante...
(Riem ambos. O telefone toca. A Leitora fica hirta. Luís olha-a surpreendido. Mas o seu olhar via ficando progressivamente assustado. O telefone toca cada vez mais alto.)
- (gritando) Vamos sair e voltar a entrar, já!
(Saem. Barulho de chave na porta e ferrolhos a correr.)

Multiplex 31 # dez

(Apartamento novo, mobilado em estilo moderno minimalista. Janelas amplas sobre a cidade. É já noite. Barulho de uma chave na porta e ferrolhos a correr. Entram A Leitora e Luís.)
- Mas tu disseste que não.
- Pois. Disse que não. Mas mudei de ideias.
- Assim, sem mais nem menos? E porquê?
- Sei lá porquê!..
- Pensa, tem de haver uma razão.
- E se não houver?
- Podes ao menos pensar?
- O cansaço...
- O cansaço?! Mas disseste...
- Tens razão, não é o cansaço. Que existe, não penses que não existe, mas de facto não é a razão.
- Qual é a razão, então?
- Não quero. Não vale a pena. Não me interessam esses porquês. Não me interessa o que gera, interessa-me que gere. Interessa-me seguir. Ou que se interrompa para seguir de outra maneira. Interessa-me o que vem através de mim, eu vou atrás. Mas não era para termos esta conversa, pois não?
- Tu mudaste de ideias.
- Mudei?
- Acho que sim. Mas agora também já não tenho a certeza.
- E se saíssemos e voltássemos a entrar?
- Boa ideia.
(Saem. Barulho de chave na porta e ferrolhos a correr.)

Multiplex 31 # nove

(Quarto semelhante ao anterior. O urso, o porco e o rapazinho estão sentados na cama. O rádio toca as Variações Goldberg, em cravo. O urso pesquisa os seus pelos, fica atento à música de vez em quando; o porco, com uma parte da cara/focinho em sangue, come continuamente de um saco, alheado dos outros dois, mas sem fazer barulho; o rapazinho escuta atentamente, segue cada peripécia da música.
A Leitora entra e apressa-se em direcção ao rapazinho, mas as suas mãos atravessam-no, como se fosse uma imagem. Faz o mesmo ao urso, e também as suas mãos o atravessam. Dirige-se ao porco mas pára, acaba por se vir encostar à janela, segue com angústia a música e o que cada um deles faz.
Depois de alguns minutos de música, a imagem do urso começa a diminuir e a entrar pela cabeça do porco. O porco continua a comer imperturbável. Depois é a imagem do rapazinho que começa a entrar pelo peito do porco, que continua a comer.
Mais alguns minutos de música. A Leitora faz um gesto em direcção ao porco, que pára de comer e a olha fixamente. A Leitora aproxima-se muito devagar. O porco grunhe, cada vez mais forte, o seu grunhir sobrepõe-se à música. A Leitora pára por um breve momento, mas continua. Muito devagar. O porco grunhe mais forte, o sangue recomeça a escorrer da sua cara/focinho. A Leitora tira a blusa, amarfanha-a, e faz uma compressa para estancar o sangue. Abraça a cabeça do porco. Os grunhidos vão baixando até desaparecerem, a música toca agora mais alto.
A Leitora deita o porco, que se ajeita na posição fetal, e deita-se por trás dele, abraçando-o. A música toca ainda mais alto. A Leitora começa a desaparecer dentro do corpo do porco. A luz baixa, o porco é apenas um vulto indistinto na cama. A música toca mais alto. É a ária da capo, com que finalizam as Varições Goldberg. Quando a música acaba, o vulto indistinto começa a arder. A luz baixa completamente, o vulto arde completamente. Ouve-se o crepitar das chamas mesmo quando o vulto já acabou de arder. O barulho vai descendo até se extinguir.
Escuridão total.
Barulho de uma chave na porta e de ferrolhos a correr).

Multiplex 31 # oito

(Primeiro hotel. A Leitora procura o mesmo quarto, certifica-se do número, empurra a porta devagar. Seis mulheres e um rapazinho estão espalhados pelo quarto. Todas olham a Leitora com atenção e ironia.)
Mulher 1: Tu conheces-nos? Já nos viste?
M3: Sabes quem nós somos?
M6: Eu sou a mais velha, mas não sou a mãe. Nem penses, incesto não, já não se usa, grau zero do drama.
M4: Eu fui a mais nova. Barely legal, he he...
M2: Vês-nos no olhar dele?
M1: Não lhe perguntes isso, ela não olha para ele assim.
M5: Não olha mas vê. Qualquer mulher vê.
M1: Deixa-te disso. Não há essa essência. Ou vês ou não vês. E para veres uma coisa não podes ver a outra. Deixa-te disso.
M5 (apontando para M1): Ela foi quem lhe meteu mais medo. Coitado... E coitada dela, também.
M1: Não foi meter medo, o medo vivia entre nós. Entre nós todos. Quase uma geração para o caixote do lixo, por causa do medo.
M4: Mas uma vida é longa, às vezes isso é o que vale. Eu fui a mais nova. E ele foi muito novo.
M6: Era uma criança. Tão desajeitado, tão poético. Demasiado sensível para ser homem. Quase se perdia. Quase nos perdíamos.
M3: Sabes quem nós somos?
M1 (apontando para M3): Ela dá muita importância à questão da identidade...
M3: Eu sou a que ele confundiu sempre com outra.
M2: Todos os homens têm isso em certos momentos, distinguem mal, confundem tudo, não sabem ver. Tu vês-nos no olhar dele?
M3: Mas ele tinha de me confundir, vocês ainda não perceberam. Era sempre a mim que ele queria, mas não suportava o meu excesso de realidade.
M4: Eu fui a mais nova, já não havia realidade nenhuma, apenas existência.
M1: Sempre houve realidade e existência. Nunca deixará de haver realidade e existência. Quando vês uma não vês a outra. Deixa-te disso.
M2: Eu sou a que olha nos olhos e vê as mil despedidas. Despediu-se de mim mil vezes. Despede-se de cada coisa mil vezes, mas só numa fala, a dizer adeus. Às vezes nem fala.
M6: Eu sou a mais velha, aquela a quem ele conta cada recomeço. Recomeça mil vezes de cada vez.
M1: Tu deves conhecer-nos. Já nos viste, de certeza.
M3: Sabes quem nós somos?
M5: Eu sou a que ele vê de passagem, a que está nos sonhos de que não se lembra, a que o faz vir quando se abandona a nada.
M1: É ainda e sempre o medo.
M5: Não, é ainda e sempre a vida.
M6: Vais ficar connosco?
(A Leitora procura o rapazinho com o olhar, avança na sua direcção; o rapazinho, que até aí andou de mulher em mulher, puxando-lhes pelos vestidos ou fazendo pequenas brincadeiras inocentes, recua para a janela.)
Leitora (dirigindo-se apenas ao rapazinho): Vens comigo?
Rapazinho (a medo): Tu tens o rádio?
Leitora (hesitando): Eu arranjo-te um rádio, anda...
Rapazinho: Não, tem de ser aquele. Tu tens aquele rádio?
Leitora: Eu arranjo-te um rádio melhor que aquele.
Rapazinho (triste): Tu deixaste que eles levassem o rádio?
Leitora (controlando-se): Eu arranjo-te um rádio melhor, vais ver. Aquele nem dava música, só coisas estranhas. Não sei se eles levaram o rádio, mas não faz mal. Eu arranjo-te um rádio só para ti, novinho, anda...
Rapazinho: Tu não percebes, assim não se pode morrer. É uma pena que tu não percebas.
(O Rapazinho abre a janela e atira-se. A Leitora fica petrificada, as outras seis mulheres não reagem, continuam a olhá-la com atenção e ironia. Silêncio. Finalmente, M6 levanta-se e empurra a Leitora para a porta.)
M6: É no andar de baixo. Procura no andar de baixo. É o mesmo número, mas ao contrário. Vai. No andar de baixo, o mesmo número ao contrário.

Multiplex 31 # sete

(A Leitora corre, vira uma esquina e está à entrada de um parque de diversões. Roullote de bifanas à direita. Dois homens, um negro e um branco, altos, com aventais, atendem. Olham-na com indiferença.)
Leitora (L): Acho que tenho fome...
Homem preto (HP): E então o que vai ser?
L: Assim de repente fiquei com fome...
Homem Branco (HB) [entredentes]: Esta é das frescas, ai é é...
L: Acho que estou mesmo com fome, essa é que é a verdade.
HP: Querida, tens muito por onde escolher, deita aí o olhinho e diz aqui ao brother o que vai ser...
L: Mas é que não sei o que me apetece... De repente fiquei com uma fome!.. E estou triste. De repente fiquei tão triste...
HB (entredentes): Eu não disse? Fresquíssima... Mais uns torneados e pergunta se não lhe arranjamos uma linha ou se temos alguma coisa que ela possa mandar. Topo-as à légua.
L: Estou triste e com fome. Ou estou faminta e com tristeza. Engraçado, propriedade comutativa dos sentimentos... (pensativa) Comutativa? Será?.. (pausa)
HP: Lady, tu tas bem? Pareces-me um bocadinho...
L: Há aí música?
HP (apontando para o rádio que ela traz na mão): E isso aí?
L: Hum... Não sei. Tu sabes funcionar com isto? (passa-lhe o rádio)
HP: Catita de antigo, sim senhor. (mexe nos botões)
L: E continuo com fome. (para o HB) Como te chamas tu, que tas aí tão calado?
HB: E isso interessa? Somos agora amigos, é?
L: Mas podes inventar. Sempre distrai os clientes. Inventar não custa nada. Anda lá, estou tão triste... Como é que te chamas?
HB: Ponhamos Henrique Nuno.
L: É bem, Henrique Nuno... Espera, isso até me faz lembrar qualquer coisa... Mas não interessa. (apontando o HP) E ele, como se chama?
HB: Ponhamos Nuno Henrique.
L: ...
HB: Que foi, miúda? Que cara de susto é essa? A fome subiu-te à cabeça?
L (tremendo): Isto não é sobre mim, ouviste? Isto não é sobre mim, não pode ser sobre mim. Não tás a ter piada, ouviste? Inventa já outros nomes, não tás a ter piada. Desvia-me esta história.
HB: Ei, miúda, vai com calma. Foste tu que perguntaste. Nomes há muitos. Inventa tu.
HP: E agora, lady, aqui vai...
(O rádio começa a tocar. Som roufenho, interferências típicas das ondas longas, distingue-se uma voz que fala uma língua de leste. Escutam os três por momentos, a tentar compreender. O som do rádio começa a aumentar. O HP tenta controlar o volume, mas o botão é inútil. O som adquire a intensidade de um altifalante potente. O HB tapa os ouvidos com fastio, o HP coloca o rádio no gancho da janela da roullotte, a Leitora hesita mas acaba por afastar-se a correr.)

Multiplex 31 # seis

- És tu?
- Claro que sou eu. És parva ou quê?!
- Calma... Não estavas a ouvir rádio, não há por aqui um rádio?
- Achas-me com cara de ouvir rádio?!
- É que ouvi um rádio quando vinha a subir, pensei...
- Pensaste o quê? Pensaste o quê, hem?! A merda do costume, já se está a ver. Se ouviste um rádio e entraste aqui, o rádio tem que ser aqui. Brilhante, não é? Achas que é tudo assim tão fácil? Perdeste uma coisa ali, mas aqui é que há luz, logo procuras a coisa aqui. Tão lógico, não é? E estás mesmo à espera de encontrar, não estás?!
-...
- Eu perguntei: NÃO ESTÁS?!
-...
- Oh, foda-se, faz como quiseres...
-...
- Eles levaram o rádio. Já há muito tempo. Deves ter ouvido outro.
-...
- Acho que não há por aí mais ninguém. Deves ter ouvido mal. Ou foi no prédio ao lado e pensaste... oh, foda-se, faz como quiseres... (silêncio)
- Cheira mal aqui.
- Estavas à espera de quê? Do porquinho Babe?!
- Cheira mal. Tu aguentas?
- Eu gosto, percebes? Sou um porco. Será que percebes uma coisa tão simples como esta? Sou um porco.
-...
- Ok, ok, estamos cheios de silêncios muito melodramáticos... Mas não te vou perguntar o que vieste cá fazer. Não vou, não vou, NÃO VOU.
-...
- Não vou... Mania das mulheres, é só perguntas. Agora pergunto eu, agora perguntas tu. E passa-se a vida inteira nisto. Agora pergunto eu, agora perguntas tu. E repete, repete, repete. Agora pergunto eu, agora perguntas tu. Mas não vou, não vou.
- Isso aí no chão é merda? É que cheira mesmo mal.
- Comida de shopping. (pausa) Já te aconteceu? O shopping cheio, tu cheia de fome, abancas a uma mesa, e de repente sentes aquele peso brutalmente animal... Uma bocarra enorme mastigando ferozmente, já te aconteceu? Aquela coisa animal, a boca cheia de comida, e só te importa isso. Rosnas, olhas por cima do prato a ver se ninguém te ameaça, estás estupidamente contente. (pausa) Mas podes dizer que é merda, tanto faz. E nem penses que te vou perguntar, escusas de estar a desviar as atenções. Não vou, ouviste? Não vou, NÃO VOU!
- Mas não gostas de comer devagar, garfo e faca, maneiras gentis, saborear, um acto de civilização?.. Sei lá, o sublime da gastronomia, qualquer coisa assim...
- Mas tu já olhaste bem para mim?! Que merda vêm cá fazer esses anjos da mesa? Cheira mal, menina. E se queres foder é aqui mesmo, deixa-te de tretas. E nem penses que... Não vou. Mas isso já está assente. Não vou.
-...
- Mas tu podes perguntar à vontade. A ver se eu me ralo...
-...
- Ouviste alguma coisa? (escuta) Não respires, deixa-me ouvir. (escuta tenso). Eles vão chegar. É melhor ires-te embora.
-...
- Vai-te embora já!
- E se eu ficar?
- Não podes. (pausa) Não deves. Não podes. Vai-te embora. E leva o rádio (tira um rádio de pilhas de debaixo da cama e atira-o para os pés da Leitora). Leva o rádio, desaparece.
- E se eu ficar?
- Odeio-te, vai-te embora. Não consegues ouvir o que te dizem? Vai-te embora. VAI-TE EMBORA!
-...
- E leva-me a merda do rádio. (levanta-se e esboça um passo, mas a Leitora abre a porta e corre escadas abaixo) Isso, vai-te embora, assim é que é. Ora bem, assim é que é... Odeio-te, vai-te embora, assim é que é. Nunca percebem nada. Não percebeste nada. Ainda bem que levas a merda do rádio. Se te odeio é porque te amo. Nunca percebeste nada. Vai-te embora. Eles ainda vão demorar a chegar. (escuta atento) Ainda vão demorar muito a chegar, assim é que é. (pausa) Oh, que se foda, que façam o que quiserem. (pausa; em voz muito baixa) Um porco não pode amar. Assim é que é. Mas tu não percebeste nada. E então eles.. Hehe, cambada de idiotas!.. Um porco não pode amar, isso é o que eles dizem. E quem sou eu para os desmentir? Assim é que é. (levanta-se e procura na gaveta da mesinha de cabeceira; encontra uma faca; entredentes) Assim é que é, não custa nada. (corta um pedaço da face/focinho sem esforço aparente; o sangue jorra, mastiga a carne com tranquilidade). Assim é que é, eles não percebem nada. (pára de mastigar e põe-se à escuta; sorri e continua a mastigar) Vai-te embora, vai para longe, eles ainda vão demorar a chegar (continua a mastigar com tranquilidade, o sangue escorre devagar).

Multiplex 31 # cinco

- Não conheço nada disto. Nem sabia que a cidade vinha até aqui. Este hotel está a cair de podre. Podia beliscar-me, para saber se é um sonho. Mas já sei que não é. Que estupidez. É real e contudo não pode ser real. Que coisa mais parva, a nossa existência toda. Tudo isto. Mas é que está mesmo podre, é impossível que alguém se venha hospedar aqui. (entra) Claro, ninguém na recepção. Porque é que isto não me surpreende? E sinais suficientes de que está abandonado. (procura o elevador) Nada de elevador, é mesmo antigo. Mas espera aí... O número do quarto... isto não tem tantos andares, não pode ser este o número. Bom... (vai subindo) ah, pois, começa logo com se fosse no quinto andar. Deve haver uma razão qualquer... (continua a subir. Depois pára, a escutar) Um rádio, é um rádio... Curioso, como é que tenho tanta certeza de que é um rádio e não a televisão?.. Mas tenho. É um rádio. Só pode ser um rádio. Este som, este veludo... Hum, não é bem veludo. Ou é, mas em reposteiro. Alto, denso. Mas que estou eu para aqui a dizer?!.. (continua a subir, corredores, abranda). É aqui, é o número. (vai para bater mas empurra a porta, que se abre. Está um porco sentado na cama. Ficam ambos em silêncio. A Leitora entra e encosta a porta atrás de si).

Multiplex 31 # quatro

(Bate leve, a porta abre-se devagar. Entra. Está um urso enorme sentado na cama)
- Sou eu. Fecha a porta.
-... (hesita, fecha a porta, mas fica encostada à porta, como se a qualquer momento pudesse sair)
- Sou eu...
-...
- Não tenhas medo, sou apenas eu. Sei que deve parecer estranho, Leitora. A mim parece-me muito estranho.
-...
- Diz qualquer coisa, por favor. Fala comigo.
- Não te reconheço em nada, a não ser agora nessa súplica. Mas tanta gente suplica. Toda a gente suplica, se pensarmos bem.
- E ficavas por causa da súplica, mesmo que não fosse eu?
- Não sei. Talvez não. Mas não sei. (pausa) Não te reconheço em nada. Nem na voz. Pareces tão preso aí, nesse corpo gigante. Tão indefeso. Mas és um urso, não és?
- Sou eu. Quer dizer, penso que sou eu, mas acho-me muito estranho. E não é por ser um urso. ISTO é um urso, não é?
- Parece-me que sim. (pausa) E pensar que eu...
- Tu?..
- Nada. A tua mensagem deixou-me a pensar em muitas coisas diferentes.
- Mensagem? Eu mandei-te uma mensagem?
-... (olha-o fixamente)
- Não tenho nada comigo do que era meu. Mas sabia que virias. Estou tão cansado. Mas ao mesmo tempo não é bem cansado, é antes... Não sei o que é.
- Devo fazer alguma coisa?
- Alguma coisa?
- Sim, se devo fazer alguma coisa... Tirar-te daqui, ficar aqui, sei lá...
- Não me perguntaste o que aconteceu, não é curioso?
- Tenho medo. Se te perguntar, isto vai parecer mesmo real e acho que não aguento! Isto é absurdo. Um urso. É absurdo.
- Não, é lógico. Tem uma lógica que eu reconheço, mas que não consigo explicar. Um dia hei-de saber. Agora tens de ir.
- Tenho?
- Tens. Há outro hotel, tem o mesmo nome, mas é nos subúrbios. O mesmo quarto.
- Tenho de ir?
- Tens. Sabes onde é. Vai.
- E tu?
- Vai. Fecha a porta. Vai.

Multiplex 31 # três

- Uma mensagem para ir ter com ele ao hotel? Número de quarto e tudo? Mas ele estava num hotel? O melhor é ligar já. (marca e espera) Desligado, que estranho... Mas este hotel... Onde é que ficará isto? Não estou a gostar. Espera, nem de propósito, os correios. (entra. consulta rapidamente a lista) Mas é aqui perto. Será que?.. Não, não pode ser. (pausa) Mas por outro lado, porque não? É homem, não o conheço assim tão bem, quem sabe?.. Mas é estranho, um ataque de andropausa, não me parece o tipo de pessoa... E que farei? Ora aí está uma boa pergunta. Mas não tenho tempo para pensar. Bem, ter até tenho. Mas não quero. Tenho que ir ter com ele. Resolver isto. Não vamos deitar tudo a perder. Vai ser assim. Não vamos deitar tudo a perder. Para o que lhe havia de dar... Até tinha piada se fosse isso. Quem diria?.. Mas que verá em mim? Não, corta, corta. Deve ser outra coisa qualquer. Se for vou-lhe só dizer que não vamos deitar tudo a perder. Que quero fazer a minha tese, que se porte como deve ser, que continue a orientar-me. Mas será possível? Corta, corta, não penses. Já estás quase a chegar. Não penses. O número do quarto, o número do quarto. (entra no elevador) O número do quarto, respira fundo. Bizarro. Não queria estar aqui, mas por nada deste mundo queria deixar de estar aqui. O número do quarto. (sai do elevador) Agora... Agora à direita. (caminha) Mas ainda faltam muitos... Tanto corredor. Agora.. Outra vez à direita. Devem ser as traseiras. Está longe. Mais três. (abranda) É aqui.

Multiplex 31 # dois

- Acho que o melhor é deixar-lhe uma mensagem no atendedor. Pelo rumo que isto leva, o lanchinho de anos parece-me fora de questão. Que coisa mais estranha... (marca e espera) Luís, sou eu. Que te aconteceu, fofo? Desarvoraste assim, sem dizer nada? Nem parece teu. Espero que esteja tudo bem contigo. É por causa dos anos? Quarenta e sete é um bom número, acredita. E ficam-te muito bem, o que é mais importante ainda. Gostava que estivéssemos agora naquele lanchinho comemorativo que te prometi. Vá, diz-me alguma coisa logo que possas, sim? Estou assim um pouco preocupada, percebes?... Beijinhos, parabéns, beijinhos... Xaui, beijinhos, xaui... (desliga) Que estranho. E que medo... Não gosto nada deste medo. Decididamente, não gosto mesmo nada deste medo.

Multiplex 31 # um

- Luís?..
-...
- Luís?!..
-...
-LUÍS?!..
-...
-Estranho... Aguentou o filme até ao fim e agora desaparece sem dizer água vai? Não é nada dele, isto. (pausa) Deixa-me ver se no telemóvel... (marca e espera) Nada. Mas que coisa... (pausa) Não sei se hei-de ficar assustada ou ofendida... Não compreendo. Até correu bem, se é que se pode dizer uma coisa destas de um filme do Lynch... Quando ele se torcia na cadeira eu dizia-lhe: aguenta aí, o homem está no seu caminho, lá mais para a frente a gente há-de perceber qualquer coisa, ou pelo menos sair um bocado do buraco. Quando era eu que me torcia na cadeira, ele dizia-me exactamente a mesma coisa... Até correu bem, portanto. (pausa) Deixa-me ver outra vez o telemóvel. (marca e espera) Nada... Que estranho, mesmo... Oxalá que... Mas não. Cabeça fria, respirar fundo... Acho que vou comer um gelado, um bocadinho de açúcar é sempre bom contra o medo. Mas que estranho...