Paris # 16

Quando se deixa uma cidade? Há a hora do avião, mas isso é só uma questão de transporte. E há aquele momento em que outra coisa vem ter connosco para nos dizer que é a hora de partir, mesmo que o bilhete de avião diga alguma coisa um pouco diferente.
Na loja, a estação de rádio saltou inadvertidamente. Percebeu-se a interferência e a súbita mudança de música. Bonnie “Prince” Billy soou com clareza: If you have no one, no one can hurt you. E eu ouvi com nitidez: If you have no life, nothing can kill you. Era o sinal para o combate.

Paris # 15

E o súbito encontro desta mulher deitada que sonha. Reconheci-a imediatamente, sem nunca antes a ter visto. Um corpo não é nada, o mundo que há nele é tudo.

Paris # 14



Giacometti no Centro Pompidou.
A súbita vontade de estudar e perceber profundamente como se vai das suas esculturas cubistas iniciais, cheias de uma volumetria que se agita num espaço delimitado, até a esse corpo fino que se desloca, tão frágil quanto decidido e indomesticável. Mas que de alguma maneira este foi o movimento do mundo que nos calhou — eis o que me parece evidente. Tão evidente, que não consigo ainda começar a explicá-lo.

Paris # 13

O colóquio? Torga vivo era suficientemente audível para induzir os termos com que a si mesmo se lia. Mas mesmo que o não fosse, a sua poesia e o seu diário são explícitos no modo como se auto-interpretam: o privilégio da identidade, do território, do “nativo”. É só agora que a leitura, liberta da tutela de um autor vigilante, encontra a pluralidade de Torga. Mesmo quando isso é feito contra o que Torga achava de Torga.

Paris # 12

Interessante o cotejo entre “A origem do mundo” e fotografias erótico-pornográficas da época que o quadro a seu modo reproduz. Parece-me que o lirismo terá consistido na ocultação da biologia mais pregnante (os grandes lábios) e na invenção de uma natureza púbica demasiadamente natural e livre (por contraste com o cuidado do aparo púbico de todas as fotos da época). Penso que será por isso que o quadro pode agora ser relido, perdido o seu impacto provocatório, como um exercício de sensualidade puramente pictórica: a pureza é quase sempre uma montagem sobre a rasura da biologia e a invenção de uma segunda natureza.

Paris # 11

Courbet no Grand Palais.
A fila do costume para os hapenning do costume. Mas não há ainda outro modo de fazer isto.
O quadro do cartaz promocional (imagem acima) não é um Coubert “típico”, mas é o Coubert que mais se aproxima daquele modernismo da arte com que a ideia de museu e de retrospectiva fez a sua aliança com o Grande Público. Para todos os efeitos, o Grande Público está ainda a acomodar-se ao modernismo da arte.
Pouco tempo e ambiente, de facto, para “sentir” as paisagens de Coubert. Não é que elas sejam da alma, que não são, cheias da sua empiria. Mas há nelas uma alma antiga a que não se chega imediatamente.

Paris # 10

O colóquio? Alguma coisa de profundamente estranho e bizarro em ler uma comunicação sobre Torga em francês. Sinto-me como aqueles cantores de ópera que aprendem a pronunciar as palavras de uma língua que não dominam. Aprendem de cor o sentido dicionarizado, calculando onde pôr as emoções segundo a semântica dessa outra língua, mas não têm a certeza em acto da coincidência do afecto com as sílabas exactas, o tom, o tempo. Esperam simplesmente que “funcione”.

Paris # 9

Também em Paris se pode dar a volta dos tristes em pleno coração da cidade. E há aquele desejo absurdo de sofrer que se desprende da noite, das sombras no côncavo alto dos prédios ou de candeeiros outrora vanguardistas e furiosos. Furiosos, eu disse furiosos? Isso foram dois loucos bem apessoados e de discurso torrencial. Com gestos eléctricos como um Sarkozy ainda mais acelerado.

O wc dos injectados

Um cintilograma ósseo, como muitos exames radiológicos, exige uma injecção de um produto de contraste. O Centro de Medicina Nuclear, pertencente ao Hospital de S. Francisco, no Porto, como é de lei, tem na sua recepção a planta das salas. Fica-se a saber que a sala A é uma sala de espera e o compartimento B um WC. Que a sala G é a “Sala de Espera dos Injectados” e o compartimento H o “WC dos Injectados”. São duas salas contíguas, com uma casa-de-banho a cada ponta. Indiferentes à arrumação meticulosa preconizada pelo mapa, injectados, não-injectados, familiares e acompanhantes, misturam-se com aquela inocência de nem saberem sequer que alguém os pensou em separado. Só mesmo um filósofo para fazer disto um post (ou para entreter a angústia com vagas elucubrações sobre panópticos “virtuais”).

Paris # 8

O colóquio? Como sempre, os três tipos de participantes. Os que não pensaram nada. Os que nos resumem o que já pensaram há muito tempo. Os que pensam diante de nós.

Paris # 7

Uma palavra bengala: donc... donc... donc...
Outra palavra bengala: voilá... voilá... voilá...
Ao fim de uns dias é como o arco do triunfo: a vida passa por baixo e aos costumes diz nada.

Paris # 6

O colóquio? Continua a irritar-me profundamente a má-educação de não respeitar o tempo de cada intervenção. Devia haver uma ampulheta delicadamente segura por um Sansão impávido. Escorrida a poeira do tempo, e não se detendo a tagarelice comunicante, Sansão partiria a ampulheta na cabeça prevaricadora. Insistindo a má-educação, Sansão teria carta livre para a execução sumária. Pode parecer excessivo, mas é um caso simples de higiene mental.

Paris # 5

Só numa cidade tecnologicamente avançada desde o início do avanço da tecnologia — e daí a imagem de Tati e Playtime — é que uma pequena loja numa rua antiga se pode chamar Pressing net. É uma lavandaria: nettoyage à sec... à toute vitesse!

Paris # 4

O colóquio? Alunos da licenciatura e do mestrado das quatro universidades de Paris onde há estudos portugueses. Tirando notas e falando animadamente nos intervalos com os conferencistas.

Paris # 3

Não sei se por causa do rugby ou da necessidade enfim reconhecida, à mais pequena hesitação de língua no restaurante passam de imediato ao inglês. Corre muito melhor, diga-se de passagem, mas é toda a minha adolescência que é varrida para o sótão. Com o que não se perde grande coisa, diga-se também de passagem.

Paris # 2

O colóquio? O ritual académico por excelência. Como dizia Barthes, vagamente sublime e vagamente entediante. Conforme o pensamento aparece e se ausenta. Restam os amigos e os novos conhecimentos. Às vezes essa coisa estranha de nos conhecermos dos livros há muito tempo e não termos um rosto para lá pôr. O que não é necessário para nada, bem entendido, mas nos torna mais humanos quando o rosto nos abre uma linha de fraternidade.

Paris # 1

Ah, sim, o outono em Paris... A luz quente e o ar frio. Fosse eu pintor. Ou cineasta. Ou Satie.

Torga

Uma aberta ainda possível. Colóquio Internacional Miguel Torga, em Paris. Organização da Fundação Calouste Gulbenkian.
A não ser que esbarre mesmo com algum computador internético, até domingo.

Thinking in a diner # 5

Anger and depression and sorrow are beautiful things in a story, but they’re like poison to the filmmaker or artist. They’re like a vise grip on creativity. If you’re in that grip, you can hardly get out of bed, much less experience the flow of creativity and ideas. You must have clarity to create. You have to be able to catch ideas.
[David Lynch, Catching the big fish. Meditation, conscioussness, and creativity. Penguin, 2006, p. 8.]

Por vezes, não estamos a construir a história. Somos nós a história que o destino está a contar. Pior que a maldição de vivermos tempos interessantes é sermos nós a história interessante que outros ouvem.

Dispersos # 3

Creio que ao ir atravessando a vida e o mundo na mais recolhida fuga — sim, agora é verdade. Na mais recolhida fuga. O que desejei, cumpriu-se o mínimo, impossível a maior parte, irrelevante afinal o resto. Que deus chega sempre atrasado a todo o lado, é coisa que se vai aprendendo sem espanto. Pior que nós cheguemos também quase sempre atrasados ao amor. É isso conviver com o seu próprio inferno. Ici, les nuits — toutes les nuits — ont été faites pour attendre.

Quem chegará depois de mim?
Quem nunca esteve aqui?
Desligo os telefones, não consigo esquecer o teu nome. Eu sei que a paixão se constrói à mesma velocidade fulminante com que se arruina. Mas a cinza que fica, o que o vento dispersa, regressa no ar da noite ou numa corrente de ar imprevista. Sabe na boca a um deserto privado. Arde nos olhos depois de todas as lágrimas.

Insónia. Noite quente de um verão persistente. Saturada de medos. Noite sem fim. Nada. E o sol pela manhã, ferindo.
Às vezes, tenho a impressão de ter perdido a exactidão dos gestos e das palavras. Estive tempo a mais sozinho.

Mesmo que chames, ninguém virá. Tudo está aí, todos estão aí. O teu mundo é o mesmo, não há outro. Mas mesmo que chames, ninguém virá. Já o sabes há tanto tempo que já estás habituado. Inventas as formas do que te rodeia. Atribuis nomes. Matas o corpo amado no caos dos outros corpos. E mesmo assim tens todo o tempo para a tristeza e para a dor. Todo o tempo para essa falta de imaginação tão humana e absurda que é ir morrendo.

Dispersos # 2

Creio que ao ter atravessado a vida e o mundo na mais recolhida fuga já não desejasse sequer o fogo, ou um rosto, ou mesmo deus que, como se sabe, chega sempre atrasado a todo o lado. Mas como conviver com o seu próprio inferno? Ele dizia: fazendo como forma de esperar. Ici, les nuits — toutes les nuits — ont été faites pour attendre. Ele dizia: caminhar como forma de esperar. Nada mais em redor daquele que caminha ao mesmo tempo que a sua imagem. Ambos destruídos.

Quem chegará depois de ti?
Quem nunca esteve aqui?
Desligo o telefone, esqueço o teu nome. Com a vassoura junto os estilhaços do céu do mundo. Talvez seja por isso que a paixão se constrói à mesma velocidade fulminante com que se arruina.

Insónia. Noite fria, repleta de medos. Noite sem fim. Nada.
Às vezes, tenho a impressão de ter perdido a exactidão dos gestos e das palavras. Estive tempo a mais sozinho.

Mas é preciso chamares, e alguém virá.
É preciso inventares as cores, as formas do que te rodeia. Atribuíres nomes. Desvendares o corpo amado no caos dos outros corpos.
E mesmo assim ainda terás tempo para a tristeza e para a dor. Ainda terás tempo para esse humano e absurdo costume que é o de morrer.

Dispersos # 1

Não sou dado a acasos objectivos. Ainda que reconheça que faça sentido construí-los. Há sempre medo em nós, e há defesas que não são pura ilusão ou manobra evasiva. Não sou dado a acasos objectivos, mas aceito o sentido que me possam construir.

Li Dispersos de uma assentada, quando saiu. Nada acrescentam à Obra, não a desmerecem, completam milimetricamente um retrato sem que a alteração seja perceptível a olho nu. Traria duas frases aqui, a vida seguiria. Porém, as frases não chegaram aqui. Embora as circunstâncias de então expliquem tudo, o que veio depois explica ainda mais. Bem entendido, sem que eu queira ver nisso — no que veio depois — qualquer explicação.

Arrumadas mais umas coisas do escritório, Dispersos reapareceu. Fora do lugar. Tinha que estar fora do lugar para poder aparecer na hora própria.

Tinha-me esquecido completamente das anotações que fui fazendo durante a leitura. Afinal, não eram frases para trazer até aqui. Eram frases para transformar no caminho até aqui. Já transformadas nas anotações à margem. Um jogo de adensamento de ambiguidades, uma espécie de leitura críptica de alguns lugares auto-biográficos. Meus. Supostamente.

De alguma maneira, eu não deveria estranhar que o sentido dessas transformações possa agora contar o que veio depois. E de alguma maneira, não estranho.

Aprender o que se sabe

É o fecho de um texto sobre Vergílio como leitor de Malraux, de há três anos atrás. Muito antes disto.

"Nessa nova fase da sua linhagem, Vergílio, como qualquer grande escritor, não poderá descender de outra coisa senão dos seus próprios medos. O lirismo é o medo do vazio, como o grotesco é o medo da plenitude. E a escrita o medo da morte. Na verdade, para os guerreiros do campo literário não há nem o regresso a casa nem as benfeitorias da vitória, apenas errância até à mais serena exaustão. Aí onde se sabe que o preço de se ser autor não se paga tanto aos outros quanto a nós mesmos: é preciso ir sempre aprendendo a não ter medo do medo que temos."

Relva

O banco de pedra e o ruído da erva que bate lá em baixo. Claro e distinto no barulho disperso da cidade.

Árvores

Gosto de árvores que são maiores do que a janela de onde as vejo.

Conforto

O absoluto conforto de ao redor de nós tudo continuar reconhecível como na nossa vida de antigamente, deus e a merda tal como dantes. A fina película que nos separa de tudo sempre existiu, mais metafísica, menos empírica — e tal como dantes, às vezes a gente esquece-se que existe. E se calhar, por vezes, não existe mesmo.

Thinking in a diner # 4

- Diz comigo.
- O quê?
- Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.
- É de facto um verso batido.
- Sim, mas diz comigo.
- Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.
- E é verdade, não é?
- Sim, é verdade.
- Verdade daquela maneira verdadeira?
- Sim, verdade daquela maneira verdadeira.

A vida antiga

Esses milésimos de segundo, de manhã, ao acordares, antes que a consciência da tua nova condição se instale por completo.

Reunião

Está o facto consumado, o medo, o difícil cálculo das probabilidades, a incredulidade, a raiva, a indiferença, as perguntas sem resposta evidente e os especialistas vários de paradigmas incomensuráveis.

O vazio de uma casa # 6

Nos momentos graves, uma casa velha conhecida já tem os seus refúgios, e é até capaz de nos revelar um recanto secreto para uma protecção adicional. Numa casa nova tudo é ainda demasiado impessoal, de repente ouvimos o inimigo ao perto, olhamos em volta tentando perceber e nada sabemos do terreno ou do nosso próprio quartel-general. De alguma forma já fomos invadidos.

Modo de espera

Pôr uma cadeira ao lado, mandar que o medo se sente. Bem junto a mim, para que não haja dúvidas que não quero fugir-lhe, esquecer-me ou qualquer outra estratégia igualmente inútil. Continuar a trabalhar.

A coisa

A preguiça é um pecado mortal. Percebe-se que os tempos eram outros. Hoje, qualquer sociopata de meia tigela, mal eleito, altera todos os procedimentos para imprimir o seu cunho pessoal à coisa.