Bergman # 3 – mulheres, casal



Ninguém, como Bergman, filmou as mulheres naquela dobra em que uma misogenia que não esconde a sua desvastadora solidão se torna disponibilidade para olhar atentamente esses rostos e as suas vidas secretas e diferentes. E por isso, ninguém como Bergman filmou a vida de casal como dificuldade de comunicação. E sobretudo, como atracção irreprimível pela comunicação: diálogos torrenciais, densos, torturados. E sabendo ir até ao fim das coisas, Bergman é também dos poucos que faz jus à expressão "silêncio ensurdecedor".

Bergman # 2 - xadrez

A cena, já a tinha lido e visto como fotografia muito antes de a ver como imagem em movimento. Mas aprendi de vez a minha mortalidade. Num certo sentido — que até faz cada vez mais sentido com o correr dos anos — foi imensamente libertador. Não é que o jogo esteja viciado — esse é outro jogo. Mas estar perdido de certeza liberta-nos da angústia de desempenho. Lateralmente, eu que até era um praticante regular, desinteressei-me por completo do xadrez. Mas concedo que possa ter sido uma ilação indevida.

Bergman # 1 – cineclube

Bergman é para mim sinónimo de cineclube. Nasci em sessenta e isso explica tudo, não é? Quando os cineclubes praticamente desapareceram, houve um imenso hiato até ao dvd e ao homecinema. Aos poucos, muito devagar, vou recuperando.

WC Lectures # 17




Rick Kirkman & Jerry Scott, Baby blues vol. 20

Memórias de infância. Por assim dizer. Eu era o mais velho. Não era absolutamente certo que a minha irmã concordasse com todas as regras. Mas foi já há tanto tempo que tanto faz.

The spaces in between

Jazz de câmara (e da câmara ECM). A mestria compositiva de John Surman. Um dos discos do ano (sendo que discos do ano podem ser zero ou inúmeros).

John Surman (saxofone soprano e barítono; clarinete); Chris Laurence (baixo); e o grupo Trans4mation (dois violinos, viola, violoncelo).

WC Lectures # 16

Como diz o outro, não... espera, não há nenhum outro a dizer o que vai ser dito, apenas que o que vai ser dito é demasiado sabido para poder ser dito sem mais... Mas isto é tão o contrário destas tiras! Bem, recomecemos. Como diz o outro, não há nada tão cómico como uma família funcional normal. Claro que também há um outro que diz que não há nada tão deprimente como uma funcional normal. Aqui, trata-se apenas do lado cómico.

Boa educação # 11

Sr. Presidente do... Sr. Presidente da... Sr. Presidente das... Sr. Director do... Sr. Director da... Sr. Representante das... Sr. Enviado do... Sr. Emissário dos... Sr. Porta-Voz da... Sr. Delegado da... Sr. Secretário da... Sr. Vice-Presidente do... Sr. Vice-Presidente da... Sr. Adjunto da... Sr. Coordenador do... Sr. Sub-Secretário da... Sr. Pró-Director da... Sr. Administrador da... Sr. Governador do... Sr. Comissário da... Minhas Senhoras e Meus Senhores.

Boa educação # 10

Cuidado. Cães anti-sociais.

A arte do trio

Absoluta maturidade.

Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 6

"Como se vai discutir a distribuição do serviço docente da -----, pareceu-me oportuno enviar a todos os conselheiros o seu enquadramento legal.
Certo de que tal enquadramento é do conhecimento de todos, espero tão somente contribuir deste modo para facilitar o trabalho de cada um.
Melhores cumprimentos
------"

[hum... mas a gente não faz isto há anos? e envia-se o que se presume, e bem, ser do conhecimento de todos? que se passa aqui, hem?]

Re-ler

É também para isso que serve uma tese. Para nos fazer re-ler sem que o tivéssemos planeado. E pelo olhar de um outro. Quase com o sabor de uma pequena escapadela ou de uma diabrura face ao plano "oficial" de trabalho. Porque uma coisa é o que se argui, outra quase sempre diferente o que a propósito, por deriva, retiramos para a nossa própria leitura. E aí, um olhar novo sobre uma simples frase ou um único verso — já é recompensa bastante.

Que regressa à invenção


E contra a perfeição enlouquecida do mar
ela atira pedras que são pássaros certeiros, nuvens voando
à beira do despertar dos rios. Ela faz a origem sem origem.

A origem — agora:
coisa mínima, alguém te chamou —
Há um verso antigo que regressa à invenção
e tudo poderá talvez recomeçar.

Manuel Gusmão, Migrações do Fogo, 2004, p. 90

Os trabalhos e os dias (23)

Talvez a palavra certa seja generosidade. Em responder, em responder pensando, em responder pensando profundamente e em liberdade.
Eu explico. Nas teses sobre autores contemporâneos, acontece algumas vezes contactar-se o autor para uma entrevista. O anexo fica sempre bem, e às vezes até tem o seu interesse (e os seus perigos, claro, que o movimento de auto-interpretação de um autor não tem, por si só, qualquer autoridade particular sobre a obra que ele próprio produziu). As perguntas são razoáveis, as respostas quase sempre delicadas e gentis.
Mas até agora nunca me tinha deparado com respostas tão profundamente implicadas, tão exigentes no seu pensamento, como as que Manuel Gusmão deu para um trabalho sobre as suas Migrações do Fogo. A dimensão generosa da sua humanidade está neste simples gesto, bem longe dos holofotes mediáticos ou sequer da vasta plateia académica. Mas é isso que dá um suplemento de sentido — e de verdade, neste caso é justo dizer que também de verdade — ao seu verso: “e tudo poderá talvez recomeçar”.

Os trabalhos e os dias (22)

De súbito anoiteceu mais cedo, ou fui eu entrando pelo anoitecer no cuidado escolar da leitura. Chove como no inverno, o que de alguma forma torna mais natural o trabalho. Arrumo as teses. Gente que eu não conheço, mas que já sei no seu esforço, na hipótese de uma palavra justa, no escorregar de um movimento em falso, no brilho de um achado. Gente com vida à volta, que a essa vida retirou para um texto, que deste texto espera quase nada para a restante vida, a não ser talvez que tudo se possa ir esquecendo. Até que um dia, mais tarde, muito mais tarde, uma imagem surja e tudo se resgate não se saiba bem como. É essa a história secreta e não contada das teses. Sei do que falo, por mim e por outros, mas o segredo simples é de cada um e assim deve ficar.

Multiplex 33

Karen Moncrieff, A rapariga morta

- O entrelaçar das histórias, as personagens muito bem caracterizadas com grande economia de meios, direcção de actrizes superlativa, aquela proximidade cúmplice de uma mulher a histórias de mulheres... Um nome a fixar, pelo argumento e pela realização. E desejo de um rápido segundo filme, com um ou outro erro que deixe ver os riscos que ela realmente tem capacidade para correr...
- Hum...
- Não me estou a queixar. Não há academismo, não há formalismo, é um valor seguro. Mas ela pode outros voos. Sente-se isso. Bom, tu sabes o que eu quero dizer.
- Hum...

Os infortúnios da virtude # 2

Quanto mais contares a verdade, menos te acreditarão. Serás tão transparente, que te tornarás opaco. Eles definiram que nada pode ser assim tão claro e frontal. Eles sabem que não são claros e frontais, e julgam saber que isso é da natureza humana. Vão sempre perguntar-se pela tua estratégia. As consequências dos teus actos vão ser julgadas como cálculos. Poderás dizer por inteiro que não têm alguma razão?

Os infortúnios da virtude # 1

Não te iludas. És incapaz de não pensar. Mas isso atrasa-te irremediavelmente. Quando chegares ao lugar da decisão, já tudo estará tomado pelos administradores. Eles pensam mais rápido: não pesam, não ponderam, construíram uma linha recta até aos seus interesses e pavimentaram-na com cláusulas legais. Nunca conseguirás essa eficácia. Poderás ser mais justo, mas tornarias a vida social impossível com a inevitável lentidão do escrúpulo. E isso, não te iludas, é também uma forma de injustiça.

A Leitora, no seu infinito particular (LXII)

Hanne Hukkelberg, Rykestrass 68

- É a tua nova morada, Leitora?
- Não me importava que fosse. Tem a diversidade que quero e a onda certa. E a tua mudança?
- Trabalho a mais, só mesmo em férias.
- Então vais trabalhar nas mudanças, em férias. Já viste a diferença de quando trabalhavas nas vindimas em férias?
- Já vi, já. Chama-se envelhecer.
- Melancólico?
- Esperançado. Há-de acabar.
- Isso é mais para os lados da depressão...
- Do cansaço.
- Pois, já tinhas dito.

O mesmo caminho

Uma argola com uma chave. Queres substituir essa chave por outra. Colocas a chave que queres tirar entre os dois arcos da argola. E a chave que queres meter logo atrás dela, aproveitando o espaço aberto. Seguem as duas o mesmo caminho, exactamente o mesmo caminho. Uma não pode senão sair da argola, a outra não pode senão entrar na argola. Seguindo o mesmo caminho.

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 14

Retomo para finalizar. Há também aquele lado do comum que temos de resgatar ao quotidiano gasto da comunidade para que nos possa ainda re-constituir enquanto comuns. À sua maneira, uma forma não de devolver a aura para sempre perdida — e que provavelmente nunca o foi enquanto aura originária —, mas de encontrar um caminho para ver/ouvir o momento do único, isso que é o mais frágil e o mais perigosamente próximo do insignificante.
Exemplifico agora com Keith Jarrett, Radiance, o seu disco a solo de 2005. Ouça-se a faixa seis do segundo disco. Percurso caracteristicamente jarrettiano: início atonal, pesquisando não se sabe bem onde, caminho que se vai traçando, uma melodia que se ergue do nada, imprecisa, mas traçando o seu caminho, muita história da música (como não ouvir claramente Bach? e um romantismo dilacerante ouvido através de Bach? e...) e entre os 4’ 00’’ e os 4’40’’ essa «coisa» que nas mãos de outros seria toda a música até se gastar em melaço e que aqui é o único irrepetível, fulgurante, que deixa esse rasto de paz e volutas até ao fim da faixa. Tudo está em como se chega lá e em como nos afastamos de lá. Tudo está em como sabemos resistir à tentação da fusão com o sublime. Porque nunca se vive no coração das coisas, vísceras abertas. Mas se não for esse coração a transportar-nos, o que será?

Do romance (também) como atitude

Subscrevo tudo, meu caro Eduardo Pitta. Acrescentarei apenas que, nestas coisas, tudo depende de quem escolhemos para delimitar implicitamente um género. É certo que Llansol “não faz ficção no sentido em que a fizeram Jane Austen, Virginia Woolf ou Carson McCullers”. Mas talvez se pudesse dizer que faz ficção no sentido em que a fizeram Sterne, Musil ou Sebald, ainda que todos e cada um por si tenham atitudes bem diferentes face ao fazer ficção. Mas o que seria do género romance se não tivesse «costas largas»? Ou não permitisse as atitudes singulares que lhe alargam permanentemente as fronteiras? E pouco importa que o alargar de fronteiras se faça por acidente: um raio sobre o lápis — usando o título na sua falsa literalidade —, e logo se perde o caminho que talvez nunca se tivesse realmente traçado. Mas não se diz que o espírito sopra onde quer? Mas chegado aqui é melhor deter-me, ou ainda começo a falar dessa ideia altamente esquisita de o romance ter vida própria independentemente dos romancistas (que tem, que tem...).

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 13

Retomo. O irredutível tem também a marca do comum. Exemplifico agora com Eric Clapton. A história é simples. Eric Clapton é uma guitarra do blues. Aprendeu o blues nos discos, não na vida — mas isso para a música que se faz é irrelevante, há boa e má música aprendida em ambos os lados (como há boa ou má literatura aprendida nos livros e aprendida na vida). Como dizia, a história é simples. Eric Clapton tinha um filho pequeno, houve um acidente estúpido, a criança morreu. Um blues podia contar essa história na perfeição. Mas Eric Clapton, que de alguma maneira sempre compôs blues, encontrou no mainstream da sua cultura os meios para melhor cantar a sua história. O irredutível escava em nós até às camadas mais recônditas do nosso instinto de sobrevivência, lá onde não há ainda notícia do nosso estilo mais pessoal, apenas do legado que nos calhou. Em alguns momentos isso é quase maximamente transparente, e tem a sua beleza desarmante e desamparada. “Tears in heaven” é um desses momentos.

Vamos lá então à argumentação...

... meu caro Eduardo Pitta. Estou disposto a enfiar o barrete: votei Llansol para um prémio de romance, certo? E o facto de não estar sozinho nisso, nem o facto de aqueles que não votaram em Llansol não a terem excluído por não ser romancista, não quer dizer nada mais do que aquilo que diz – que não estou sozinho no facto de considerar Llansol romancista. O que me parecia (me parece) pacífico. Mas argumente lá, até pode ser que eu concorde...

Psicopatologia da vida quotidiana # 29

Sempre detestei os casais que vestem de igual. O mesmo casaco, a mesma camisola. Até as cores muito parecidas me incomodam. Penso na linguagem: cada palavra vale pela oposição a todas as outras. A sinonímia pouco me interessa, o transporte da metáfora ensina-me tudo.

Tertúlia

Hoje, às 22h, no espaço Tertúlia da Feira do Livro de Viana do Castelo, apresentarei António Lobo Antunes, que falará depois com leitores, curiosos e demais passantes.

Da vida comum: terror, literatura, hospitalidade

Integrado no festival Escrita na Paisagem 07. Festival de Perfomance e Artes da Terra, a decorrer em Évora, na secção "Literatura e Hospitalidade", estarei amanhã no Espaço Celeiros, às 18h, para falar Da vida comum: terror, literatura, hospitalidade.

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 12

Há um lado fútil nestes exercícios de adivinhação — demo-lo por adquirido e passemos ao que se pode pensar.
Há depois uma crítica justa: a questão do falso fragmento. Apresentar-se como podendo ser significativo de uma autoria um excerto descontextualizado e que, na sua formulação pontual, até não terá as características que geralmente tornam evidente aquela autoria em particular. Digamos em avanço que o excerto de Llansol não contém de facto as suas características particulares, aquilo que a torna diferente e imediatamente reconhecível. Mas isso não só não afecta em nada a qualidade evidente do excerto, como não obsta a que o excerto seja de facto “significativo” no contexto do livro de que provém.
As várias hipóteses de autoria que foram sendo avançadas nada têm de estranho, por mais singular que seja o lugar e a linhagem de Llansol. Ruy Belo, Torga, Mário de Carvalho, Miguel Real, Eça, Vergílio Ferreira, novo heterónimo pessoano — tudo apenas quer dizer, neste ponto muito particular, que quando se trata de fazer falar o essencial do comum, os pontos de convergência são maiores do que os estilos individualizados.
Não retiro daqui qualquer lição de essência humana, apenas a ideia de que, historicamente, somos atados pelos mesmos feixes comuns, que vamos desfiando conforme podemos. E quanto mais próximo da dor nua é esse feixe, mais um certo ar de comum se torna reconhecível. Precisamente isso que, em certos momentos radicais, para além da linguagem ou de qualquer outro entendimento prévio, permite que nos reconheçamos naqueles que nos são inteiramente desconhecidos. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer tempo do mundo — o irredutível tem também a marca do comum. Sem que deixe de ser verdade que o comum se dá a ver através das diferenças que o constituem, como tentarei exemplificar a seguir com casos tão diferentes como Eric Clapton e Keith Jarrett.

Epifanias # 73

Não é que não saibas descrever isso. Nunca se sabe, mas sempre se descreveu. Não queres descrever isso. É a tua decisão de acolhimento. Não de segredo. De acolhimento.

Epifanias # 72

Havia um grande silêncio de pássaros e ramos a estalar quando se deitou na floresta. Acordou sobressaltado com o pensamento pulmão verde. Já não estava habituado a respirar.

Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 5

No exame “ad-hoc”, havia uma pergunta para explicar o sentido da expressão “indigência”. Alguém respondeu: implementação.

A Leitora, no seu infinito particular (LXI)

- Vou ter o sol a poente. Um novo bairro. E, sobretudo, uma maior despreocupação quando tiver de deixar a casa por longas temporadas. Mas não vamos dizer aqui porquê, está bem?
- Sim, Leitora, como queiras.
- E tu, quando mudas?
- Quando houver tempo, o que quer dizer que seria nunca...
(riem ambos)
- Já começaste a encaixotar os livros, Luís?
- Hum...
- E isso quer dizer o quê?
- Hum...
- Pronto, eu não faço mais perguntas difíceis.
(riem ambos)

Escrevo sem romantismo, sem drama e sem consoloção

O meu discurso enquanto porta-voz do júri do Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB 2006 atribuído a Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, de Maria Gabriela Llansol.

Parei longos meses na fotografia que antecede o primeiro capítulo de Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004. É uma cena fulgor aberta no sorriso de Maria Gabriela Llansol e Augusto Joaquim. Um sorriso andando, alheio à pose. Uma imagem que é já texto, não porque seja parte de qualquer álbum de memórias mas porque convoca o trajecto sem repouso de uma obra absolutamente singular.

Nos enredos desse andamento, os posfácios de Augusto Joaquim tornaram mais clara uma espécie de dupla vertente da escrita de Llansol. Primeiro, a recolha e transfiguração de uma experiência do comum, mas em que o vivido comparece sem os traços vulgares dos decalques realistas. Não se pretende um real reconhecível na sua legibilidade imediata, a falsidade de um conhecimento de apropriação, mas o encontro do diverso ou da diferença que cada ser ou situação comporta, aquilo que o vivo tem como potência de sentido e que é a tarefa e a aventura de existirmos. As exigências colocadas por esta aventura inscrevem-se numa demanda filosófica que parte do quadro emancipatório da modernidade mas que recusa a entropia eco-sociocultural da modernidade tardia. Daí uma segunda vertente, que convoca para um mesmo plano de imanência, e como forças que o intensificam e fazem devir, nomes da convulsão e da abertura da história, nomes como Müntzer, Bach, João da Cruz, Pessoa, mas também a ervilha, a árvore, o cão, qualquer um, qualquer coisa, o movimento de qualquer um e qualquer coisa em cada momento de permanência do universo.

Nos longos meses em que me demorei junto dessa fotografia, duas frases me atiraram para a leitura. Pertencem a um livro anterior, Inquérito às Quatro Confidências, e a sua força deriva da sua extrema exigência. "Escrevo sem romantismo, sem drama e sem consolação" (p. 69). Como pode sustentar-se uma escrita assim quando tem de enfrentar-se com o que este curso de silêncio virá a chamar de “a maior experiência de dor de uma mulher resistente” (p. 25)? E como pode uma tal experiência de dor deixar intacto esse outro pensamento de Inquérito às Quatro Confidências segundo o qual "o homem não dispõe de corpo para imaginar o universo, os fins últimos e as razões primeiras, mas (…) está aqui, // caminhando no há que há" (p. 60)?
Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004 é um romance que, perante si mesmo, se coloca numa postura particularmente exigente face à responsabilidade de um percurso anterior de descoberta. É como que um teste involuntário, mas em todo o caso um teste, e radical, acerca das possibilidades de a escrita poder de facto colher “o que da dor advém como beleza” (p. 186). Ou se quisermos colocar as coisas num outro plano, é um teste acerca das possibilidades de a escrita poder continuar a ser vida fazendo-se mesmo “em certas circunstâncias de terrível abandono ao irremediável” (p. 55).
O que desde logo se torna evidente ao lermos este Curso é que ele é a longa resposta a um golpe, a uma dor enunciada de formas diversas mas remetendo todas para um mesmo acontecimento, que é de ordem pessoal mas também textual: trata-se agora de “compor um texto sem a tua presença ao lado” (p. 16). Mas pessoa singular e texto convergem de forma não menos evidente na responsabilidade e autoridade de uma bio-grafia. Como sempre, aliás, na obra de Llansol, e sempre, também, segundo o mesmo princípio: “falo indirectamente do que seria menos inteligível se falasse directamente” (p. 23).
Sem qualquer pathos sentimental ou pretensão de transcendência, Amigo e Amiga cria a vida pós-dor. Há um longo confronto com aquilo que nos processos de luto, e na própria existência humana enquanto luto, Deleuze chamou os “afectos tristes”. Mas a dimensão narcísica do sentimento da ofensa e da revolta sem projecto de devir cedem aos ensinamentos do Curso, à construção das “imagens curativas”, que não são cristalizações de um processo defensivo mas energia que permite “permanecer no inseguro” (p. 14), que é outra forma de dizer o “caminhar no há que há”. As múltiplas figuras deste Curso, algumas vindas de romances anteriores, constroem a aliança entre o que perdura, o que muda subitamente de sentido e o que emerge para a restante vida. A todas acolhe o silêncio, aquilo que preserva o texto e o existir da banalidade sufocante, aquilo que reconduz a ética da literatura — ou de qualquer outra tarefa — ao seu lugar de invenção de uma realidade que se mede apenas pela capacidade de devirmos dentro dela aquilo que de nós próprios desconhecíamos. O que também se pode dizer de um outro modo: “Que este seja o jardim que a ausência permite” (p. 177).

Agora estou parado há longos dias sobre o livro fechado. Começo a perceber que há alguma coisa que devia começar a ser dita, mas não tenho ainda as palavras. Qualquer coisa que começasse a dizer que Amigo e Amiga é um romance de amor tal como o amor pode ser vivido por humanos que escrevem e lêem a vida assim. Segundo um curso de silêncio que, de alguma forma, permitiu toda a obra anterior de Llansol. Mas não tenho ainda as palavras. Não tenho.

Epifanias # 71


De novo. Mas ainda não vou dizer nada. Tu sabes.

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 11

Finalmente, a revelação. Os considerandos ficam para mais tarde.

Alcançamos, seguindo uma via de silêncio mútuo, o cimo de uma ladeira onde, além de podermos ver, debruçados numa ponte,
as linhas férreas por onde seguiam andorinhas,
vislumbrávamos as linhas curvas da paisagem que ensinam os olhos e libertam, sem palavras,
os soluços da garganta.

Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, p. 79

Faz pensar, não é?

A Leitora, no seu infinito particular (LX)

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 10

Pedro Eiras: hum... Ruy Belo?...

Excelente escolha! Mas não, ainda. O que naturalmente é irrelevante, como já se terá compreendido. Relevante será uma autoria suportar tantas supostas autorias. O que, não sendo novo, convém re-afirmar de quando em vez.

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 9

Joshua Bell no metro, com a sua indumentária de homem comum, tocou e não foi reconhecido. Eis agora Joshua Bell na grande sala, luzes fechadas, silêncio que abre caminho à grande arte:

Alcançamos, seguindo uma via de silêncio mútuo, o cimo de uma ladeira onde, além de podermos ver, debruçados numa ponte,
as linhas férreas por onde seguiam andorinhas,
vislumbrávamos as linhas curvas da paisagem que ensinam os olhos e libertam, sem palavras,
os soluços da garganta.

Identificam, agora?

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 8

Francisco Frazão: "Não arrisco um nome, mas a minha aposta é que o texto foi escrito em verso e foi aqui transformado em prosa: parece que se adivinham alguns desses versos; e outra pista é o texto ser apresentado amanhã noutro «modo»..."

Do pequeno mundo animal

Estava a olhar fixamente para mim, quando levantei os olhos da correcção de mais um exame. Pequena, correctamente verde. Tentei que subisse para um papel, para depois a largar lá fora, na relva. Não quis. Meteu-se entre duas resmas de livros no chão, à frente das estantes. Por sinal, entre a ficção estrangeira e a ficção nacional. Isso também eu queria, ouviste? Boas leituras, é tudo quanto te posso dizer.

Agamben # 1

Há uma vertente do pensamento de Agamben que me deixa com um pé bastante atrás, e que é precisamente uma das ideias desenvolvidas em Serralves: a inoperância ou a inoperatividade. Como António Guerreiro sublinhou na breve apresentação de Agamben, a ideia de inoperância ou de inoperatividade tem uma ligação fundamental com a ideia blanchotiana de désoeuvrement. O problema, quanto a mim, começa exatamente nesta ligação. Porquê?
Nenhum conceito existe fora de um campo de batalha que determina a sua força, a sua localização provisória, o seu traçado possível. Désoeuvrement foi um conceito para responder ao espartilho dialéctico tese-antítese, um terceiro elemento colocado entre o um e o dois, alheio a sínteses, por um lado, e a uma negatividade generalizada e nihilista, por outro. O traçado do conceito era o de um movimento para fora de um campo saturado por afirmações contraditórias e especulares, incapazes de re-colocar questões e problemas. A porta de saída possível parecia ser o neutro, enquanto resistência óbvia e pertinente a um campo conceptual assim constituído.
Que se passa hoje no campo conceptual? De um modo rápido, simplista, a seu modo brutal, leria o campo conceptual de hoje segundo a prevalência esmagadora da indiferenciação, uma indiferenciação movente, num fluxo permanente que simula a novidade contínua quando de facto aniquila todas as particularidades de qualquer pensamento. Este fluxo permanente simula a velocidade, vale-se da velocidade real de alguns aspectos motorizados e cibernéticos da vida contemporânea, mas no essencial é estático: abra-se um jornal ou uma televisão ao acaso e note-se a tremenda dificuldade em fazer corresponder o que se lê ou ouve e vê a uma data concreta e específica: será hoje, terá sido ontem, anteontem, no ano passado?
Simplificando: o campo conceptual de hoje aparece-me como a corrupção, o efeito perverso do neutro. Um neutro que não afecta a estrutura planetária do tardo-capitalismo, antes é o campo sem obstáculos em que ele circula. Neste campo, e ao contrário do que Agamben propõe, a arte não é imediatamente política porque resista e desmonte, i.e., porque torne inoperativo o pensamento feito; a arte é imediatamente política porque não pode deixar de entrar no circuito da mercadoria. Dir-se-á que sempre entrou, o que é verdade. Mas com esta diferença: nunca o circuito da mercadoria foi tão visível no seu mecanismo e no extrair de leis de visibilidade simbólica a partir dele, nunca o circuito da mercadoria conseguiu sobrepor-se tão exactamente e tão vantajosamente ao circuito da interpretação.
Blanchot dizia désoeuvrement e nós éramos atirados para as margens de um campo onde se movimentavam todas as forças que construíam o pensamento do novo. Agamben diz inoperatividade e nós somos atirados para um lugar recôndito, aristocrata, onde ainda parecem funcionar as velhas relações de força que se estilhaçaram com a globalização. O que quer que esteja a acontecer, não está a acontecer nesse lugar recôndito nem me parece que a inoperatividade seja o seu motor.
Voltarei a isto desde um outro ângulo.