arrumados os jornais de fim-de-semana, voltemos ao que interessa

Dois posts de fundo, nos idos 25, a propósito dele, e por acaso (mesmo só por acaso) sovando imp(la)ecavelmente quem do mesmo 25 não desdenha, mas faz gala em fazer tão de conta que não foi aquilo que também foi, que é como se. Para ler bem o presente:
"25 de Abril. Querela", de Maria Velho da Costa
[Bombyx-Mori]
"Pura desonestidade", de João Pedro Henriques [Glória Fácil]

Também post de fundo, âmbito diferente, a delirante reportagem da festa da música:
"Coluna do Oleodoro", no Bandeira ao Vento


Matéria directamente citável, pela sua maior brevidade, negritos da minha responsabilidade (melhor dizendo, da minha invenção, a jeito de comentário, a bem dizer todos desnecessários excepto ao post do Pedro Lomba, por imperativos de defesa da "honra" da Agustina, ou de outra maneira ficaria o meu tanto irritado — já sei que a Agustina se estaria nas tintas para isso, e muito bem, mas se me permitem não gosto de me irritar em vão):


Aviso à navegação
[A Natureza do Mal]

"Enquanto o governo faz a política da direita (o desmantelamento do estado social) o presidente faz o discurso da coesão social.
O povo diverte-se nas montras dos centros comerciais. O povo é ignorante, obeso, preguiçoso e toxicodependente. Hão-de passar mil anos até que tome o comando, ou alguém por ele.
O gerente do banco já tem o palacete quase pronto. E o Parque Verde o último andar. E a ponte da Inês a inauguração pedonal. E a bebedeira intensiva dos estudantes-padres. Está tudo quase pronto."


Pois, mas a romancista não é uma historiadora [Vício de Forma]
"Cito de memória. No dia 26 de Abril de 1974 Agustina Bessa Luís escreveu nos seus cadernos (ou talvez numa comunicação, não sei bem): “agora que a revolução acabou”. Extraordinário: “agora que a revolução acabou”. Tinha passado um dia."


Crítica literária [Solvstag]
"Não é fácil dizer bem
Começei ontem a ler Não é fácil dizer bem - críticas, obsessões e outras ficções (Tinta-da-China), e acho que o João Pedro George está mais gordo."


Crítica de cinema [A Praia]
"Sensatez
Achei que evidentemente A History of Violence era um filme sobre o pós-11 de Setembro. A minha irmã achou que era sobre O Casamento. A minha irmã é muito mais sensata."


Vida cultural [Agridoce]
"Eu fui ao Cultura Estúpido # 3
o melhor momento do debate foi trazido por Ferreira Fernandes directamente de uma parede da Rua do Salitre, na qual se diz "Se Deus existe isso é problema dele". José Policarpo não comenta."


Vida sentimental 1 [A Praia]
"Name of the game
O sexo não é muito importante para a maioria dos casais que eu conheço. O desporto realmente importante é esticar a corda."


Vida sentimental 2 [Educação Sentimental]
"mulheres com sonhos de meninas
Não tenho qualquer problema com a ideia do príncipe encantado. O que me incomoda é essa coisa de andar a beijar sapos para descobrir um."

Cartoon [A Natureza do Mal]
"A Igreja vai rever a sua posição. É altura do António pôr o preservativo em Ratzinger. Como um mal menor, mas no sítio."


Pequena história de última página [Dias Felizes]
"Bala
«SARAH, sozinha: Quando tinha doze anos dei um tiro na cabeça. Desde aí que a bala circula no meu corpo e ainda não explodiu ainda procura o seu alvo.» Michel Azama, Zoo Nocturno."

pano. pianinho para não assustar o resto do dia.
de todo o modo anda pouca gente na rede. mesmo eu já estou de saída, foi só enquanto tomava o pequeno-almoço.

[instante 1] auto-análise impessoal


Platão ou o porquê

Por obscuros motivos,
em circunstâncias desconhecidas,
o Ser Ideal deixou de ser suficiente a si próprio.

Mas poderia durar e durar sem fim,
talhado das trevas, forjado da claridade
nos seus jardins sonolentos sobre o mundo.

Por que diabo começou a procurar aventuras
na má companhia da matéria?

De que lhe serviram imitadores
falidos, malfadados,
sem perspectivas de eternidade?

A Sabedoria coxa
com um espírito cravado no calcanhar?
A Harmonia dilacerada pelas
águas revoltas?
A Beleza
com os seus nadas atraentes intestinos?
E o Bem —
para quê a sua sombra
se antes não a tinha?

Deve ter havido algum motivo,
por mais fútil que pareça,
mas isso não será revelado nem pela Verdade Nua,
ocupada em remexer
no vestuário terreno.

E ainda, meu Platão, todos estes poetas horríveis,
aparas varridas pelo vento de debaixo das estátuas,
resíduos do grande Silêncio nas alturas...


Wislawa Szymborska, Instante
Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves
Relógio D'Água, 2006

Wislawa Szymborska

Uma das coisas que amo na minha vasta (e já irremediável) ignorância, é que a qualquer momento o mundo se me pode iluminar de descoberta. Não digo por qualquer coisa nova, embora também, mas por qualquer coisa já há muito tempo ao nosso alcance.
Comprei “Instante” por causa 1) da fotografia da autora na badana: um cruzamento remoto de Clarice Lispector nova e Simone de Beauvoir madura; 2) por ter aberto ao acaso em “Platão ou o porquê”; 3) por ser breve e ter possibilidades de se intrometer nos “deveres” de leitura; 4) e por ser bilingue: tenho um especial fascínio (não vou agora explicar porquê) em olhar poemas numa língua que me é incompreensível, e lê-los ao lado como que saídos do nada (isto parece uma explicação mas é só o começo dela).
Começo por esta fotografia, que não é a da badana. Não tem cruzamento nenhum, é só Wislawa Szymborska. Percebe-se melhor depois de ler. Por isso também não vou explicar.

Limite de idade

O limite de idade é uma questão política: entenda-se, da polis, da organização do todo da vida pública. Diz respeito à passagem entre os tempos: saber legar, saber deixar que o legado seja transformado.
Setenta anos é uma convenção, por certo. Mas o importante é que é uma convenção que diz uma filosofia da coisa pública. E essa filosofia está certa. Este limite não pede avaliação do desempenho de um cargo, diz apenas que é a hora de outros servirem o bem público.
O que me entristece no caso Bénard da Costa, ou noutros menos mediáticos, é precisamente que pessoas que pela sua inteireza intelectual têm obrigação de saber o quão certa é essa filosofia, e que têm (obrigação intelectual de ter) vida própria para além do cargo, se deixem confundir com ele.
Há nisto, não posso evitar pensá-lo, uma diminuição de humanidade, que é mais confrangedora porque vem de quem nos tem dado razões para acreditarmos em mais humanidade.
Nos mosteiros zen, li-o em qualquer parte, os grandes mestres, no longo caminho da sua sabedoria, tornavam-se porteiros solícitos ou jardineiros atentos. Não me custa acreditar nessa humildade. Quer dizer, nessa sabedoria. E se porventura se pensar que os mosteiros zen são coisas lá longe, de um mundo diferente, pode-se sempre procurar sabedoria análoga nalguns dos nossos clássicos do cinema.

Teses & Metáforas

— Veja lá se consegue enganar-se outra vez e liga para o André, parece-me que o rapaz está a precisar de uma palavra de conforto.
— Ele, que é tão animado?
— Há dias para tudo, Leitora. E quando há teses pelo meio…
— Estou a ver… E isso é também uma indirecta para mim?
— Não. Falaremos do seu projecto quando quiser, já percebi que é crescidinha e sabe tomar conta de si. Gostava de perceber melhor o que anda para aí a cirandar pelo Alentejo, mas também não é absolutamente necessário. Enfim, ligue ao André e diga-lhe da minha parte…
— … fazem de mim moça de recados, agora? Ele é do André para o Luís, ele é do Luís para o André, e lá se vai o meu infinito particular e os seus trabalhos e os dias. E não pense que me esqueci das Goldberg, ainda estou à espera de uma palavra sua sobre isso.
— Há tempo, Leitora, há tempo. E vá lá, conceda que uma voz feminina, uma voz como a sua, sempre é mais consoladora.
— Pensei que fosse mais importante o que se diz.
— Vá, não desconverse…
— E qual é o recado, então?
— Diga ao André que para o dia-a-dia de uma tese é muito importante escolhermos bem as metáforas com que lidamos com ela.
— A tese pode queixar-se, é?
— Estamos de mau-humor, hoje... Diga-lhe que metáforas sexuais para uma tese talvez não seja a melhor estratégia. Mesmo que fosse perito em sexo tântrico, corre sempre o risco de a coisa ficar curta... Pergunte-lhe se alguma vez praticou desporto, e se não, mande-o ir assistir a um treino do nosso Porto.
— Do vosso Porto, não me meta nisso.
— Claro, claro. Enfim, diga-lhe que o regime metafórico que melhores resultados tem dado nisto de lidar com teses é mesmo essa coisa da linguagem dos treinos. Insistência, paciência, exercícios específicos, criação de automatismos, e sempre todos os dias. Diga-lhe que com o Roth também é assim, mesmo se o Roth joga numa liga estratosférica.
— Muito bem, treino. E alguma vez se joga, para me manter na sua linha metafórica?
— Vai-se a júri, Leitora, ou já se esqueceu?
— Chama àquela cena o jogo?!
— Cada um na sua liga, minha cara. Mas olhe que à sua maneira o Roth diz o mesmo. E talvez o prazer, ou o jogo a sério, não esteja na tese, mas no podermos depois fazer outra coisa sem nos sentirmos culpados de não estarmos a fazer a tese. Por breve que seja, que haverá sempre outros trabalhos a seguir, ou no caso do Roth outras ideias que exigirão atenção, por mais breve que seja é divinal.
— Será... Mas tão breve... Estou a ver que este é mais um daqueles casos de elegância deceptiva da realidade.
— A elegância estará apenas na sua voz, Leitora. Percebe agora porque terá de ser você a ligar?..

Conta-corrente

Old age isn't a battle.
Old age is a massacre.

Good news, God's news

Philiph Roth, now 73, is in excellent health. He had back surgery a year ago but is fully recovered. He exercises faithfully, avoids red meat and consumes a morning ration of Great Grains cereal. Proof of his fitness is the jacket photo for his new novel, "Everyman," which is being published by Houghton Mifflin. This is the first time in ages that Mr. Roth, famously private and publicity-averse, has allowed his likeness to appear on one of his books.

The reason for Mr. Roth's pre-emptive photographic strike is that "Everyman" is a book about mortality. It begins in a graveyard and ends on the operating table. And Mr. Roth is hoping that the pictorial evidence on the book's jacket will stave off autobiographical interpretations. "I figure this will halve the number of phone calls from kind friends saying, 'I didn't know you were so sick,' " he said recently.
[NYT, April 25]

Um sofá com vistas sobre o dragão

- Que foi aquilo, Leitora?
- Linhas trocadas. E um pequeno equívoco sem importância nenhuma. Ressaca dos festejos, foi o que foi. Festejos do André, não meus, que não saí ainda deste Alentejo litoral. Mas o Luís já tinha avisado para não me meterem nisso.
- Pois já, pois já...
- Futebol, para mim, só a selecção nacional.
- Patriotismo acima de qualquer clubite?
- Não, apenas aquela coisa feminina de ter a família toda reunida acima de quaisquer divisões... (risos) Mas aprendi a gostar e a ver, não pense que não sei o que é um foro de jogo... Mas olhe, afinal porque não comemorou?
- Oh, nada de mais... Não foi um grande campeonato, apenas uma coisa regular, é mais a promessa de uma equipa. Festejos não fazem propriamente o meu género. É como na literatura, sabe?
- Não estou a atingir...
- Ler é bom. E quando é bom, é realmente muito bom. Ir ter com o autor depois de fechado o livro, já pode não ser uma boa ideia. Aliás, até pode ser uma ideia perigosa.
- A quem o diz! Depois conto-lhe umas histórias sobre isso...

Caminhos de um diálogo (um pouco menos) apócrifo


I - Introduzindo (clemência e compreensão)
— Ajude-me aqui a responder ao João Paulo Sousa.
— Já não era sem tempo!
— Isto dos noventa romances mais as teses mais as burocracias académicas...
— Mais os filmes e mais tudo o que não vem para o blogue... Pois, tudo isso se compreende muito bem, mas a gentileza e o gosto de pensar, sobretudo o gosto de pensar, que era o que você invocava...
— E invoco... e invoco...

II- Entrando no assunto (erros meus, má fortuna)
— Em que posso ajudar, então?
— Acho que cometi um erro, ou pelo menos uma imprecisão, ou não me expliquei claramente no meu texto anterior.
— Acontece. É por isso que se escreve e re-escreve e se fazem adendas. E qual o erro ou imprecisão ou falta de clareza?
— Quando eu disse que talvez a fotografia não permita, hoje, as afecções que o JPS busca, não estava a falar da fotografia em geral, mas daquele tipo de fotografia praticada por Nozolino.
— A preto e branco?
— Não, já não é a questão do preto do branco. O que eu tinha em mente é o tipo de fotografia em que o autor não intervém depois da chapa batida, como se dizia antigamente.
— De facto, isso não ficou nada claro. E só vem dizê-lo agora?..
— Pois é, Leitora, pois é...

III- Adensando o assunto (pois, como é que sabe?..)
— E ainda por cima, como é que sabe que Nozolino ou outros não intervêm no processo depois da chapa batida?
— Realmente não sei, e não tenho nem conhecimentos técnicos nem conhecimento dos processos que esses autores usam para poder dizê-lo com certeza. Ponho-me simplesmente do lado do espectador mediano: todos os artifícios que distingo naquelas fotografias, dando de barato que se pode chamar artifício ao preto e branco, à escolha do cenário, do ângulo, mesmo à composição deliberada de certos ambientes, às lentes e aos seus efeitos na escala de cinzentos, tudo isso é antes da chapa batida.
— Quer dizer, não vê nessas fotografias nada que indique sem qualquer sombra de dúvida que houve uma intervenção depois da chapa batida.
— Isso mesmo. Coisa que não acontece ao ver as fotografias de Robert Frank. É indiscutível que houve intervenção depois da chapa batida, e é essa intervenção que provoca a descontinuidade e a fragmentaridade a que JPS é tão sensível.

IV- Derivando do assunto (a literatura, claro...)
— E você não é sensível a isso? A essa descontinuidade, a essa fragmentaridade?
— Oh, mas a Leitora sabe que sim, sabe que os meus eleitos não fazem outra coisa senão isso: o Raul Brandão de Húmus, o Vergílio Ferreira pós-Aparição, o último Lobo Antunes, as...
— ... mas isso é literatura, não é fotografia!
— ... pois, e você interrompeu-me quando ia falar das minhas escritoras de eleição. Mas adiante. Claro, é literatura. E uma parte fundamental das minhas afecções é de lá que vem. E onde eu quero chegar é a isto. Vamos pôr as coisas em termos redondos: uma história bem contada, em literatura, não me interessa nada, já não tenho pachorra, etc e tal. Já não digo o mesmo num filme, porque concedo a alguns filmes funções de entretenimento inteligente. Mas a literatura de entretenimento inteligente, qualquer coisa como Equador, sou incapaz de ler, irrita-me pelo tempo que leva, pelo esforço que exige e que não é compensado. Ver um filme é bem mais relaxante, desde que não seja estúpido.

V- Voltando ao assunto num patamar mais alto (chapa batida)
— E a fotografia, no meio disso?..
— Pois... A fotografia, aquele tipo de fotografia sem intervenção depois da chapa batida, mantém para mim o fascínio de a arte ser ainda possível de uma forma quase-directa, maximamente dependente do real, ou da convenção do real...
— ... ah, estava a ver se não fazia a ressalva...
— ... é o que de mais análogo encontro com “a marquesa saiu às cinco horas”. Não tenho saudades nenhumas desses livros, mas tenho um fascínio imenso por a fotografia poder ainda partir dessa possibilidade de convenção e nos fazer pensar através do desajuste silencioso que ela encerra. Pensar sem ser necessário impor-nos uma descontinuidade de permeio que nos obrigue a isso, como a montagem de Robert Frank.
— Quer dizer, dá à fotografia, ou a esse tipo de fotografia sem intervenção depois da chapa batida, o lugar da inocência perdida da literatura. É isso?
— Qualquer coisa assim, Leitora. Sabendo que nunca houve inocência nenhuma, ou se a houve só demos por ela depois de definitivamente perdida.
— Pois... Quer dizer, reclama como virtude aquilo a que no início do seu diálogo com o JPS chamou o pecado mortal da fotografia: o julgar-se que ela é realismo transparente.
— Digamos que reclamo e sou sensível a essa convenção de realismo com a distância de se saber que não é nada transparente, mas sem ter de lutar com o obstáculo da descontinuidade...
— Lutar?!.. Fórmula estranha, para quem invoca o prazer de pensar.

VI- Aprofundando uma parte do assunto (especulando, é mais isso...)
— A Leitora não perdoa nada. Expliquei-me mal.
— Está-se a ver que sim...
— Concedo à fotografia a possibilidade de me afectar para aquém de qualquer narrativa. É uma possibilidade que decorre de um meio técnico e da sua ligação à captação do instante.
— Ligação mítica...
— Claro, Leitora, mas funciona ainda, e construiu as afecções próprias a esse funcionamento. Essas afecções são reais. Não são uma explicação nem directamente uma interrogação, estão para cá disso.
— Mas suscitam pensamento.
— Como qualquer afecção, na medida em que formos movidos pelo desejo de conhecimento. Mas não são desde logo afecções narrativizadas.
— Estou a ver onde quer chegar. O JPS liga sempre a descontinuidade a uma estratégia que “coloca a narratividade em fundo na apresentação de uma imagem, quer dizer, enquadra-a numa sequência hipotética, entre o que lhe antecede e o que lhe sucede, ainda que estes elementos possam não estar visíveis ou se apresentem sem um nexo causal evidente”.
— Ora nem mais, Leitora. E acrescenta que é esta “possibilidade de separar e reunir, provocando, através dessa reunião, uma sensação de estranheza que deverá activar o raciocínio daquele que contempla as imagens”. Eu diria que o JPS, na manifestação dos seus gostos e das suas afecções, é particularmente sensível à arte sub specie narrativa.
— Narrativa descontínua, porém.
— Claro, narrativa descontínua, mas já em marcha, por assim dizer. Note que, num certo sentido, digamos que num sentido ricoeuriano, para falar de alguém que resumiu amplamente estas questões, a narratividade é quase uma invariante antropológica da constituição da cultura, isto é, da sua produção e recepção. E claro que é difícil não se estar de acordo com isso. E o JPS tem toda a razão quando procura na descontinuidade aquilo que pode manter a abertura da narrativa, o seu devir, seja qual for a forma artística.

VII- A ver se se chega a alguma conclusão (e quase entra o Groucho...)
— E então o Luís procura o quê?
— Ser apanhado pelo fascínio e ao descolar dele ficar nas mãos com uma narrativa a ponto de começar.
— Hum... demasiado metafísico, não acha?
— Pensei que a Leitora fosse dizer demasiado psicanalítico...
— Mas para si não são a mesma coisa?
— Pois são, pois são. Lá se vai para o lugar de deus, a ponto de começar.
— Um deus com minúsculas...
— Como tudo o que é finitamente humano.
— Sabe o que eu acho? Se o Groucho aqui estivesse, era esta a altura em que ele lhe diria que, para afecções desse calibre, o melhor era apanhar um murro nos queixos.
— Talvez, talvez... Mas é interessante que tenha falado disso, porque ainda há dias dei com a cabeça numa estante e o que me veio dos fundos da dor foram imagens soltas, nada de narrativas ou bocado de narrativas.
— Mas imagens descontínuas, forçosamente.
— Forçosamente. Mas não ligadas entre si pela descontinuidade, era o que queria dizer. Afecções em estado puro. E bruto.
— E espera da fotografia, ou de alguma fotografia, essas afecções sem a dor física da cabeçada na estante.
— De preferência.
— Percebo perfeitamente essa preferência... é melhor bater na chapa batida, pois então!
— Ora aí está, Leitora. Quase estava tentado a dizer, mas já ia narrativizar muito a metáfora, que se faria assim do som ao sentido.

VIII- Acabando de qualquer maneira (mas ele há outras?!..)
— De facto, seria narrativizar muito.
— Pois... Mas se olhar bem para a fotografia lá de cima...
— ...banal, fotojornalismo...
— ...claro, mas ouve-se o comboio e o som animal dos seus olhos, e há uma história a ponto de começar.
— E é o JPS quem entende a fotografia sub specie narrativa!..
— Pois, mas aqui é a ponto de começar, e o que lá há é a coisa mais anódina deste mundo, que é precisamente haver mundo anódino.
— Bom, o JPS que diga qualquer coisa, ou a Silvina e o Adolf Loos na descontinuidade que lhes deu, que eu já não consigo ajudar mais aqui...

Outrora Agora

Festa é Festa (1974)
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Hélder Macedo, Pedro e Paula (1988)

A Leitora, no seu infinito particular (XV)

- Lembro-me da imagem, antes de saber o que ela queria dizer. Um poster no sótão, no meio de vário outros, entre política, cinema e teatro.
- Do seu pai ou da sua mãe?
- Não sei. Mas à data nem se conheciam, eu ainda estava longe. Depois contaram-me muita coisa desses tempos. Brilho e nostalgia, pensei muitas vezes. Mas reconheço-lhes uma coisa.
- Sim, Leitora?
- Nunca disseram que eu fosse devedora. Nunca disseram que eles fizeram e aconteceram, e eu ou outros estivéssemos a desperdiçar. Ou não soubéssemos dar valor. Sempre disseram: é o teu tempo que é simplesmente normal e humano.

Ainda

De um «tom» Gonçalo M. Tavares

Rui Bebiano critica o prefácio de Gonçalo M. Tavares ao livro de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, Os dias loucos do PREC. Não conheço ainda o livro, não li o prefácio. Mas reconheço a dimensão mais problemática do «tom» Gonçalo M. Tavares através da crítica de Rui Bebiano, o que torna altamente provável que Rui Bebiano tenha lido bem e que Gonçalo M. Tavares continue a escorregar, mesmo no que à empiria diz respeito, para uma lógica que esquece as diferenças individuais — aquelas de que, afinal, se alimenta toda a ficção que ainda vale a pena. A série do «Bairro» — aliás excelente — vive fora da história. Quando entra nela, como com os romances da série «Livros Negros», o grande problema consiste em encontrar um tom que não seja o do jogo lógico, dos seus paradoxos e absurdos. Mesmo que a historiografia continuasse a desvalorizar, como diz Rui Bebiano, “o papel do olhar de desafio de Salgueiro Maia, ampliado aos olhos do apontador da Chaimite, o qual, por ele convencido, resolveu desobedecer às ordens do seu comandante e não disparar sobre os revoltosos de Abril, possibilitando a sua vitória” — mesmo que a historiografia continuasse a desvalorizar isso, que já não o faz, o romancista só tem que seguir esse olhar, e inventar como ficção e linguagem aquilo que Rui Bebiano descreve com lógica de ensaísta (dito de outro modo: tem que substituir expressões como «o qual, por ele convencido», «resolveu desobedecer», «possibilitando a sua vitória» por conexões ficcionais que mostrem isso sem o dizer). Que Gonçalo M. Tavares, ao que parece, possa considerar esse olhar, ou outros acontecimentos análogos, como excitações que perturbam a verdade dos factos, eis alguma coisa que parecia assomar ao longo dos romances da séria “Livros Negros”, e que tornam, a meu ver, algo problemático o seu futuro como romancista. Mas claro, nestas coisas, não só os desígnios do romance são mais insondáveis do que os de Deus, como a vontade do autor, apesar de muitas aparências em contrário, é quase sempre a última a saber do destino que lhe cabe. Aguardemos, portanto.

Qualquer coisa no raccord...

— Um pequeno aperto no coração, Leitora.
— Compreendo-o.
— Não é da ordem do escândalo, nada disso. Nem do moralismo, muito menos.
— É da ordem da vida, no fundo.
— E da ordem do mídia, também. Para não dizer sobretudo. É o mesmo problema dos telejornais, umas coisas a seguir às outras, ou o mesmo problema da televisão em geral.
— É, depois de certas coisas a emissão devia ser simplesmente interrompida... Período de silêncio, negro no ecrã.
— E repare que no Bomba Inteligente até houve um dia de intervalo. Mas não se nota na leitura visual, esse é o problema, passa-se das velas para aquela Angelina Jolie.
— Mas um blog não é um livro, Luís. Isso do raccord tem de ser muito relativizado...
— Eu sei, Leitora, eu sei... Mas se o blog não tivesse qualquer coisa de livro, aquela Angelina Jolie não teria a ironia que ali tem, seria o mais raso fetiche masculino, coisa abundante por aí...
— Nem me fale!
— Mas olhe, foi só um pequeno aperto no coração...
— Coisas de sensibilidade... Vai ver que a Carla o compreende.
— Eu sei, Leitora. E em todo o caso já passou. E em todo o caso é mais da vida do que de nós.
— Para problemas de raccord não há como a vida, lá isso é verdade.
— Se calhar era só isso que eu queria dizer.

Cavaco # 25 de Abril

Na campanha presidencial, Cavaco apropriou-se de Grândola. Amanhã, no primeiro 25 de Abril da sua presidência, ir-se-á apropriar do cravo vermelho ao peito? Até terá boas desculpas para isso, convenhamos. Mas não deixará de ser um roubo político. Claro, coisas que só as revoluções generosas consentem.

Da minha língua


Da minha língua vê-se o mar
Vergílio Ferreira

A breve evocação vergiliana (que saltando-me de improviso aos olhos me comoveu como a um adolescente), mais a magnífica fotografia que este blog não pode reproduzir em todo o seu mistério e amplificação, mais o acertado comentário que a acompanha, estão no Ultraperiférico.
Razão tem a Leitora, tenho de actualizar os links.

Multiplex 7

Benett Miller, Capote

— Achei Capote muito interessante.
— Sim, Leitora?.. Eu bocejei o meu tanto, apesar do excelente Philip Seymour Hoffman.
— Estava a ser irónica, não notou pelo meu tom de voz?..
— Estes telemóveis...
— Mais do que um filme, é material que poderia dar um grande filme. Mas teria de se começar pelo fim, pelo facto de Capote nunca ter escrito mais nada depois do êxito de In cold blood, explorar a culpa, a esquina perigosa em que a boa ficção se pode gerar numa instrumentalização do outro quase repugnante. Não contar a história, mas reflectir sobre ela a partir do seu fecho.
— É talvez demais para o mainstream...
— Pois...

A Leitora, no seu infinito particular (XIV)

Olivier Maceratesi, et les fentes?


olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas


Ana Cristina César, Um beijo que tivesse um blue (antologia poética)
Selecção e prefácio de Joana Matos Frias
Quasi, 2005

A Leitora, no seu infinito paticular (XIII)

Olivier Maceratesi, La becquée


I
Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.

II
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.


Ana Cristina César, Um beijo que tivesse um blue (antologia poética)
Selecção e prefácio de Joana Matos Frias
Quasi, 2005

Multiplex 6 (take 3)

— Presumo, então, que o filme que não está tão certo seja o que já estava desenhado pelos estúdios quando convidaram Cronenberg.
— Provavelmente. Claro que Cronenberg defende o filme, por assim dizer. São também escolha sua os elementos gore que mostram os efeitos da violência e a dimensão paródica do encontro com o irmão, mas não vêm daí as minhas reticências maiores, embora as considere escolhas erradas.
— Penso que a sua questão era o subtexto político.
— Exacto. Há uma América interior, uma família feliz, uma comunidade conforme ao sonho americano. Num primeiro momento, quando percebemos que Tom não é quem afirma ser, ou que não é apenas quem afirma ser, pensamos que esse mito se vai desfazer.
— Ah, já estou a ver... O mito desfaz-se para se refazer em consciência. Tom irá usar de uma extrema violência, mas é uma violência defensiva e justificada, ele preserva o sonho americano que escolheu.
— Uma boa metáfora para a política da administração Bush, não é? Tom está na sua América e é atacado do exterior. A sua defesa, para ser eficaz, obriga-o a ir resolver o problema no exterior.
— Pois... Mas esse exterior é também o seu passado violento, injustificável. A metáfora tem alguns problemas de adaptação...
— Certo, Leitora. Mas não se esqueça que a administração Bush assumiu tacitamente alguns dos erros do passado, e também as tibiezas, e proclamou preto no branco que lhe competia, como potência, defender os seus interesses e levar a boa nova democrática a todo o mundo. O grande golpe estratégico dos neo-conservadores foi terem combinado, de forma clara, a lei do mais forte com a legitimidade da democracia. O que Tom nos diz é que matar custa, mas é necessário. E que matar contamina, mas que é possível a redenção. Daí a última cena, familiar no sentido mais americano e conservador do termo, porque religiosa: Tom é reintegrado por intersecção da filha-anjo, e no momento em que a família parece ir dizer a sua acção de graças antes da refeição. Bush é mais cow-boy do que isto, mas quando se pretende conduzir uma guerra com o mínimo de baixas americanas, é este regresso e esta reintegração que se pretende em última instância. Uma heroicidade sem festejo, porque se sabe do seu preço. Mas uma heroicidade que não vira a face àquilo que tem de ser feito...
— Não estou propriamente convencida... É verdade que a última cena, embora bela, tem uma religiosidade que me pareceu forçadamente pura. Mas creio que Cronenberg se deixou transportar pelo valor plástico da sequência: a família reunida à mesa, em postura de acção de graças, é mais a família que a religião. Aliás, a acção de graças é subentendida, não dita. E o perdão começa na filha, a mais inocente de todas as personagens, a que é alheia a qualquer juízo moral que não passe antes pelos seus afectos...
— Mas é isso, Leitora, os afectos do sonho americano, a sua reconstrução consciente, tanto mais conseguida quando essa consciência não deixa de ser legitimada pela alma inocente da filha.
— Custa-me imaginar um Cronenberg do lado de Bush...
— Mas também não digo isso. E sem entrarmos nos terrenos pantanosos da intencionalidade, talvez baste dizer que o problema aqui é que Cronenberg aceitou terminar sem ambiguidade, em pastoral de América profunda, uma história que, porque é de violência, tem um peso político incontornável.
— Essa da pastoral é um reenvio ao romance do Philip Roth?
— Que lhe parece, Leitora?
— Pois, Roth é outra coisa, não fica pedra sobre pedra. Ou neste caso, não fica comunidade ou paisagem a que possamos acolher-nos. Mas se põe as coisas assim, nenhum deste cinema vale um romance dele...
— Pois não... Mas o problema é que um romance não é um filme, e eu não passo sem a minha dose cinéfila.
— Nesse caso sofremos da mesma dependência. Imagine agora se eu nem sequer fosse Leitora...
— Esperemos que este não seja a véspera desse dia, nem a ante-véspera, nem...
— ... até amanhã... boas leituras para si, também...

Multiplex 6 (take 1)

David Cronenberg, História de violência

— Psiquicamente, está tudo no lugar certo.
— Concordo, Leitora.
— É preciso aprender a violência, para que ela não nos prenda quando irromper.
— Também concordo, Leitora. É isso que em parte acontece ao filho. A sua recusa inicial em responder às provocações dos colegas tem tanto de bom-senso como de recalcamento extremo dos seus instintos de defesa. Percebe-se logo que aquilo há-de explodir, ele não é uma vítima, como ninguém naquela família é uma vítima, e é isso que a faz ser a família normal do sonho americano, mais do que qualquer outra coisa.
— E é por isso que quando o rapaz explode, mostrando que afinal é bem o filho daquilo que o pai foi no seu passado, nós percebemos de uma vez por todas que o filme é sobre a necessidade de incorporar a violência na nossa normalidade: uma violência como legítima defesa e sempre proporcional à ameaça de que nos defendemos. É isso que legitima que o pai tenha morto os assaltantes do seu café, porque o que estava em causa era matá-los ou ser morto por eles; e é isso que condena a violência do filho, porque ela foi para lá daquilo que era necessário para se defender. Mas precisamente, o pai sabe como lidar com a violência, dado o seu passado, o filho não, porque foi criado em suposta não-violência.
— Não se esqueça dessa conclusão parcial, Leitora, porque é aí que o acerto psíquico do filme encontra um subtexto politico que, a mim, me deixou com um pé atrás.

Multiplex 6 (take 2)

— Eu vi dois filmes, Leitora. Dois filmes com imensas zonas de sobreposição, e portanto com uma fronteira difícil de definir, mas mesmo assim dois filmes.
— Refere-se ao facto de Cronenberg ter sido chamado pelos estúdios a realizar um projecto que já estava praticamente desenhado?
— Isso e o facto de, em várias entrevistas, Cronenberg nos ir dizendo o que de concreto acrescentou ao projecto. Por exemplo, a sexualidade do casal. A primeira cena, que é do domínio de uma animalidade irónica e feliz, e a segunda, que é a experiência vertiginosa de uma violência intrínseca ao amor.
— Ao erotismo, antes de mais...
— Não, Leitora, ao amor, antes de mais. O erotismo é talvez o terreno onde isso é mais visível num casal, desde que a incomunicabilidade não os devore. Mas o que está em jogo, nesse momento da história do casal, é precisamente incorporar a violência nessa história: a violência dela, como resposta ao passado que ele tinha escondido, e a violência dele, como capacidade de aceitar ser dominado pelo amor dela.
— Desfie lá isso um pouco, a ver se concordo...
— Nessa cena, quem domina é ela, é ela quem busca experimentar esse lado negro que ele escondeu. Na prática, ela viola-o, mas ele consente. E esse consentimento é que diz que ele procura finalmente o amor dela. Em desespero, em situação limite, é certo, mas talvez o amor muitas vezes venha assim.
— Mas eles já se amavam. Ele tinha visto esse amor no olhar dela, é isso que ele lhe diz na primeira cena sexual do filme.
— Sim, mas ela não o tinha ainda visto à luz do seu passado. Não por culpa dela, mas por medo dele. E por mais legítimo que fosse esse medo, a verdade é que o segredo, uma vez descoberto, poria tudo em causa, haveria que recomeçar ou perder tudo.
— Mas porque diz que essa aceitação dele é violência?
— Lembra-se que ele diz que passou três anos no deserto, para se livrar de quem era?
— Sim, muito religioso.
— Claro. É uma prova dura, porque alguém perdoar-se a si próprio com nítido conhecimento de causa, não é fácil. Mas o mais difícil é aceitar que alguém nos julgue sem nós querermos estabelecer o caminho do juízo. Violência contra o nosso desejo de domínio, de configurarmos os termos em que seremos lidos pelo outro. Mas é isso que ele faz quando consente em ser violado por ela. Não sabe o que daí advirá. Não é o juízo do tribunal, em que nós, como sociedade, fazemos as regras que nos irão julgar; é o juízo do amor, em que tudo depende do outro.
— Da arbitrariedade do outro?!..
— Não exactamente. Do amor do outro. Podemos dizer que o amor do outro nos julgou mal, e poderemos até ter razão, mas isso não nos serve de muito, esse amor perdeu-se, e esse resultado é mais terrível do que termos razão.
— Percebo... No final dessa cena, ela cospe-lhe... Gesto terrível, mas purificador. Mas ele fica na dúvida se isso é o princípio do perdão.
— Qualquer homem nas suas condições ficaria, ou não? E porque achou o gesto purificador, Leitora?
— Ela tem de o abjurar para o poder reintegrar. Abjurar o homem não-violento que não foi capaz de lhe dar a sua verdade, para poder depois reintegrar a terrível verdade do seu passado.
— Também me parece. E penso que este conflito que rasga o interior de uma família, e a forma como isso se sutura, é não só o melhor do filme como aquilo em que Cronenberg é diferente de filmes anteriores. Mas é um filme dentro do filme. Ou para usar as suas palavras, Leitora, o filme que está psiquicamente certo.
— E que tem todos os actores psiquicamente certos, já agora.
— Sem dúvida. Sobretudo Vigo Mortensen e Maria Bello.
— Mas para si há um outro filme que não está assim tão certo...
— Pois...

Os trabalhos e os dias (6)

A música que amamos não vive apenas de intérpretes excepcionais. Às vezes gostamos simplesmente de ter dentro dela pessoas que por várias razões admiramos. Como Daniel Barenboim. Falo hoje apenas de uma razão. Como maestro, e como judeu, Daniel Barenboim teve a coragem de tocar Wagner em Israel. E não foi para reabilitar Wagner. Nestas coisas, como sabemos, os criadores acabam sempre por ser maiores que os equívocos que se lhes colam. Foi para que Israel não se continuasse a privar da fonte de alegria e de pensamento que existe na música de Wagner. Hoje gostava que algum Daniel Barenboim português nos devolvesse o que perdemos, todos, há quinhentos anos atrás. Difícil, sei bem. Formulemos então um desejo mais simples: que sejamos agora capazes, qualquer que seja o outro em causa, de sabermos não perder o presente que nos foi dado como tarefa. E como hospitalidade radical.

Nomes

começar
inscrever o nome do outro
continuar
doar-se o nome um do outro

re-começar
inscrever todos os nomes
continuar
a liberdade de esquecer o nome próprio

insistir
escrever qualquer nome
insistir
a liberdade de não ser conhecido por qualquer nome


[porque amanhã é 19 de Abril de 1506]

Os trabalhos e os dias (5)



— Já pensou em actualizar a lista dos links?
— Um dia destes, Leitora, um dia destes...
— E posso indicar também os meus?
— Claro. Desde que me diga como se separam as listas...
— Entretanto, envie aí para a morte de um ulmeiro. Não é que eu saiba o que é um ulmeiro, ou perceba seja o que for de árvores, mas aquela morte a partir de dentro, como trabalho árduo e perfeito, disse-me mais uma vez o quanto nós, humanos, falhamos em ser natureza...
— Compreendo-a... Mas não sei se será tanto assim... Aquela espantosa fotografia da Agnés Varda não dirá o mesmo processo? Uma morte vagarosa que é só o tempo a cumprir-se, a melancolia da aceitação, a quietude que entreabre a vida à carne que não se defende...
— Talvez... Mudando de assunto: vai pôr uma vela em memória dos judeus mortos há quinhentos anos?
— À minha maneira, e aqui de longe, sim.
— E que maneira é essa?
— É a maneira de alguém que também acha abjecto que se queira diminuir a barbárie de qualquer genocídio como aquele, que sabe que o não-esquecimento da barbárie é o fundamento da civilização, que acompanharia com a sua não-reza as orações, e que gostaria que esse gesto de memória, legitimamente religioso, pudesse completar-se depois num sinal que fosse nuamente humano.
— Mas isso não seria rasurar, mais uma vez, que o que aconteceu foi um acto de anti-semitismo?
— Não, de todo. Penso em qualquer coisa assim: velas no Rossio, oração ecuménica pelos judeus assassinados (e os ateus como eu também são comunidade ecuménica), e deslocação em seguida para um outro lugar onde simbolicamente estivéssemos absolutamente indiferentes ao sermos ou não sermos religiosos, por isso não ser nem poder ser problema.
— Percebo-o. Mas olhe que algumas reacções, de facto abjectas, mostram a necessidade de ainda se enfatizar o primeiro desses gestos simbólicos.
— Também o reconheço, é verdade.
— Sobre ser justo, será também pedagógico.
— Por falar em pedagógico, Leitora, que me diz daquele texto notável sobre as palavras e as coisas racistas?
— Que é isso mesmo, notável. E já que estamos nesta espécie de revista de blogues, impressionou-me aquele texto do Vasco Graça Moura sobre os moradores que vão ser sitiados por uma auto-estrada.
— Um serviço público raro no VGM político, mas desta vez em cheio. E por falar em serviço público, o Júlio Machado Vaz começou uma série sobre esse continente desconhecido que é a sexualidade na terceira idade.
— Hum...
— Lá há-de chegar, Leitora, se tiver sorte e algum talento.
— Eu sei, eu sei... E que me diz do desafio à esquerda do Miguel Vale de Almeida? Eu acho que faz todo o sentido.
— Pois faz, pois faz. Mas não a sabia interessada em política, nem de esquerda.
— Mas sou. Interessada em política.
— Ah... Não é de esquerda, afinal...
— Quer a sua conclusão, quer a sua contra-conclusão não têm fundamento...
— Touché.
— Mas sou, como qualquer rapariga interessada e interessante.
(riem ambos com gosto, como se dizia outrora no casmurro)

Multiplex 5

Roberto Benignio, O tigre e a neve

Manuel Jorge Marmelo adiantou-se e escreveu três quartos do post que eu tinha pensado. Ficou melhor assim. Até porque o outro quarto era muito prosaico. Tratava-se de adicionar três cenas ao meu catálogo Benigni: a lição de poesia (et pour cause...), o poeta “armadilhado” de medicamentos a ser confundido com um terrorista-suicida no posto de controle, o tigre e a neve na cidade italiana. E dizer, mais uma vez, que compreendo perfeitamente que se possa amar tanto a Nicoletta Braschi. Continuo feliz por ambos. E nem é preciso ser sentimental para que muito disso passe para nós.

A Leitora, no seu infinito particular (XII)


Não queira ver. Deixe estar assim. Em todo o caso, não é de mim que se trata. Sou apenas a Leitora, convém que não o esqueça. Não, não é um jogo. Nem o jogo consiste em dizer que não é um jogo. Todo o rolo saiu neste estado. Foi há muito tempo, se é que muito tempo se pode aplicar à minha idade. É um daqueles casos em que a inépcia ou qualquer corrupção do material se tornou um instrutor involuntário. Aprendi. Fotografava por causa das histórias, para ter um ponto de apoio que erguesse a memória e a imaginação. Percebi que não precisava. A fotografia nítida é tão essencialmente desfocada como o rolo estragado. Para o que eu pretendia, bem entendido. As histórias. Quando responde ao João Paulo Sousa? Aquele diálogo magnífico merecia uma resposta mais rápida da sua parte. Mesmo com os trabalhos e os dias. Ou está à espera que o JPS escreva sobre a Silvina Rodrigues Lopes e o Adolf Loos? Bom, isso é da sua responsabilidade, não tenho de me meter. Mas basta acerca do meu álbum de fotografias. Reclamo, agora, uma palavra sobre as Variações Goldberg.

A Leitora, no seu infinito particular (XI)


E porque não? Só se obedece à empiria por fraqueza ou por inteligência táctica. Da muita coisa que poderia ser, esta é tão razoável como outra qualquer. Portanto. O meu pai numa idade que em mim própria já nem lembro. A nossa história só existe como ficção. Quando a realidade se impõe, é pelo perigo. Um trauma, uma doença, uma perda precoce. Isso que exige luto, estratégias de esquecimento, a dose certa de memória. Trabalhos para chegar ao presente. E a nossa história poder voltar a existir como ficção.

Os trabalhos e os dias (4)


Ouço apenas. Entre duas guerras. Tento atravessar. Repare nas mãos da sua avó. Aquelas. Entre dois teclados. Ouço sempre. O tempo empurra, mas isso não é atravessar. Recomeço. Não lhe direi nada. Ouvir apenas. Ouço-a. Tento atravessar.

A Leitora, no seu infinito particular (X)



Não diga nada. Ouça apenas. As sirenes. Só se ouviam no princípio. O susto. Olhar em redor. Na fuga eram ruído de fundo. O coração batia mais forte. Na boca, contra o céu da boca. Saltava do corpo a indicar a direcção. Era infalível, sabia. Sempre mais para baixo. A direcção era essa, qualquer cave, as entranhas da terra. E não se calava nunca, o coração. Mais alto que as bombas. Apertava os ouvidos por dentro, dobrava os ossos, torcia a língua. Um coração mais alto que as sirenes. Mais agudo. Nas entranhas húmidas da terra. Ouça apenas como eu ouvi nas mãos da minha avó. E nos olhos parados quando não queria lembrar. Nunca no seu coração. Não diga nada. Leve consigo, guarde o que lhe for necessário, disperse o resto no vento. Não peça coerência. Não imagine as outras histórias possíveis. Talvez mais plausíveis. Mas não mais verdadeiras. Ouça apenas. Faça escuro e antigo. E atravesse.

Um contemporâneo


Não era o motivo do post, mas fui atingido por esta fotografia como um raio: pensei que estava a ver Derrida. Algo na forma como o cabelo pousa no mundo (?), no olhar que vem de dentro, depois de dar a volta a tudo, dizendo ainda sim.

O motivo: um grande autor contemporâneo é o que atravessa as gerações que se lhe seguem, dando as suas palavras a sentidos e afecções diferentes. Pedro Mexia evoca Beckett: “Try again. Fail again. Fail better.” As mesmas palavras (mas em tradução, ainda era o tempo da francofonia...) que usei para epígrafe de um pequeno ensaio sobre Vergílio Ferreira, há dezasseis anos atrás. Dir-se-á: o mesmo fundo humano, querendo dizer pessimismo, melancolia, fora da história. Talvez. Mas com uma pequena diferença, que faz com que a frase ecoe de forma diferente. A minha citação começava um pouco mais atrás: “Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.” E começava mais atrás por causa do fim da história (da utopia, da grande narrativa legitimadora, tudo isso). Pedro Mexia vem depois. Trata-se já (apenas...) de falhar melhor.

Os trabalhos e os dias (3)

Já reparou que eu podia passar por si sem a reconhecer? Mas que conversa, a esta hora da noite... Mas já reparou que isso podia acontecer, Leitora? Não me diga que quer que lhe mande uma fotografia?.. Não será preciso, não se preocupe. Mas não acha que esta assimetria tem qualquer coisa de... não sei como classificá-la... qualquer coisa de doloroso acerca da minha condição... Como o Luís dizia ao Groucho, há coisas que são simplesmente empíricas, e esta é uma delas. Assisti a duas conferências suas, talvez o reconhecesse na rua, se me cruzasse consigo; mas não há nenhuma razão para que o Luís se lembre de uma jovem igual a tantas outras que lhe pôs uma pergunta. O doloroso deve vir de outro lado. É sempre uma hipótese. Talvez de todos estes romances que vou lendo. A grande maioria talvez ganhasse muito em transformar-se em diário... ou em blog, já agora. Mas ganharia o quê? Qualquer coisa que eu diria que é da ordem de uma espécie de ecologia da mente. Deixar cair o disfarce, o como se, a pretensão: se é para contar a sua própria visão do mundo, ou a sua vidinha, contem de uma vez, não finjam que são outros. Mas não vê que isso é o mais difícil? Aceitá-lo seria saber sem subterfúgios que não haverá lugar na história para nós, que já não há lugar na história para nós; fingirmo-nos outro é elevar a importância de nós à possibilidade do universal, ou pelo menos do exemplo. Hi, Leitora, grande tirada... Mas olhe que as palavras são quase suas, mais do que minhas. Se calhar até é isso... Isso o quê, Leitora? As palavras serem mais suas do que minhas. Dói-lhe isso: esses romances não chegarem sequer a ser a nota de rodapé da história, e no entanto haver essa loucura mansa de os escrever. Noites a fio, podemos imaginá-lo. Tirando à vida, pensando que se lhe acrescenta. Sim, talvez... Mas olhe, por falar nisso, não serão horas de ir dormir? Atente bem na sua provecta idade, e no avisado do título: os trabalhos e os dias. Os dias, certo?.. E depois há-de-me explicar que obsessão é essa com as Variações Goldberg. Pois sim, Leitora, na medida em que você me explique o seu álbum de fotografias... Não é a mesma coisa, não é uma troca justa. Como é que sabe, se estamos ambos a perguntar?..

A Leitora, no seu infinito particular (IX)


— Ainda aí? Não me diga que assentou?
— Não assentei, mas vou estando sentada.
— Mas virá?..
— Sim, irei. Mas já agora deixo passar a páscoa. Isso aí no minho é foguete a mais.
— De facto. Nada se cala, tudo se estoura: é essa a divisa.
— Quanto à sua mensagem, nem sei que lhe diga.
— Não diga nada, não é preciso.
— Mas sempre lhe agradeço o ter-me contado. Não me vai desviar do meu caminho, aliás já tínhamos falado disso.
— Mudando de assunto. Que anda você a ler, que uma paisagem dessas não a distraia?
— Falaremos disso depois.
— Mas consegue concentrar-se com essa água imensa e o barco que passa? Não lhe foge o pensamento para a viagem? Pelo menos para a possibilidade dela?
— A leitura vai sempre mais depressa, mesmo quando vai mais devagar. Levanto os olhos de vez em quando, só para me certificar que o mundo continua aí, e às vezes puxá-lo um pouco até mim, para poder continuar sem sobressaltos.
— Puxá-lo até si?
— Eu disse isso, não disse? Nem sei bem porquê... Como se o mundo fosse um cão que levo pela trela, e cada um de nós se distraísse para seu lado.
— Um cão nunca se distrai, Leitora.
— Eu também não. Pelo menos, nunca como cão-leitora.

O «eduquês» como bode expiatório (2)

Outra dimensão das críticas ao eduquês prende-se com os fracos resultados do país nos testes internacionais de literacia. Mais uma vez, há sobretudo duas coisas que se escamoteiam.
A primeira, quando a comparabilidade é com os países de leste recém-entrados na UE, consiste em esquecer que esses países têm uma experiência histórica de ensino universal muito mais longa que a nossa, e com investimento real continuado. A segunda, quando o referencial são os países asiáticos ou a Índia, é esquecer que nos estamos a comparar com um sistema de ensino basicamente elitista, tão elitista quanto era o nosso ensino aquando do 25 de Abril (se fizéssemos um exercício de extrapolação, e considerássemos nos nossos resultados apenas a percentagem de alunos proporcional àquela que tínhamos no ensino na época do 25 de Abril, a nossa posição internacional seria bem diferente).
Obviamente, não quero dizer com isto que não há qualquer problema, muito pelo contrário. Mas as discussões suscitadas seriam bem diferentes se lêssemos sem procurar bodes expiatórios simples.
Voltando, por último, à questão de ontem, considere-se por momentos que até seria verdadeira a tese de que nos falta disciplina para ensinar e para aprender. Mas não será que, para o caso português, se poderia construir uma tese análoga relativamente a todos os sectores e serviços da sociedade? Incluindo o político, que nos seus vários quadrantes foi sucessivamente perdendo a oportunidade de realizar as tão apregoadas reformas estruturais, e por junto a reforma das mentalidades? É tudo culpa do “eduquês”? Seriam bem fáceis as soluções se tal fosse o caso...

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MIT

Mais Instituto praTodos










em jejum, abstinência, algumas férias e antevisão da tolerância de ponto
sigamos os alunos, regressamos de hoje a oito dias

para os fins que julgar convenientes

À atenção teórica do Sr. João Pedro George, para os fins que julgar convenientes, deixo este post do Sr. Pedro Mexia, no rescaldo da publicação de Primeira Pessoa:

"Novidade Editorial
Agora estou uma semana nas montras como as putas na Holanda."

Ou me engano muito, ou isto é a voz (sintoma e consciência dele, em simultâneo) de uma geração. Mas não há como a sociologia para a gente ter algumas certezas. E se for feita de dentro da mesma geração, melhor ainda. Aceita o desafio? Bem entendido, não há paga para isto a não ser pensar.

Out!

CPE, Berlusconi
(agora em letra pequenina, e para ambas as coisas: a ver se não nos sai o tiro pela culatra)

Os trabalhos e os dias (2)


Com os últimos acordes do cravo, um silêncio estranho desceu sobre a casa. O tempo parou, vim ver à janela porquê. Relva cortada, já nem sinal do jardineiro, vento mínimo na laranjeira e no plátano. Fortes sinais verdes na figueira, flores brancas nos marmeleiros. Um interregno sem carros ao longe e comboio ao perto. Sem pássaros. Abro a janela. Abelhões, o fundo tenso do silêncio. Tempo de respirar a luz da tarde. Breve sorriso, como se tudo fosse verdade e simples. Como se tivesse compreendido o efémero e a compaixão. Mota tremenda na auto-estrada e toda a vida normal regressa. Fechar a janela, voltar à correcção das frequências. Recomeça o cravo.

A Leitora, no seu infinito particular (VIII)

— O número que marcou não está disponível. Por favor deixe a sua mensagem na caixa de correio de --------------.
— O que lhe vou agora dizer é privado, não vai para o blog. Sabia que ----------? Não é que altere muito, mas dá que pensar, não acha? Ligue-me quando puder.

Os trabalhos e os dias (1)


corrigir frequências; artigo para rever e terminar; preparar arguição: 1 mestrado, 2 doutoramentos; 90 romances: 18 cabem-me em primeira mão, 22 de que quero ler bastante, espreitar os restantes; fazer regulamento para exames ad-hoc; fazer regulamento para mestrados; alterar regulamento para afectação do quadro de pessoal docente; terminar conteúdos para edit on web; coisas adjacentes mais vida material; outras coisas; vida: modo de usar.

O «eduquês» como bode expiatório (1)

Na crítica ao “eduquês”, o que mais deploro é a construção do bode expiatório, logo, a incapacidade de identificar o problema na sua complexidade real e de pensar consequentemente as soluções. Aconteceu mais uma vez com o texto de Fernando Venâncio, É proibido ensinar. Aprender é vergonha.
Há constatações que são óbvias, a quem quer que lide com a realidade escolar, mas que se esquecem magicamente nestes momentos. Por exemplo: a luta por um lugar nas universidades em certos cursos de referência (medicina e arquitectura são os mais óbvios) não tem qualquer paralelo com o que acontecia há trinta anos atrás, como não tem paralelo a quantidade de alunos que se apresentam ao ingresso no ensino superior com médias acima de dezoito valores. Tudo isto se deve a uma dose suplementar de “explicações”? Em parte, é possível. Mas em termos de médias, nestes casos, quanto valem as explicações? Os pais e os alunos sabem que esse valor é de algumas décimas, mas que elas são decisivas na luta pela entrada. Mas algumas décimas significa que o sistema não ensina e que os alunos não têm disciplina para estudar?
Na base da pirâmide, a questão que há para pensar é muito distinta. Os franceses, precisamente, mostraram uma coisa muito simples: medindo os resultados dos testes de literacia (um ditado e contas aritméticas de nível primário) que os rapazes de 18 anos faziam na inspecção militar, constatou-se inequivocamente que o nível geral subiu. Parece-me que este dado empírico, no caso português, até seria desnecessário: basta pensar o que era o analfabetismo há trinta anos, e o que é a escolaridade obrigatória hoje, mesmo que aí se inclua uma alta percentagem de maus resultados (o que de qualquer modo não é coisa que se deva dar de barato).
Tudo está bem? Obviamente, não. Mas é preciso ter consciência de que muitas vezes medimos os resultados do sistema com exigências que o sistema não comporta nem seria desejável que comportasse. O sistema tem de ser feito para que todos possam chegar o mais longe possível. Isso implica que o padrão de “normalidade” baixou relativamente ao padrão de uma escola apenas frequentada pelas elites? Sem dúvida, e ainda bem. Porque isso não impede as elites, mas tenta impedir, na medida do possível, um abandono precoce. É essa a missão da escola pública, e uma missão em que a escola pública, infelizmente, ainda falha muito. Não é uma questão de “eduquês”, é antes de mais uma questão de política de ensino. Geralmente à esquerda, e de uma esquerda de que o Fernando Venâncio se pode orgulhar, apesar de tudo. Que preservou a escola pública contra um consulado cavaquista que deixou proliferar em condições inimagináveis o ensino privado, e esqueceu ostensivamente o pré-escolar e em larga escala o básico. A partir daí, há muita coisa para corrigir e pensar, mas o bode expiatório do “eduquês” só serve para não enfrentar a complexidade dos problemas.

Textoon



MIT

Mais Instituto praTodos










EM RETIRO PASCAL, ESPERANDO A MORTE E RESSURREIÇÃO DO SISTEMA
atenção à cadeira especial do sr. bispo em todos os actos oficiais

Um sofá com vistas sobre o dragão

Não foi grande jogo. O Porto ganhou bem. E acaba o campeonato ao contrário do que começou: defesa sólida e ataque mais construído e eficaz. Por este andar, é bem provável que a colheita do próximo ano seja vintage.
E agora calma que ainda há quatro jornadas. E a taça. Está dito. (eh, eh, eu a comentador de futebol... é por estas coisas acidentais que a blogosfera está a ponto de acabar...).

Calma, já estão a tratar de ti


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Um sofá com vistas sobre o dragão






Ou declaração mínima
de rendimento desportivo singular









1. Era uma vez uma criança de cinco (?) anos que um tio levou ao Estádio das Antas ver um Porto-Leixões. Do lado dos sócios do Porto.
2. A criança foi futebolisticamente infeliz durante muitos anos, como se pode comprovar pela história do clube. A criança cresceu metafísica, e só os filósofos é que não percebem a relação.
3. Entretanto, as coisas mudaram para melhor. O adulto ganhou humor, sem perder de todo a metafísica.
4. É isso, a metafísica, que o impede, em absoluto, de assistir a um jogo ao lado das claques — falta ali um bocadinho de relativismo, e o relativismo é o que torna uma vitória merecida ainda mais doce.
5. Relativamente confortável, o adulto assistirá amanhã ao impropriamente chamado jogo do título. Desejando que o seu coração encontre motivos de contentamento.
6. Está dito.

PS: não metam a Leitora nisto, a declaração é estritamente singular (mas não macha, isso é outra história)

Terapia breve, 8ª sessão

— Não há dúvida, a sua lista de tarefas é maior que a minha lista para o supermercado. E quais são essas três partes em que dizia que ela se divide?
— Coisa clássica. Um terço era para fazer anteontem, outro terço ontem, e o resto hoje sem falta.
— E como se sente com isso?
— Quais são os adjectivos ou as descrições admissíveis numa situação destas?
— Não há regras para isso. Você nomeia, depois vemos como se consegue lidar com a nomeação.
— Era o que me parecia. Nada de revolução, apenas estratégias e estoicismo.
— Não teorize. Você não vem aqui nem por revolução nem por estoicismo, apenas para aprender o que já sabe, e para saber se o que sabe lhe vale de alguma coisa.
— E ainda se diz lá por fora que a sociologia é que é a ciência deceptiva!.. (pausa) Estes tempos são tão lixados como quaisquer outros, em algumas coisas menos, noutras coisas mais, mas são os meus tempos. E para já, tudo o que sei é que há aqui qualquer coisa que seguramente roça o absurdo, ou que é um paradoxo que custa caro. Por um lado, muito desemprego. Por outro, os empregados trabalham à sobreposse, o que se espera de nós é o rendimento próprio de um workaholic. E não me vai dizer que isso é a consequência típica da crise, quando há mais oferta do que procura, porque é e não é.
— A si o que lhe interessa mais, a parte que é ou a parte que não é?
— Interessa-me aguentar o que é, lutar contra o que não é, e saber distinguir entre ambos.
— Muito bem, está a parafrasear uma oração julgo que medieval.
— Sim?.. Numa terapia? Freud deve estar a pular de contente.
— Não haverá aí um excesso de idealização do lugar de deus?.. Quando alguém reza, há pelo menos uma pessoa que ouve, que é ela própria. Isso é tudo o que sabemos com certeza.
— E isso serve-me para quê?
— Nem de propósito, acabou o seu tempo. Vamos marcar a próxima sessão?

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MIT

Mais Instituto praTodos

(22)








— Aquele que não é o seu chefe apelou a que se aproveitasse a época pascal para um completo exame de consciência no recolhimento e na profundidade do nosso retiro académico.
— Hum, se for feito a sério, isso pode levá-lo à demissão pós-pascal...
— Não haverá esse perigo.
— Por incapacidade de auto-avaliação?
— Isso e uma viagem a África para recrutamento de novos públicos...

A Leitora, no seu infinito particular (VII)



— E tem sido sempre assim, nestas últimas manhãs? Mas desde quando, Leitora?
— Isso importa? Tinha passado aqui, mas não dei conta de nada. Já ia longe e voltei a enganar-me. Não diga nada, não vale a pena. Enganei-me com uma elegância e simplicidade que até a mim me espantam.
— Ah, mas sendo assim é capaz de valer a pena que conte. Elegância e simplicidade, não são coisas de todos os dias. Infelizmente, se posso acrescentar.
— Pode. (pausa)
— E então, vai contar?
— Sou só mistério, não tem segredo nenhum.
— Não desconverse outra vez com a Marisa Monte.
— Mas é isso, não tem segredo nenhum. Segui todas as placas, mudei de direcção nos sítios certos, devagar e parando por coisas triviais, sem angústia de chegar, e quando dei por mim tinha voltado para trás por um caminho diferente e estava outra vez aqui.
— Pois… E pensava em quê, durante a viagem e as paragens?
— Nada de obsessivo, nada de concreto. A luz, uma certa felicidade difusa, a leveza de estar fora…
— E onde a elegância, a simplicidade?
— Desenhando no mapa o percurso. A distracção sabe ainda aquilo que nós já esquecemos. Já tinha estado aqui, sabe? Há muito tempo, era isto diferente, é tudo muito vago.
— E seguiu o seu próprio conselho, Leitora? Fechou os olhos e pensou escuro e antigo, muito escuro e muito antigo?
— Não. Pus-me a ler e a habitar. É essa a minha idade.
— Essa poderá ser sempre a sua idade.
— Sim, mas agora é mesmo, sem esforço nenhum.

Textoon



MIT

Mais Instituto praTodos

(21)








— Aquele que não é o seu chefe diz que concorda com a máxima de que não há almoços grátis.
— De facto.
— Por isso assegurou que, quando é o instituto a pagar, é frugal nas entradas e nas sobremesas.

Multiplex 4

Neil Jordan, Breakfast on Pluto

— Um actor vale um filme?
— Isso é retórica, Leitora, já sabe que sim.
— Cillian Murphy vale dois filmes, então. E não é de somenos que um filme possa ter aquilo que só um filme pode ter: um actor cuja composição de imagem diga tanto como a história diz.
— Ou cuja composição de imagem seja o comentário e o contraponto certo daquilo que a história diz.
— A política como guerra civil comentada por uma identidade que ultrapassa a guerra civil dentro de si mesma. O realismo da guerra é cru, mas não tem realidade para a frente dele; o onirismo daquela mulher (e olhe que daqui não lhe estou a pôr aspas travestidas), o onirismo dela é a única coisa que pode abrir para uma realidade diferente.
— Vejo que gostou, Leitora.
— Tanto mais que aquela mulher, ela e ninguém mais no filme, é a verdadeira contradição ambulante com que hoje podemos resumir os seventis.
— Dou-lhe razão. Foi a década de todos os perigos terroristas interiores à democracia e a década da maior leveza política da própria democracia. A personagem não faz qualquer discurso de género, limita-se a ser a deslocação de género e a inventar uma vida para além dos constrangimentos.
— E isso é possível, como se vê no fim: a igreja e a maternidade constituem uma bifurcação, como se ideologia e vida não fossem compatíveis, mas as personagens circulam entre elas, compondo as suas histórias e existindo. Apeteceu-me dançar, sabe?
— Compreendo-a perfeitamente, Leitora...