Apenas uma janela entreaberta

- Tudo somado, continua a ser difícil escolher.
- Mas consegues somar tudo? Tens a certeza que juntaste todas as parcelas, todas sem excepção? E tens a certeza que elas são somáveis, que pertencem ao mesmo género, à mesma qualidade ou lá o que é?
- Essas perguntas não são para mim, pois não?
- Pretendiam ser.
- Não, não me parece. O ponto era apenas o de que continua a ser difícil escolher. Independentemente das parcelas.
- Ah, mas as parcelas... O que está antes, meu caro, o que condiciona. O problema está sempre antes. E se não o encontrares antes, vais encontrar a impossibilidade depois.
- Não percebo. Não vejo como se aplica.
- Mas verás, garanto-te. A única diferença é que nessa altura, quando perceberes, será levemente tarde.
- Levemente?
- Exacto, levemente. Nada trágico. Como uma brisa sobre um pano que desce. Ou nem isso. Nada de panos a descer. Apenas uma janela entreaberta, uma cortina que esvoaça, nós do lado de cá do tempo.
-Está frio. Não era melhor fechar essa janela?
- Como queiras.

O afegão francês

Primeiro movimento: curiosidade. Um afegão há muito em Paris, mas só ao quarto romance se atreve a escrever directamente em francês. Um certo estilo durasiano no ritmo da frase, na secura, na elipse — mas não na secreta convulsão que animava todas as personagens de Duras.
Algum tempo depois da leitura (o blog tem andado muito descuidado...), não deixa de ser sintomático que os sublinhados que ainda valem a pena sejam duas breves histórias dentro da história, duas histórias de um “folclore” em tudo idêntico aos nossos muito ocidentais contos míticos (aliás, muitos deles realmente orientais). O nosso passado remoto continua a dar matéria que baste para pensamento; quanto ao presente, não é aqui que ele nos interpela, a não ser no reconhecimento de uma realidade bem diferente da nossa. Não é pouca coisa, claro, mas para isso prefiro a qualidade de uma reportagem.

Companhia nocturna # 49

Única vantagem do cd sobre o momento vivo que se percebe que aconteceu exuberantemente: o consolo do modo repeat.

Gente vindoura, ainda assim

Pouco se pode dizer a um poeta que nasce, se realmente já nasceu. Para quê apontar-lhe isto ou aquilo, se não sabemos ao certo se é defeito que se corrija ou estilo que se esteja a criar ante os nossos olhos? Podemos sempre recorrer ao trivial "cresça com cuidado e vigilância", "não se esqueça de ir envelhecendo", mas o tempo se encarregará disso (caso seja mesmo um poeta, e caso o tempo não deixe de ser tempo). Melhor ir lendo e sublinhando a lápis. E re-ler daqui a uns anos, de encontro ao que entretanto tiver sido.

Dos géneros autobiográficos

Em 16 e 17 de Novembro de 2006, o Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade Letras da Universidade de Lisboa organizou um colóquio sobre os géneros da Literatura Autobiográfica. Pelo rol de colaboradores e extensão dos autores estudados, é um marco.
O meu pequeno tijolo: “Pedro Rosa Mendes: coisas simples”. Título em si mesmo deveras singelo, embora o que prometa acabe por não ultrapassar o wishfull thinking. Mas continuo a tentar. O camião do lixo tem ajudado o seu tanto.

Ainda assim, gente vindoura


ainda assim
a poesia é aquilo que neste
desalinho todo se apresenta

tão exacto como a morte

***

aquela praia onde ruy belo
ainda não usava barba e cabelo à ruy belo
à

allen ginsberg (gente que já morreu
gente vindoura)


Miguel-Manso, Quando escreve descalça-se, Trama, 2008

Companhia nocturna # 48

Não há nada que Cassandra não consiga desviar para o jazz.
Desviar? Encaminhar.
Encaminhar? Transformar em.
Transformar em? Refazer como.
Refazer como? Ir por dentro, sempre por dentro, diferentemente por dentro.

balada de 25/04/09 em 26/04/09

Primeiro ela disse: ter nascido um bocado antes ou muito depois, nunca neste tempo.
Primeiro ela disse: nunca com esta tenaz invisível que aperta tudo e não nos deixa saber contra quem lutar.
Primeiro ela disse: triste esta escravatura sem correntes, só com pobres muito pobres e passos perdidos longe.

Depois ela disse: se a história não ensina como emendar a própria história, pelo menos consola.
Depois ela disse: porque tudo, enfim, é composto de mudança.
Depois ela disse: talvez não me seja dado ver os tempos vindouros, mas quem pode querer assistir duas vezes às coisas que só uma vez acontecem?

Perverter as quintas e as sextas (ao menos...)


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Driving Miss Laura # 17

No Público de hoje, Laura Ferreira dos Santos aplica um merecido correctivo ao bastonário da ordem dos médicos [disponível no abnoxio].


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Continuando a ter cuidado, avançando com indómita inconsciência

Até porque é notório, quer dizer, não sei se já alguém te chamou à atenção para o facto, mas assim de repente és a silhueta chapada do Nietzsche.

Driving Miss Laura # 16

(clique para aumentar)

Eis que o debate vai chegar a um dos fóruns mais in do momento.
Há uns pequenos percalços, mas acho que tudo pode imputar-se aos ares dos tempos: é de facto difícil conceber que uma filósofa possa vir à praça pública, agora uma psicóloga... Chapeau para os psicólogos, que conseguiram chegar a tudo quanto é canto e esquina, mas o seu a seu dono: Laura Santos (filósofa). Quanto ao Monsenhor, embora o seja, já estou daqui a ouvi-lo dizer que vai falar como professor de bioética; mas depois da performance do seu superior cardinalício, como poderiam prescindir das vantagens publicitárias do ar-de-família?


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O sindicato das frases, a ordem dos argumentos e o conselho superior das estruturas lógicas # 2

Preocupam-me estas noites em que não passa o camião do lixo. Acho que já me tinha habituado à sua supervisão longínqua. Ou qualquer coisa assim.

Obrigado. Terei cuidado, sim

Andando, continuando

Não acredito que a crise seja tão aguda que alguém como Manuel de Freitas tenha tido que voltar às edições de autor. As edições de autor são uma chatice para leitores da periferia como eu. Mas bem vistas as coisas, leitores da periferia como eu não contam para nada. Adiante, que Jukebox 2 não é edição de autor. Mas o que me fica desta segunda incursão pela máquina da música é afinal o hiato em que Boa Morte pode ter germinado. Entre isto: “Vinte anos depois — como tu gostas / de sublinhar —, não sabemos já o que fazer / à morte, a este inútil sobejo de vida que / deixámos de mostrar aos porteiros da noite” (p. 19); e isto: “E a morte, de repente, não era uma metáfora.” (p. 23).
Quase tudo muda quando, por estas palavras ou por outras, se fica perante o facto de a morte não ser já uma metáfora. Quase tudo o que literariamente vale a pena vem depois disso. Mas também não é menos verdade que para o compreender na leitura também é preciso já estar depois disso.

Declaração de interesses: tenho sentido uma tentação imensa de voltar ao camoniano “meu tão certo secretário”. Mas vejam o problema: como é que se pode voltar lá e continuar na lata universitária de artigo aqui artigo ali? Não, mesmo que o artigo fosse sobre o secretário não mudava nada. Tenho é que refinar na esquizofrenia, acho mesmo que não deve haver outra sabedoria.

O sindicato das frases, a ordem dos argumentos e o conselho superior das estruturas lógicas

Todos contra mim. Porque despedi um capítulo inteirinho. Sem justa causa, alegam. Concordam que os resultados não estavam a ser satisfatórios, mas que isso se devia a erros clamorosos da gestão patronal. Exigiram readmissão imediata e programa re-estruturador de funções e competências. Não só se ganha tempo, como é o mais acertado. Espero que tenham razão. Espero, espero...

Juro pela minha mãezinha que é assim, mas também não faz mal nenhum se não acreditarem

O camião do lixo veio hoje mais cedo. Talvez porque num momento de clarividência — espero, espero... — mandei um capítulo inteirinho para a reciclagem. (Ainda há tempo, ainda há tempo — espero, espero...).