Felizes os que podem remodelar

E enquanto o pensava no carro, numa mistura confusa de metafísica e reconhecimento da mais pura sobrevivência política, a matilha atravessou a estrada arrastando a sua guerra fraticida. Não é uma metáfora, mas mera constatação empírica. Cujas consequências não menos empíricas têm sido noites mal dormidas. Depois dá nisto.

Raccord

Quanto à velha questão de saber se o amor é um truque da natureza para a propagação da espécie ou a única coisa que ainda é capaz de fazer sentido neste mundo, deve dizer-se que os humanos se entregam à primeira hipótese com imenso gáudio e as precauções contraceptivas normais, e ponderam a segunda nos períodos entre coito.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # posfácio




Se observar ou sentir algum efeito secundário não referido nesta bula, não se surpreenda — é perfeitamente possível. Em rigor: normal e quotidiano. E não há ninguém a quem pedir contas. A não ser que lhe interessem os diálogos com fantasmas. Caso em que a escolha é abundante.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # epílogo




O seu instrumento-vida é reciclável. A morte é a melhor oportunidade de reciclagem.
Mas nem sempre.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 10

A lenda — e digo lenda porque nestas coisas que se leram em outros é sempre aconselhável tomar algumas precauções —, a lenda diz que Duchamp trabalhou vinte anos em segredo no Grand Verre. A sua vida corria tão normalmente quanto era possível a sua vida correr, e o seu segredo estava bem guardado. Vinte anos. Em segredo. Naquela espécie de silêncio que é o combate íntimo no meio do quotidiano.
Digo isto porquê? Não retiro daqui nenhuma ética, embora o pudesse fazer. Mas seria inútil. O fundamental é que as coisas mudaram. É impossível olhar para o Grand Verre e perceber o peso de vinte anos. Ou a lenda do peso de vinte anos. Vinte anos de qualquer coisa — hoje, não existe. Só como cronologia inútil — uma profissão, uma ligação, qualquer coisa assim na qual vinte anos não é um bloco substancial, denso, mas o listar de acelerações e transformações mais ou menos aleatórias, mais ou menos retrospectivamente alinhadas. Fomos desligados de um tempo de projecto que poderia ser um tempo subjacente à espuma dos dias.
É isto um programa de luto? Não. Um programa estóico. Que, enquanto programa, é tão antigo quanto a humanidade consciente de si mesma. Claro que aqui o post já não tem piada e é tempo de acabar.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 9

Principais problemas de funcionamento.
A sua vida não acende. Verifique se a tomada geral está correctamente ligada à corrente.
A sua vida acende, mas não é detectado qualquer sinal. Verifique o estado dos cabos de conexão, principalmente as suas extremidades nervosas.
A sua vida acende, há processamento de sinais, mas não fazem sentido. Verifique se há falhas no sistema de alimentação estóico.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 8




Parabéns! Acabou de comprar uma extensão da Existência Plus!
O programa Existência Plus foi concebido a pensar em si e na resolução dos seus problemas. Explore tudo o que este pack tem para lhe oferecer.
Upgrade GeneralStress de última geração!
Anti-relaxante de nível profissional!
Velocidade de desconexão TotalPlus, com sistema de bloqueamento de reinvestidas!
Multicomunicador Noise2000, com acesso ilimitado, simultâneo e em tempo real a todos os pontos de rede.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 7

Levante suavemente e dobre até partir. Encaixe de seguida a peça B7. Rode no sentido dos ponteiros do relógio até ouvir um clic. Ligue o comutador. Se estourar, repita o processo com a peça E2. Se também esta estourar, dirija-se ao agente autorizado mais próximo munido do seu certificado de garantia.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 6



Bem vindo ao atendimento automático Existência Plus.
Para uma nova vida positiva, marque um.
Para corrigir fadigas e acidentes de percurso, marque dois.
Para informações sobre os tarifários da vida, marque três.
Para «Pack entrar e sair com garantia total», marque quatro.
Para não ser atendido por qualquer operador, marque cinco.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 5



Aviso:
1. ao efectuar Reset, voltará às pré-definições de origem;
2. ao efectuar Reset-Cut, apaga todas as definições e também as pré-definições de origem;
3. ao efectuar Reset-ProActive, o sistema gera definições aleatórias em cada arranque.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 4


Não desloque o aparelho-vida quando se encontrar em movimento. Mantenha as faixas separadas.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 3




Handle with care. Antes de cada sessão, certifique-se que o aparelho-vida está correctamente ligado. Podem aparecer algumas interferências, elas devem-se à instabilidade inter-relacional e não a qualquer defeito-base do aparelho-vida.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 2




Para acertar o relógio, espere até ver passar o primeiro avião no céu. Ligue então a ventoinha na máxima potência, solte o lenço e siga a sua trajectória até cair nos mosaicos do chão. A hora é determinada pelo número de série do mosaico. Repetir a operação conforme as conveniências do momento.

Manual do utilizador ou Le Grand Verre # 1

De mês a mês, ao ligar a sua vida, faça ctrl+perdas&danos+kselixe, e prima durante cerca de trinta segundos. O sistema limpará alguns erros mais grosseiros e a quase totalidade dos ficheiros fantasmas e corrompidos. Em uso intensivo da vida, é aconselhável executar esta operação com mais frequência.

E só tu sabes


Mesmo da poesia, que iluminava o tempo, vais
colhendo apenas a amargura; os outros procuram nela
sinais de um destino, datas curiosas, zangas, ventanias,
armadilhas, mas tu sabes —e só tu sabes —
que a tua vida é a tua vida e que o poema
é empurrado por outro sopro, por um reflexo,
um medo brutal, pela memória dos que morreram
e levaram uma parte de ti, um pouco do que havia
de comum entre ti a e a vida, esse desperdício —às vezes —,
esses momentos de glória em dias felizes.
[Francisco José Viegas, Se me comovesse o amor, Quasi: Vila Nova de Famalicão, p.44]

Repetir as vezes que forem necessárias (há sempre quem não perceba estas coisas): e só tu sabes não é o que o sujeito lírico sabe a mais do que os outros, por ter descido nele a unção da poesia; e só tu sabes é aquilo que só um sujeito pode saber sobre si mesmo, confinado à sua solidão, à sua vida que é a sua vida: o impartilhável, o que brevemente esquecemos de nós quando partilhamos o exterior em que todos os encontros são possíveis.

Multiplex # 37 (quatro)

«Volta para mim.» É o que ela lhe diz vezes sem conta. Não que ele se tenha ido embora ou que tenha deixado de a amar. Mas a sua revolta de injustiçado torna-o presa fácil de um ódio que tudo devora. «Volta para mim» quer dizer, antes de mais, «volta a ti próprio». Mas às vezes é preciso o amor, o suplemento do amor, para que as coisas possam ser como normalmente deveriam ser independentemente do amor. O melodrama é aquele tipo de história em que o destino obriga a pagar caro por bens que ao comum dos mortais são dados quase gratuitamente (mesmo quando o comum dos mortais não sabe o que tem entre mãos).

Multiplex # 37 (três)

O real segunda vez. A cena da fonte, por exemplo. O que a pequena rapariga interpreta é uma coisa. O que lá se passou, de facto, outra bem diferente. Mas começamos a ver pelo olhar da pequena rapariga, que é o de quem assiste ao longe e interpreta com os poucos dados que tem e os desejos desencontrados que experimenta. O que está errado não é a sua interpretação, mas a precipitação que a move. A sua interpretação é consistente, mas a experiência ensina que a consistência pode ser apenas acaso, coincidência, coisa fortuita. É preciso contra-interrogar, contra-interpretar. Mas ela é apenas uma pequena rapariga. Nós, quase como deuses, temos direitos ao real segunda vez — e a cena da fonte repete-se diante de nós, desdobrando outros sentidos. E a questão não é sequer que eles sejam mais “realistas” (ainda que indubitavelmente o sejam), mas que sejam mais complexos e profundos, mais próximos daquilo que de facto está a acontecer entre aquele homem e aquela mulher na fonte — e que só saberão mais tarde, mas também aí induzidos (que ironia...) por um bilhete que não deveria ser aquele bilhete mas outro.
A questão da moral, da distinção entre bem e mal, é muitas vezes a simples questão de poder aceder ao real segunda vez, pela porta da contra-interpretação, ou de uma experiência amargamente vivida. A tragédia é aquele tipo de história em que o destino nega uma segunda oportunidade. É por isso que a tragédia é o género realista por excelência.

Multiplex # 37 (dois)

A velocidade. Tudo o que faz a pequena rapariga tem essa velocidade triunfante da apropriação do real. Não por acaso, a pequena rapariga é aprendiz de escritora (e este não por acaso, embora diga respeito a Ian McEwan, diz também respeito à “utilidade” da própria história, como se verá no final). Aprendiz de escritor significa quase sempre: redução do real ao sentido que o sujeito lhe tenta determinar, sendo que tal sentido é por sua vez (inconscientemente) sobredeterminado pelos desejos do sujeito, que regra geral os sabe sem saber. A velocidade é a linha recta para a perdição — em termos simples, para o não entendimento. Por isso o filme (e o romance) desacelera. Acaba parado. Como é próprio da tragédia de um tempo sem deuses — foi assim, lance de dados, sem mais metafísica ou culpa. A felicidade que lhes era devida e com que o filme se acaba é já movimento onírico. Essa casa à beira-mar furtada ao tempo da história nada resgata, não é sequer um como se. Apenas outro lance de dados de uma história que não houve. Nossa senhora das coisas impossíveis que desejamos em vão, como disse o outro. Nós já aprendemos a lição. Nem isso dizemos. O filme roda para além da nossa morte. Também está certo. O mar está sempre certo.

Multiplex # 37 (um)

O romance de Ian McEwan, com o mesmo título, é magnífico. O que pressagiava um desastre médio ou total. Mas desde a música do genérico — o bater de uma máquina de escrever como percursão de um ritmo avassalador e encantatório — e da sua cena inicial — essa marcha triunfante da pequena miúda pela casa, levando na mão a sua peça —, sabemos que estamos plena e inteiramente no cinema. E o melodrama no cinema são os rostos, a história simples que torna um amor impossível, a vida inexorável que nos torna iguais a nada. O milagre é ainda se poder fazer um filme assim. Melhor: o milagre é ainda se poder fazer um filme assim e ele ser visível.

Depois eu penso melhor no assunto # 2

Suponhamos que sim, que alguém se interessa, meu caro F.. Nesse caso, teria de dizer qualquer coisa parecida com isto. Em música, só momentaneamente soube distinguir um dó de um ré. E em cinema, a diferença entre um travelling e um ovo estrelado continua-me a ser um pouco obscura. Nada que obste a dois ou três parágrafos enxutos, que eu diria claramente sentimentais se os equívocos com o termo não fossem mais que muitos. Sentimentais naquele sentido em que dizem dos meus sentimentos, nada mais. Às vezes os sentimentos trazem restos de teoria ou de contextualização que vêm de outros lados, mas o seu alcance não pretende tanto. Isto interessa a alguém? Pouco importa. Eu apenas escrevo, o resto não é comigo.
Em literatura... Uma única frase, uma daquelas “boas”, e há para mim matéria para um curso. Coisa que um blog não comporta. E dois ou três parágrafos enxutos... Aqui, aplica-se aquela máxima: perdoem-me a extensão, mas não tive tempo para sintetizar.
É isto? Já me soa melhor, devo confessar. Posto que alguém se interesse, claro.

Multiplex # 36

A verdade dos impérios são duas. Primeira: o império é, por definição, suficientemente forte para poder absorver sem grandes danos as suas mais rematadas estupidezes. Segunda: o império morre pela implosão das estupidezes que o seu poder imenso permite acumular. Jogos de poder é sobre ambas as verdades, no campo em que elas são mais visíveis relativamente ao império americano: a sua política externa. O registo é de farsa involuntária, quer dizer, realista qb, baseado em factos reais. Como sempre acontece, a história registará que muitos sabiam, muitos chamaram à atenção, mas muitos mais quiseram correr para a sua perdição. Não é uma lei da história — mas lá que parece, parece...

Multiplex # 35

A cada um as suas legítimas obsessões. Crime e castigo parece ser uma das mais frequentes em Woody Allen. Com esta particularidade, desde Match point, de que o castigo não vem de fora, ou com polícia atrás, mas de dentro, desse tribunal interior que não é tanto a consciência quanto uma separação interminável da simples felicidade que afinal tinha sido o móbil do crime. Woody Allen envelhece, e parece-me bem que há ainda umas contas em aberto com os fantasmas de deus. Nada a obstar, a cada um as suas legítimas obsessões — e pode haver pensamento forte em obsessões muito afastadas da nossa sensibilidade.
Dito isto, há também que dizer que O sonho de Cassandra é um Woody Allen para assinar o ponto, ou seja, um Woody Allen da indústria Woody Allen. Que em todo o caso está uns furos bem acima da indústria hollywwod.

Por entre a electricidade estática

Pois são as “velhas” canções dos The Magnetic Fields, só que transmitidas a partir dos confins da galáxia. Aquele ruído de fundo que distorce até não fica mal de todo. Pelo menos, desde que deus se calou, já lá vão alguns séculos, é raro ouvir-se alguma coisa vinda daqueles lados. Sempre é uma novidade. Não percebo é que foram eles lá fazer. Mas vive-se perfeitamente bem com essa ignorância, mas como já antes se vivia com a outra. Haja saúde.

Depois eu penso melhor no assunto

F. diz-me que eu falo mais de música e cinema que de literatura — o que seria estranho para quem é professor de literatura e académico da área. A explicação é, talvez, simples: ouço música, vejo cinema, mas estudo literatura. Trago trabalho para casa, não consigo evitar. Mas já me é mais possível não trazer trabalho para o blog.
Em todo o caso, concedo que há nesta resposta alguma coisa que parece não bater certo.

Santos da casa não fazem milagres

Na próxima quinta-feira, dia 17 de Janeiro, pelas 21.30h, estarei na Biblioteca Pública de Braga, no seu Salão Medieval, para falar de Torga: o legado como problema.
Não será servido um verde de honra e é proibido fumar. Do legado, cada um leva o todo que quiser, a abundância é infinita no que toca às letras. Quanto ao problema — bem, o problema, realmente, é que o conferencista é um chato.

Filmes série B

Millennium Bcp: show me the money!
Alcochete, Ota: follow the money!

Sigam o cherne

Tony Blair já fala francês. Com forte sotaque sarkozyano. Veremos agora quem se desembaraça melhor com o alemão.

I’m not in the mood for aforismos # 3

No amor — sim, ainda mais uma história de amor — não há o sono dos justos, apenas o dormir do consolo, do repouso ou do abandono.

I’m not in the mood for aforismos # 2

Há o fim, o depois do fim, a finalidade sem fim.

I’m not in the mood for aforismos # 1

A lingerie não é nada, o corpo que a transporta alguma coisa, a atitude que a despe tudo.

Crónica política do país e do mundo

Houve Nero e Calígula, houve Roma, e o século XX em nada lhes ficou atrás. Não há surpresas e tudo se compreende demasiado bem. Mas isso nunca foi razão para desistir.

Memórias de quem

Na periferia, 2007 dura ainda. E muito bem, com o piano solo de João Paulo. Uma espécie de autor bissexto (um pouco menos, mas ainda assim...). Mas de cada vez, a música dura os anos suficientes. O título é todo um programa, e o programa é transversal, eclético e profundamente pessoal.

Instalação # 5

Save all the changes.

Instalação # 4

O tempo passa. A promessa de haver nada a dizer.

Instalação # 3

Tens uma cãibra na perna esquerda. Uma dor agudíssima. A tua imobilidade justifica-se. Mas ela não sabe. Não compreende porque não corres no seu encalço. Afasta-se irritada. A irritação aumenta de tal modo que ela é obrigada a parar por falta de ar. Cada um está parado para dar oportunidade ao outro de se mexer.

Instalação # 2

Do lado escuro da cabeça vê-la que sobe na escada rolante. Desaparece. O lado escuro da cabeça continua escuro. Na escada rolante sobem agora outras pessoas. O lado escuro da cabeça continua escuro.

Instalação # 1

A cada deserto o seu oásis. É por isso que em alguns não há.

Do sintoma

Call girl vale enquanto sintoma. Mas não é tanto o retrato dessa corrupção que a todos vai envolvendo e que se refina na exacta medida em que lentamente o país se vai tornando, quer queira que não, mais profissional (aliás, não será por acaso que o filme que o diz tem sólidos valores de produção e larga audiência mainstream — as massas gostam de se ver ao espelho, há nisso o resto de consciência possível e aquela má-consciência da justiça por maledicência).
O sintoma está no cartaz. A dominadora que olha de soslaio não chega a ser fotograma do filme, e cena de dominação é apenas a cena inicial, rápido teatro sem consequências de maior porque de facto não estabelece o tipo de força que caracteriza a personagem da prostituta cara. Os homens, aqui, não são masoquistas, apenas aquilo que predominantemente têm sido enquanto género: os que compram as fêmeas que o seu dinheiro alcança.
De onde vem então este cartaz? É um ponto de chegada. Com os atrasos do costume, o país social chegou à democracia enquanto sistema burguês acabado: o tédio de haver ordem sem moral. Claro que, à superfície, o discurso da moral vende ainda: Cavaco “cita” Salazar, a Igreja Católica cita-se a si mesma, os comunistas citam as suas memórias. Mas os anacronismos são só isso mesmo — anacronismos —, e quando a salvação da alma deixa de importar porque finalmente se percebeu que nem uma nem outra de facto existiam, a democracia começa por ser assumidamente o jogo do gato e do rato entre o contrato da ordem e a esperteza de a tornear. Sem dúvida, é um jogo de muitos milhões. Mas quantos mais milhões estiverem em jogo mais o dinheiro é simples mediação de uma cena mais primitiva: o gozo narcísico da transgressão. A dominadora do cartaz é a encenação consumista e libidinal (e por esta ordem) de uma autoridade sem caução transcendente ou imperativo categórico transcendental. Neste teatro de marionetes, o cliente que pode paga o seu putativo prazer, criando o combate corpo a corpo com a ordem, essa mesma que a formalidade do sistema democrático impede que possa encarnar numa pessoa (é isso a divisão dos poderes). O cliente que não pode revê-se ambiguamente no filme. Em outras épocas, disse-se que a pornografia era o erotismo dos pobres. Hoje, e para Portugal, bem se pode dizer que Soraia Chaves, enquanto mulher fatal, é toda a transgressão a que os pobres podem aspirar.

Com chuva lá fora

e uma sóbria e dura melancolia cá dentro. Um dia, ainda hei-de conseguir explicar esta frase. Ou de como certa música — mas é sempre esta, é sempre esta — ma faz dizer como se a entendesse.

Aníbal Salazar Silva, O moral

“Atentai pois em não obrar escândalo pela desproporção dos vossos salários, pois tudo o que é público será objecto de juízo e comparança. Se houverdes em mente outros artifícios retributivos, que os há em abundância para todos os quesitos, tereis encontrado a justa forma de evitar o mui pernicioso falatar das gentes. Cousa sumamente de evitar é essa, não o esqueçais, pois sempre alguém poderá a partir daí perguntar-se de onde vos vem o lucro, se ele é conforme aos preceitos da justiça e da moral, e se o trânsito da riqueza não deveria ser tão grande quanto o do destino universal de todos os bens. De guiza a poupar-vos tais embaraços, ou sequer a lembrança remota dos perigos de tais perguntas, vos exorto mui encarecidamente às públicas virtudes e garanto perante vós o magistério de todas as coisas privadas. Obrai em conformidade, e sereis salvos.”

Ah, o inverno, finalmente

Tenho esta imagem de há muito. Dois homens parados debaixo de uma chuva torrencial, numa rua com passeio largo, conversando. Seria fácil recolherem-se a um café (há até vários cafés na rua que imagino). Compreendo que se deixem ficar debaixo de chuva, mas não vou explicar porquê. Mas até hoje ainda não percebi de que estão a falar.

Três

Isto não é uma lista de decisões para 2008. É estar de volta ao trabalho. Começa-se à noite, como os homens do lixo.

Dois

Não digas que vais falar menos, deixar que os mortos enterrem os seus mortos — fala menos, deixa que os mortos enterrem os seus mortos. Ninguém notará a tua ausência nesses funerais.

Um

Não digas que estás farto disso ou que deixaste de acreditar — é um problema demasiado teu e ninguém tem que suportar as tuas opiniões. Diz apenas que há um tempo para tudo, que é tempo de fazeres outra coisa, e que não falta quem seja capaz de fazer o que estavas a fazer — está mais longe dos teus sentimentos mas muito mais próximo da verdade. O que te deveria ensinar outra vez a nunca extrair argumentos desses sentimentos.