Os trabalhos e os dias (10)

Conhecem a expressão “O órgão legal e estatutariamente competente de cada estabelecimento de ensino superior aprova o regulamento...”? Não há decreto-lei relativo ao ensino superior que não contenha, pelo menos uma vez, este imperativo de regulamentar uma série de miudezas, todas elas indispensáveis ao bom funcionamento das instituições e ao cabal cumprimento da sua alta missão (começam a perceber o estilo, certo?..).
Muitas vezes, o problema começa logo em saber qual é o órgão legal e estatutariamente competente para a coisa em concreto. As horas que isso leva e o refinamento teológico dos argumentos mostram à evidência que a Universidade é o último reduto da civilização: as guerras ganham-se por exaustão, sem mortos nem feridos nem gastos astronómicos em sofisticadas tecnologias bélicas, apenas a força nua da palavra e algumas alianças, entre o táctico e o servilismo de carreira. Pareceres de juristas também acontecem: regra geral são teologicamente plurais, como aliás seria de esperar numa sociedade democrática, e imparcialmente favoráveis a quem os encomenda e paga, porque como é da sabedoria das nações não há democracia sem prosperidade.
Quando o problema da competência do órgão é finalmente ultrapassado, passamos à questão do conteúdo do regulamento.
Acontece que eu sou um tipo económico de palavras (às vezes não parece, eu sei, mas sou), e mais ainda de burocracias. Quando há dez anos atrás me vi, pela primeira vez, com a tarefa de propor um regulamento nestes termos, resumi a coisa em três ou quatro artigos, circunscritos à matéria estrita que era preciso regulamentar. Escândalo geral, uma nódoa negra no meu curriculum. Aqui para nós, foi bem feito, porque eu tinha obrigação de ter percebido as regras do jogo. Reformulei: aos três ou quatro artigos, juntei copy-paste a estrutura e os artigos da própria lei. Elogio geral. E razão pela qual os cem mil regulamentos dos mil estabelecimentos de ensino superior portugueses são fascinantes jogos de “descubra as diferenças”, nunca mais de cinco ou seis por regulamento, e já estou a ser generoso. Mas essas cinco ou seis, é óbvio, custaram vários concílios e várias cisões entre as hostes, com todo um rol de heresias, excomunhões, dogmas, revisionismos, reabilitações, refundações. A civilização em marcha, é claro.

Multiplex 12

— Um documentário sobre uma anedota, quem diria.
— Já vê, Leitora, há espaço para tudo. A ideia até é curiosa, embora se esgote em si mesma. Conhecia a anedota?
— Não. Mas não me vai perguntar qual seria a minha versão, pois não?
— Esteja descansada. Não é que fizesse mal ao blog, mas também não vale a pena. E o que me interessou mais foi o conceito: uma anedota que é em si mesma um dispositivo que só ganha relevo com a variação. Um ponto de partida: um tipo que vai ter com o seu agente e lhe diz: tenho uma ideia óptima para um novo número. Ai sim? Ora conta lá. E depois da descrição, que cada um enche com as obscenidades mais inimagináveis, a punch line: E como se chama esse número? Os aristocratas. Entrada e saída, o resto é à vontade do freguês.
— O que só prova que, em algumas anedotas, a punch line já não é o cerne da questão, o interesse passa todo para o modo de dizer e para as pequenas variações. Mas mesmo assim, eu resisto. E é por isso que a minha versão favorita da anedota é...
— Sim, Leitora?.. Não se esqueça que está em directo para o blog...
— É o número mais obsceno que cada um possa imaginar, mesmo mesmo obsceno, o agente pergunta: Interessante, e como se chama esse número? Os Aristocratas. Ah, já cá esteve um na semana passada a apresentar esse número.

Os trabalhos e os dias (9) - adenda 2

Outro Leitor perguntou se o "dito tom medievo que não é nada medievo" era sarcasmo puro ou kitsch profissional. Pois... Eu diria mais que calhou assim, e que já agora servirá para dar material à continuação do trabalho do João Pedro George sobre o Meio Literário Português. Temos que ser uns para os outros, não é verdade? Mas no essencial, e sobre o tom, não me compete opinar, "limitei-me" a escrever.

PS: Obviamente, Pedro Burmester está acima disto tudo. O piano que parece cravo é, para mim, uma réussite absoluta.

Os trabalhos e os dias (9) - adenda

Um Leitor chama-me amavelmente a atenção para a pequena heresia do meu fruste pastiche aí de baixo: Deus sabe mesmo tudo, e não valia a pena essa pincelada de cepticismo pós-moderno em pintura tão a puxar aos tempos medievos.
Atento e obrigado, aqui fica a nota. Mas não concedo. Não é pós-modernismo, não. É aquilo a que chamo metafísica dostoievskiana. Talvez n’ Os Irmãos Karamazov, mas não estou absolutamente certo, foi há muito tempo, importa a ideia, mas talvez tenha sido Aliocha a dizê-lo: a alma humana é tão abissal, que mesmo Deus, que tudo sabe, se há-de surpreender com ela no Juízo Final. Nunca me esqueci. E o que nunca se esquece, não só diz muito de nós, como faz em nós o seu próprio percurso. Mesmo que só para chegar a um simples post.

Os trabalhos e os dias (9)

Mais uns dias e uma derradeira reunião, e termina a saga dos noventa romances. Como um monge de regra estrita, li o que me foi confiado até poder dizer do meu juízo que estava para além da dúvida razoável. Tanto quanto estas coisas se podem dizer de romances, claro. E sendo nós quem somos, outros tantos romances em que se confundem personagens e autor, mais umas quantas categorias ditas narrativas que muitas vezes atrapalham mais do que esclarecem, na vida e nos romances propriamente ditos. Mas adiante.
Como monge de regra estrita, disse eu. A oração valeu-me, devo confessá-lo, e pude manter espírito humilde ao longo da tarefa. Nunca, no claustro silencioso da leitura em consciência, insultei um dos noventa. Nunca maldisse a redacção da quarta classe, o epígono pesado, o provocador de bairro, a casa atafulhada de berloques, a lixeira a céu aberto, o beco sem saída. A todos abençoei: em verdade vos digo, aos autores vejo-os sempre como a D. Agustina dizia de si mesma: se não escrevesse, teria de matar alguém. Será uma mentira piedosa, mas prefiro assim. E no meu coração sinto que Deus, que embora não saiba tudo, muito sabe, concorda.
Depois houve também aqueles casos — e foram os mais proveitosos, está bom de ver — em que a minha imensa presunção e vaidade foi pedagogicamente fustigada pelo fogo do talento. Autores cujo nome nem me dignaria pronunciar, livros de que fugiria mais do que da pior das tentações — eis que a eles me tive de render. Em verdade vos digo: deixa-te encontrar, e acharás o que o nem sabias que procuravas.
E finalmente há esse problema deveras delicado, o da eleição de um entre os noventa, desde que um exista que assim se possa destacar — mas nisso nós já assentamos que sim, que há mais do que um que pode ocupar o lugar desse um. Nós somos cinco, sem distinção de sexo, idade ou lugar, embora não assexuados, a-históricos ou inlocalizáveis. Humildemente, em breve diremos do nosso espírito de admiração. Ámen.

So(lo) jazz

Comecei a ouvir em fundo de leitura de jornais, como quem assinala num mapa um lugar a visitar. Mas fez-me arrumar os jornais e foi ela a visitar-me a mim. Longa e intensamente. E já sei (estas coisas sabem-se) que para ficar para sempre. Tão simples quanto isso.

Gostava de ter um trabalho assim

Compreendam-me: não é que me queixe do meu. Ser pago para ler, escrever e ensinar, é uma sorte tremenda. Mas numa outra vida não me importava nada de fazer o percurso do post "Mas a verdade é que ainda não estou satisfeito" (ou é azelhice minha, ou não dá para linkar a não ser para o blog em geral). Principalmente por causa do Michael Jordan e do Larry Bird. Mas não só, claro.

Certezas poéticas: José Miguel Silva

O Padrinho I – Francis Ford Coppola (1971), a acrescentar a esse grande livro do ano transacto que foi Movimentos no Escuro.

Certezas poéticas: Nuno Júdice

Não escondo a estranheza de ler um blog só com poesia. Mas também não vou discursar sobre o assunto. Digo somente que esse blog, abro-o apenas em alguns momentos do dia ou da semana. Como uma outra forma de livro.

Potencial romanesco 3

Asuza em Quioto: só o nome faz-me sentar com calma e predispor a ler [n' O Franco atirador].

Potencial romanesco 2

— Já leu o Expresso, Luís?
— Nada. Estou aqui muito quietinho na cave, aproveitando o fresco, entre correcções de capítulos de teses e uns livritos que entretanto me chegaram. Uma vida de príncipe, Leitora!
— Acredito. Quando tiver tempo, dê uma olhadela ao artigo do Valdemar Cruz sobre o Luandino Vieira. Parece que o seu romance imaginário está um bocado deslocado.
— Quando diz seu é o meu que quer dizer? O que chamei potencial romanesco?
— Esse mesmo. Parece que afinal o Luandino se desunha a escrever na sua cela, e que em Novembro vai ser publicada a primeira obra de uma trilogia intitulada De rios velhos e guerrilheiros.
— Hum... Não é personagem, é escritor mesmo...
— Mas isso não retira ao seu romance, Luís. Apenas diz que é mais seu. Vai desaparecer um dia destes?
— Não... Falta-me a coragem e o talento, isso é logo a primeira coisa. E a segunda é que acho mais interessante desaparecer por intermitências, e se possível sem ninguém dar conta. Mas ainda não sei como sei chegar lá.
— Lembro-me de qualquer coisa no Marx que era assim: uma época só se põe os problemas que consegue resolver.
— Mas eu não sou a época, Leitora. Estou para trás. Nada de dramático nisso, é apenas uma precisão, uma deferência para com o rigor.
— Em se tratando de destinos, o rigor não está nas nossas mãos. Alguém já deve ter escrito isto, se é que foi preciso alguém tê-lo escrito. Voltemos às nossas coisas. Disse-me que estava na cave?
— É por causa do calor, Leitora.
— Faça um chazinho e tome-o à temperatura normal.
— Já fiz. Hortelã. Plantada e seca aqui. Mas sem arcádia.
— Está bem, você lá sabe...

Potencial romanesco

A recusa do prémio Camões por Luandino Vieira só confirma o potencial romanesco da personagem. Divorciado da pátria, retirado do mundo, sem publicar (o que não é mesmo que não escrevendo, mas neste caso talvez seja), Luandino vive nesse extremo que a normalidade de nós por vezes experimenta para quase sempre logo recusar: a ideia de que não pertencemos aqui, estamos a mais, houve um erro qualquer, um dia finalmente acabará. No meu breve romance, se fosse capaz de escrevê-lo, Luandino não seria animado por qualquer ideia mística, nada de au-delá, apenas um ser que aceitou desencantar-se, desenvaidecer-se, e começou a respirar. Vagamente, pressinto que respirar seja isso: perceber que não pertencemos por completo aqui, a um território já sempre demasiadamente humano, mas a uma terra indomesticável e sem pensamento.

A Leitora, no seu infinito particular (XIX)

— Estou preocupada consigo, Luís.
— Agradeço-lho, Leitora, mas verdadeiramente não há razão.
— Isso do estojo de primeiros-socorros, o calafrio... Que se passa consigo, afinal?
— Nada que não pertença à vida, Leitora. Quer dizer, nada de estritamente pessoal. Não é bem a mim que acontece, mas apenas àquele que ocupa os lugares que por acaso neste momento ocupo. É inerente aos cargos, que de resto são irrelevantes.
— Mas sofre.
— Sim. E também aprendo. E há quase uma estranha paz em as coisas serem assim. Não há nada de novo nisto, apenas que estou a viver aquilo que já li em livros bem diferentes.
— Questões de poder?
— Na medida em que, de alguma forma, tudo é poder. Não só a disputa dos lugares e a severa marcação àqueles que os ocupam, mas também o grau de consideração em que cada um se tem a si mesmo, geralmente proporcional ao grau de desconhecimento dos seus próprios defeitos. Como vê, tudo coisas triviais, nada mais que a vida.
— Será. Mas também me soa a conversa muito masculina e intelectualizada. Tem as suas vantagens, mas já estou quase como a sua terapeuta: diga-me o que sente, não o que pensa.
— Está a ver os inconvenientes de falar em directo através do blog? Nunca tinha dito que a terapeuta era uma ela, para que é que as pessoas hão-de ficar a saber isso?
— Ah... As minhas desculpas, Luís. Mas olhe, deixá-las saber, também não é mal nenhum, e acho que até compõe o retrato. Agora vou desligar e ligar-lhe pelo número que não é directo, e o Luís vai–me contar essas tricas todas, vai despejar o seu saco inteirinho, o seu umbigo e o umbigo de todos os outros. Quero saber o inferno todo, ouviu? Até já.

A complicação dos dias

Lido numa frequência de Literatura:
"Existem poucas diferenças, ou seja, as nossas diferenças são muito semelhantes."
Sei o que está a querer dizer, e é um tiro ao lado. Mas não sei porquê detenho-me no valor facial da frase, e arrepio-me. E logo de seguida espanto-me, porque pelo mesmo valor facial poderia ter-me acontecido um derrame de ternura pela humanidade inteira. Mas não, foi um calafrio. E tenho de ir buscar um chá, porque foi mesmo físico, e não quero complicações com resfriados. Tenho de pensar nisto. Mas não agora, não agora.

estojo de primeiros-socorros

estojo de primeiros-socorrros alberto pimenta: aula de teoria da literatura

poesia
propriamente dita
não há meio de acontecer,
é como matar um pássaro
ontem
com uma pedra
atirada hoje

mas
isso é o menos.

Alberto Pimenta
Imitação de Ovídio

estojo de primeiros-socorros alberto pimenta: as graves questões orçamentais

por exemplo e
a propósito,
há mais
miséria
que há vinte anos

e então
já havia
este dito:

mais miséria
que
há vinte anos.

Alberto Pimenta
Imitação de Ovídio

estojo de primeiros-socorros alberto pimenta: pausa para almoço

meu amor,
a vida
é feita
de pequenas dávidas, dados,
a antropologia
também,
e também a filosofia,
e naturalmente
a sociologia
e até
a polícia judiciária
vai por aí.

Alberto Pimenta
Imitação de Ovídio

estojo de primeiros-socorros alberto pimenta: proposta de revisão curricular com bolonha em fundo

é que
a vida
é
pura ressonância
apenas.

e a física
imita a vida
e também a filosofia
e naturalmente
a sociologia
e mais a psicologia
e então
a psicosociologia!
enfim
a cultura a ciência o saber
a poesia, ela também,
sem saber
vão todas por aí, pela
imitação da ressonância
da vida.

Alberto Pimenta
Imitação de Ovídio
2006, & etc

estojo de primeiros-socorros alberto pimenta: reunião do senado

à nossa frente
alinham outros
em passo grave.
transportam as suas ideias
como andores,
ideias que
ao nascer
já não são nascentes
e
vão todas em direcção ao poente.

Alberto Pimenta
Imitação de Ovídio
2006, & etc

Pássaros

Há uns pássaros novos no pátio, pela manhã e ao fim da tarde. Sei que são novos pelo som: estalidos em vez de chilreio. Não quero saber nada deles: nome, proveniência, características, nada disso me interessa. E se por acaso mo dizem, o mais certo é esquecê-lo antes mesmo de o fixar. Tento saber o menos possível da natureza, exceptuando o necessário para orientação e sobrevivência. Poucas árvores identifico, raramente sei o que está plantado nos campos.
Da natureza, interessa-me apenas ver, ouvir, cheirar, tocar. É um interesse que tem crescido com os anos, e que sei ligado à consciência da minha mortalidade: não já a angústia juvenil de saber a morte em teoria, mas sentir no corpo a passagem do tempo. Mas com isto perdi os pássaros, é melhor recomeçar noutro post.

Pássaros

Há uns pássaros novos no telhado do pátio, pela manhã e ao fim da tarde. Sei que são novos pelo som: estalidos em vez de chilreio. Fecho os olhos para ouvir melhor. Das árvores ao longe vem o rumor da folhagem e um pouco do mar que não há. Apago o mar, coloco a árvore debaixo dos pássaros. O som fica nítido. Crepita na pele. São estes pássaros.

Há por um aí algum sociólogo

que queira pegar nesta magna questão: como é possível que um blog de audiência cave, como este, consiga fazer subir o sitemeter de um blog de audiência segundo andar, como o agridoce? As respectivas audiências não se sobrepõem? Mas se os proprietários se linkam, porque não se linkam as audiências? Etc, etc, etc... (mas que é que me deu para querer atirar a blogosfera para os braços da meta-qualquer-coisa? bora dormir, que daqui a nada é dia)

Embora não dizendo tanto,

isso é porque fui árbitro (calma, de basquetebol, e naqueles tempos em que o basquetebol era o desporto mais gentleman do país — mas isto parece-me um raccord completamente falhado, hélas!). Agora que já não, vou tendo as minhas dificuldades.

Multiplex 11 (e um perfeito raccord, digo eu)

Acho um péssimo sinal que o público de Cannes tenha desatado à gargalhada no momento da revelação de que ela (já nem me lembra o nome, não interessa) era a última descendente da linhagem de Jesus Cristo e Maria Madalena. Um espectador mediano destas coisas, e que não tivesse lido o livro como eu (lamento muito, sou mesmo um intelectual do carago), ao fim de vinte minutos de filme já sabia que um dos dois teria de ser o “eleito” — isto não é propriamente um filme do Malick, daqueles em que as personagens entram e saem sem darem cavaco.
Cá por mim, depois de uns risitos que consegui disfarçar aqui e ali, a gargalhada tornou-se incontrolável no momento da maça de Newton. Apanhei uns chiu enérgicos, mas desopilei.
Estas coisas irritam-me: não por serem contra-factuais, mas porque pretendem não sê-lo. Nas tintas para a Igreja Católica e a Opus Dei. O problema é que não se desconstrói qualquer aspecto da cultura a partir de estapafúrdias teorias da conspiração.
Saudades do Indiana Jones e a demanda do Graal: o simbolismo era assumido, e o fundo existencial muito aproveitável. Que há aqui? Um único momento, aliás o único em que Tom Hanks é Tom Hanks (nota-se na voz, no resto anda a ganhar dinheiro, o que também é legítimo): aquela treta americana sobre as crenças, o que importa é aquilo em que acreditas, que é suposto ser a defesa radical da multiplicidade religiosa sobre que se funda a América.
Porque fui ver o filme? Fui em trabalho, senhores. Cá na periferia do reino, a malta universitária consome estas coisas, e volta e meia elas surgem nos debates das aulas. Há que estar por dentro. Ai por aí eles também vão? Então já sabem como é. Isto de ser Professor não é só alta cultura. Sorte tem a Leitora, que se foi divertir com a Missão Impossível 3, segundo creio. Inverosímil até ao gozo, já me disseram, dá bem para ser aquela dose de tiros que se consome uma vez ao ano. Ah, se me apanho com a agenda de trabalho mais livre...

Margarida Rebelo Pinto ganhou

A providência cautelar interposta por Margarida Rebelo Pinto e a Editora Oficina do Livro contra “Couves e Alforrecas”, de João Pedro George, e o seu editor, Valter Hugo Mãe, foi julgada improcedente. Tudo bem, então? Eu não diria tanto. Diria até que bem pelo contrário.
Para a juíza Maria João Faro, a obra de João Pedro George “é apenas salpicada com expressões únicas, susceptíveis de se revelarem ofensivas dos direitos ao bom-nome, honra e consideração” de Margarida Rebelo Pinto.
A juíza exemplifica: “Margarida Rebelo Pinto é um caso mental”, “a escrita toca as raias do mau gosto e do anedótico” e “despertou o masoquista que há em mim”.
Ou seja, no primeiro caso, a juíza não compreendeu o sentido de “caso mental”, que João Pedro George foi buscar a Pessoa, aplicando-o por analogia: os autores portugueses são originais apenas uma vez, depois copiam-se a si mesmos interminavelmente. A analogia é claramente expressa no texto, havia apenas que ler.
Nos dois outros casos, é simplesmente o dispositivo da crítica que é repreendido. Se de facto o crítico entende que a escrita toca as raias do mau gosto e do anedótico, não pode dizê-lo? Ou entende-se que o crítico deve agir como um procurador, introduzir a ressalva “alegadamente”, e enviar o caso à consideração dos doutos juízes?
No meu modesto entender, como soy dizer-se, com uma sentença destas, os únicos vencedores da contenda são Margarida Rebelo Pinto e a Editora Oficina do Livro. Que precisamente já anunciaram que a sentença permite avançar para acção cível.

O caso da citação literária

“Pormenores que faltam ao agridoce para ser um blogue respeitável: uma citação literária no cabeçalho. Nem que seja retirada da Dica da Semana.”
Hum... Vamos lá ajudar o agridoce a tornar-se respeitável. Sempre se deve arranjar qualquer coisa melhorzita que uma dica da semana. Ora vejamos. Isto não... Esta, talvez... Espera lá, esta é boa, condiz perfeitamente: “Um blogue renascido para um povo destemido”. Que tal? Grande citação, não é? Não é uma citação porque foi o próprio bloguer a inventá-la? Oh, diabo, isso é um problema. Mas mesmo assim. Deixe-me pôr a questão de outra maneira: não será literatura? Quer dizer, quando se fala de uma citação literária, mais importante do que a citação, não será o ela ser literária, quer dizer, literatura? Não? É mesmo da citação que se fala, da protecção de uma autoridade... Compreendo, compreendo perfeitamente. É irónico, claro, onde é que eu tinha a cabeça, agridoce faz gala em não ser um blogue respeitável. É isso, “o povo destemido”. Mas não é que se ergue desde logo um problema, outro problema, afinal o mesmo problema? É que a epígrafe lá está. No agridoce há uma epígrafe, invenção do bloguer. É literatura. E toda a literatura é citação. Citação de outros, citação do próprio no próprio acto de inventar matéria citável. Oh, eu sei, é domingo, e está na hora do lanche. Só queria mesmo dizer que nestas matérias, em que o blog é de alguma forma um derivado da literatura, é impossível não ser-se respeitável. Tão impossível como a literatura não ser logo respeitável. Está bem, às vezes leva o seu tempo, uns seculozitos, umas prisões, coisas até mais graves como condenações à morte ou assassínios sumários, mas no fim a respeitabilidade vem sempre ao de cima. Deus não dorme, apenas descansa. Ite, missa est.

Raccord

Acrescentando ao corpus, um primeiro exemplo de meta-raccord (que a confiar no Technorati, coincidiu com a introdução do link para esta casa: um filme esconde sempre outro filme que esconde...).

Potencial romanesco

"Desiludido com a realidade angolana, Luandino Vieira tem vivido, nos últimos quinze anos, num convento em Vila Nova de Cerveira." [Eduardo Pitta, Da Literatura]

(instante três) mais auto-análise impessoal


Contributo para as estatísticas

Em cem pessoas,

sabedoras de tudo melhor —
cinquenta e duas;

inseguras de cada passo —
quase todo o resto;

prontas para ajudar,
desde que não demore muito —
quarenta e nove;

sempre boas,
porque não conseguem de outra forma —
quatro, talvez cinco;

dispostas a admirar sem inveja —
dezoito;

constantemente receosas
de algo ou alguém —
setenta e sete;

aptas para a felicidade —
vinte e tal, quando muito;

individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras —
mais de metade, com certeza;

cruéis,
por força das circunstâncias —
é melhor não sabê-lo,
nem aproximadamente;

com trancas na porta depois da casa roubada —
quase tantas como
aquelas que as têm, antes da casa roubada;

não levando nada da vida a não ser coisas —
quarenta,
embora preferisse estar enganada;

agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro —
oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;

dignas de compaixão —
noventa e nove;

mortais — cem em cem.
Número, até agora, não sujeito a alterações.



Wislawa Szymborska, Instante
Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves
Relógio D'Água, 2006

Multiplex 10

— Para onde foi o nosso escritor Terrence Malick?
— Perdeu-se na voz off, pela certa.
— Para onde foi a metafísica da paisagem do nosso Terrence Malick?
— Perdeu-se na linha de água.
— E pode-se devolvê-lo a Heidegger, ao menos a Heidegger, e tirá-lo da new age?
— A Heidegger, Luís? Não alcanço a referência.
— Nos inícios do seu mundo, o Malick andava a fazer uma tese sobre o Heidegger. Depois zangou-se com o orientador, abandonou a tese e começou a fazer cinema.
— Hum... Se eu me zangar consigo e abandonar a tese, acha que me poderei dedicar ao cinema?
— Não estamos nos states, my dear. Não quanto ao poder zangar-se, mas quanto ao ser viável fazer cinema.
— Mais fácil fazer uma tese, sem dúvida. Mas é pena.
— Acredito que sim. Eu também não me importava de me zangar comigo mesmo, abandonar a academia e ir fazer cinema.
— E com estes sonhos vãos, já acabamos com o New World.
— Mas não com o Malick.
— Claro, Luís, nunca com o Malick. Com um autor é sempre assim: as obras menores são um balanço para a grande obra a vir.
— Que os deuses e os espíritos e tudo quanto haja por aí a ouçam, Leitora.

Os trabalhos e os dias (8)

Há qualquer coisa de aterrador e de morbidamente fascinante quando assistimos, no decorrer de uma reunião igual a centenas de outras, ao nascer de uma luz crua que ilumina o rosto de uma amizade e revela afinal o abismo que nos separa. Tudo no corpo do outro se vai tornando evidente, as palavras, o silêncio, os gestos, a contenção, o ataque, o repouso quase desinteressado. O que mais espanta é esta evidência, ouvir por trás da retórica o rastejar do pensamento ressentido, com todos os lugares-comuns do inferno em que se consome vivo. A evidência não é o contrário da ilusão, não nos diz a identidade de alguma coisa, que ela foi desde sempre assim. A evidência é apenas quando o outro nos perde a sua espessura, e toda a cumplicidade que tecia um mundo se desfaz. É a distância cuja origem é desconhecida mas se ergue irremediável e simples agora que a reconhecemos. Há uma alegria grave em sabê-lo, como receber uma má notícia que ainda assim desfaz a estúpida angústia do desconhecido. E uma vontade recolhida de chorar, que adiamos para mais tarde, quando formos apenas nós e esta sempre espantosa instrução de irmos vivendo. Nós e a noite aberta, um clarinete leva-nos pela mão, e no breve espaço de um adagio cabe toda a história do mundo. Sempre se soube, nunca se acaba de aprender.

Carta Aberta à Assembleia da República

Chegado a casa, ao mesmo tempo que verifico que mão amiga me e-mailou a Carta Aberta à Assembleia da República assinada pela Comissão Instaladora da Associação Portuguesa de Infertilidade, reparo que Eduardo Pitta acaba de a publicar na íntegra no Da Literatura. Para lá remeto, com o meu apoio.
E repito-me: a maioria parlamentar pode invocar, para algumas questões sócio-económicas, a grave crise que todos sabemos. Mas nestas questões, que pode invocar a não ser a sua clara incapacidade de pensar e avançar para um futuro diferente?
Como é que dizia o outro? E não se pode?.. Como é que era mesmo?

Excesso de velocidade

Auto-estrada, cruise-control a 90km/h. Primeiro, a sensação tão desconfortável de que o carro está avariado, ou que a estrada se move mais rápido que tu, nunca chegarás ao destino. Depois, a estranheza: estás numa dimensão paralela, o mundo distende-se por dentro de ti, peito maior, carne mais leve, flutuas. Finalmente, a aflição de teres de arranjar qualquer coisa que te ocupe o pensamento, ou vais-te estampar de tédio. Percebes então que a única razão do excesso de velocidade é a incapacidade de pensar. (A 120km/h é o mesmo, foi só para provar a teoria nos limites...)

A Leitora, no seu infinito particular (XVIII)

- Pus-me a caminho, mas não ainda em linha recta.
- É sempre melhor assim, Leitora.
- Melhor?
- Mais sábio.
- Sábio?
- Permite encontrar o que não se procurava.
- Procura alguma coisa, o Luís?
- Já não.
- Mentiroso.
- Também já não.
- Ah, quer dizer que o foi.
- Existencialmente, sem dúvida. É o preço da ignorância, mas só se sabe depois. E contudo...
- Contudo?
- Esqueça, não vale a pena.
- Uma procura fechada na garganta, é isso?
- Não, uma procura aberta na lucidez de nada. Mas não devia ter perguntado, Leitora. A pergunta é uma linha recta, não chega a perguntar aquilo que realmente interessa.

Os trabalhos e os dias (7)

A cada um a sua estratégia. A mim, este disco curou-me em parte da angústia da escrita académica. A cada artigo, a cada revisão de cada artigo um pouco depois (quando há tempo para isso, bem entendido), Jarrett senta-se ao cravo para as Goldberg. Que fazemos nós? Treinamos. Humildemente. Com um instrumento que não é bem o nosso, guiados por um génio bondoso. No outro Jarrett ouvem-se os efeitos deste treino: o dedilhar é único, o desenvolvimento por ondas único é. A analogia acaba aqui, porque no que me diz respeito não há outro eu. Mas para a academia só interessa o treino, a preparação do saber. (Calma, estava a falar da verdadeira academia, o resto é "socialite" e interessa-me pouco, ok?)

Para fechar o domingo

Um grande dia no jurássico, o Bob Marley quando jovem artista e um Garrett elogiando o flirt (sim, desse Garrett que toda a gente leu...).

Dobradinhas

Do F. C. Porto, tal como se esperava: campeonato e taça.
Do Scolari, que também: Vitor Baía e Ricardo Quaresma, ambos de fora da selecção.
Vai-me custar um bocado mais ser "patriota" durante o mundial.

Bem me parecia...

"A indústria de cosméticos bem pode investir em I&D que nunca encontrará melhor exfoliante do que uma barba por fazer." [Vidro duplo]

Se fossem honestas,

a Igreja Católica e suas congéneres (que nestes assuntos são quase todas sem excepção), também diriam:
podia passar a vida inteira a escrever sobre mulheres, sem nunca me cansar, tal é a minha obsessão em falar de assuntos que não domino”. [Coisas]

Posfácio ou epígrafe?

"Excluindo o sol, a nudez e o parto, o silêncio, o cheiro das árvores, dos arbustos de jasmins e de arruda, e o das trepadeiras de rosas e de estrume fresco, quase tudo o que vi, ouvi e percebi foi mentira." (Isabela, O mundo perfeito)

Next blog

Subscrevo. “A nova lei da reprodução medicamente assistida é um insulto” (Miguel Vale de Almeida). E o PS, com maioria absoluta, é de uma tibieza confrangedora. Poderá, em outras áreas, invocar a crise económica e coisas que tais. Mas que invoca aqui a não ser a sua incapacidade de pensar um futuro diferente?

Isabela.Palavras interditas como foder” e “A criação da mulher mutante” são dois exemplos maiores de pensamento. Além de também serem, o que é igualmente importante entre nós, exemplos raros de uma mulher a pensar a situação das mulheres.

Crítica literária. A prova de que mais vale ler os blogs do que os jornais está aqui. Num post, José Mário Silva dá-nos a ver a genialidade de Tchekov. No DN de 12 de Maio, sobre o mesmo livro e autor, o mesmo JMS dá-nos apenas uma “notícia”.

Literatura. Alguma também só ainda existe em blog. Os pequenos contos de Rui Manuel Amaral, por exemplo.

Raccord. Eis um belo tema para uma tese de mestrado: Do raccord no blog. Ou qualquer coisa assim. Ando a tentar vender a ideia. Entretanto, mais um exemplo para o hipotético corpus. O último romance de Roth, Everyman, tem um tema devastador. Não será curioso que Ricardo Gross, depois de o noticiar, faça raccord para uma Chloe Sevigny nos antípodas do romance? E não será também curioso que uma Chloe Sevigny dez, seja seguida de uma nove e outra oito, como se querendo fugir ao romance fôssemos descendo até o encontrar de novo?

Mulheres nuas. Raccord banal, este. Há três maneiras de meter mulheres nuas no blog. Salivando, que é o mais que se encontra por aí: nem a mulher tem nome, nem o fotógrafo vale. Sublimando, com mais ou menos decoro: a mulher tem nome, e o fotógrafo, mesmo que o tenha, não vem ao caso (confere o exemplo de cima, aliás evidentemente artístico). E fazendo como o Afonso Bivar: toma lá o que querias ver, mas aguenta-te à bronca com a alta referência intelectual, ou pensavas mesmo que estavas a ver uma mulher nua?

A imaginação do centro

Há vinte anos, quando comecei a dar aulas em Viana do Castelo, uma viagem normal a partir de Braga, fora das horas de trânsito intenso, levava cerca de uma hora e dez minutos. Para além da estrada estreita e das curvas, havia que atravessar Barcelos, com a sua ponte medieval onde só se passava num sentido de cada vez, e a entrada em Viana fazia-se pela velha ponte que tinha dois ganchos, à entrada e à saída, parece que feitos de propósito para atrapalhar. Nos piores dias, cheguei a ler livros de poesia pousados no volante, enquanto esperava na longa bicha para entrar na cidade.
Com o andar do tempo, Barcelos e Viana tiveram novas pontes, e algumas curvas foram eliminadas. O tempo de viagem desceu para quarenta e cinco minutos, em velocidade de cruzeiro mas não respeitando o limite drástico de cinquenta que é o de quase todo o trajecto pela estrada nacional.
Até que desde o ano passado, de uma assentada, é possível fazer Braga-Viana inteiramente em auto-estrada, e segundo dois trajectos alternativos: Braga-Barcelos-Esposende-Viana ou Braga-Ponte de Lima-Viana. Trinta minutos, segurança, limites de velocidade inteiramente respeitados.
O que eram “ilhas”, são agora zonas metropolitanas. O que, entre outras coisas, permite toda uma outra gestão dos serviços públicos de altos custos. Mas isto exige pedagogia política. É que aquilo a que Boaventura Sousa Santos chamou a “imaginação do centro” — países menos desenvolvidos viverem segundo o imaginário consumista dos grandes países — pode explicar o sucesso destas acessibilidades: a auto-estrada Barcelos-Braga permite vir ao cinema, ao shopping, ao comércio local da capital de distrito, ou seja, permite que a periferia viva a vida do centro. Mas também poderíamos alargar o conceito àquilo que fica para cá dessa vivência: a grande cidade como centro é quase sempre entendida como consumo e lazer, raramente como alargamento da vida quotidiana. A vida como quotidiano é o local por excelência, e o local por excelência é aquilo que as pessoas imaginam como centro das suas vidas propriamente quotidianas. Isso leva-as a resistir e a não compreender que certos serviços que parecem pertencer a esse “quotidiano” possam ser deslocados para fora dele.
É o caso das maternidades. No espaço de uma geração, passou-se do parto em casa para o parto como uma especialização médica exigente e envolvendo meios sofisticados. Se ninguém hoje contesta a medicalização do parto, a compreensão dos meios envolvidos e a necessidade da reestruturação em curso já exigem alguma pedagogia. É por isso que o que se passa neste momento com a questão das maternidades é um péssimo indício: o governo explica-se mal, quer em termos políticos, quer em termos científicos (será tão difícil demonstrar que se este passo não for dado os níveis de mortalidade infantil voltarão a aumentar? não é isso que diz o relatório da comissão técnica?), as oposições sacodem a água do capote ou cavalgam a demagogia, e os autarcas lideram os instintos primários, reivindicando o direito sacrossanto de nascer na “terrinha”.
No paradoxo da “imaginação do centro”, aqueles que justamente pediam que o seu isolamento fosse cortado, recusam agora ser parte integrante desse centro, relativamente a serviços que tudo têm a ganhar em ser concentrados, permitindo pessoal qualificado em permanência e meios técnicos de ponta.
As maternidades são o primeiro passo. Ou muito me engano, ou as coisas vão piorar quando estiver em causa a reestruturação da rede do ensino superior. Manifestações de “mães do povo” são fáceis de arranjar, e também fáceis de esquecer. Mas a rede de ensino superior mexe com cargos e benesses de gente instalada, que não se manifesta na rua porque se mexe nos corredores partidários (embora seguramente vá mandar os estudantes para a praça, como sempre fez). O governo que não se cuide, e que não chame as oposições às suas responsabilidades, e é bem capaz de se estar a aproximar da zona dos grandes sarilhos.

Interromper

Às vezes acontece-me. Vinda não sei de onde, a urgência de uma música, como quando temos fome e sabemos exactamente de quê. Ouço-a agora. Diante da relva cortada e da luz que muito devagar esmorece. Uma música que interrompe absolutamente tudo o que estava a fazer. Por isso.

Hoje dormi assim


Mas lá fora o céu está azul, adivinha-se o calor. O mundo é mais sensato que a minha agenda de trabalho.

Encontros improváveis

Ouvido amigo, há vários anos, indicou-me o encontro um pouco improvável de Archie Shepp & Horace Parlan. Primeiro em Trouble in mind (1980), muito bluesy, depois em Goin’ home (1985), muito gospel. Archie Shepp desceu do seu avançado free, mas não tanto que não tenha feito Horace Parlan subir do seu mainstream de alta qualidade. Quando penso no duo saxofone-piano é estes dois que ouço. E ouço-os bastante, conforme os fins-de-tarde da vida. Agora penso também no encontro do piano de Martial Solal com o trompete de Dave Douglas: este Rue de Seine (2006). A intelectualidade refinada de Solal e o ímpeto “juvenil” de Douglas (embora Moutain Passages tenha revelado uma secreta "espiritualidade" que talvez daqui a uns anos lhe dê outros caminhos musicais). Sem duelo, ouvindo um do outro e construindo um para o outro. Não é muito comum entre músicos de tão alta estatura e tão idiossincráticos. Vantagem nossa, bons mistérios da música.

Cinema: on theory

Filmar a felicidade? Sim, é possível. Um corpo, um rosto, uma voz, um lugar — eis a felicidade. Mas não a morte. Filmar a morte é apenas filmar o cadáver, real ou representado. O actor diz: estou feliz. E pode ser verdade. O actor diz: estou a morrer. Só pode ser uma metáfora.

Cinema: another theory

Filmar a morte? Sim, é possível. A morte é só dos que ficam sem os que partem. Dos que partem, nada sabemos. Dos que ficam, sabemos até ao insuportável. É só essa, a morte que temos. E sim, é filmável.

Receita para o blog do eterno presente

Luz, árvores e pedras. Ao longe, um pouco de mar. Mais ao longe, um pouco de céu. Ninguém. Sobretudo ninguém. Muito menos eu.

Multiplex 9

Spike Lee, Infiltrado

- Também concordo, prazer é a palavra certa, Leitora.
- Prazer do plot, e daquela Nova Iorque trepidante e múltipla que é a de Spike Lee. Não é a obra-prima, o filme que cresce por dentro de nós muito depois de o vermos, mas é a inteligência infiltrada no mainstream, isso sem dúvida.
- Tudo por culpa do plot, digamos assim. Uma coisa que, do ponto de vista policial, nunca é o que parece, faz com que os temas possam parecer aquilo que efectivamente são: capitalismo, terrorismo, racismo, enfim, a agenda própria de Spike Lee.
- E o gozo imenso em baralhar as referências. A da língua albanesa que se pensa ser russa, e que só é descodificado porque Nova Iorque é aquele caldo de culturas e línguas que se sabe, é homóloga daquela confusão que o filme nunca chega a esclarecer, e que se prende com a música inicial.
- Aquela música «meio-árabe» com que entramos em Nova Iorque e que nos atira logo para a questão pós 11 de Setembro?
- Essa mesmo. E sabe que mais, meu caro Luís? Não é nada árabe nem semi-árabe, é indiana.
- Indiana?! Essa agora!
- Bollywood puro, se quer saber.
- Isso é que é cultura, Leitora. Não a sabia tão orientalista.
- Que nada. Apenas internet. Mas diga lá que não é um achado de primeira? E o título da canção parece que é sombras...

Receita para o blog do eterno retorno

Escrever durante um ano. Nada sobre filmes ou livros, a não ser clássicos; nada sobre música a não ser da discoteca básica; nada, mas nada mesmo, sobre actualidade identificável.
Repetir depois, post a post, durante o ano seguinte. E o seguinte. E nunca nos darmos conta que já tudo foi escrito.

Multiplex 8

George Clooney, Good night, and good luck

— Mas porquê um filme e não um documentário? McCarthy está em discurso directo, é ele próprio. O actor que dá corpo a Edward R. Murrow também reproduz fielmente o que Murrow disse. Há uma obsessão de fidelidade até aos mínimos detalhes. Que se passa aqui? Não digo no filme, mas no confronto que ele faz com a actualidade de Bush. Que se passa aqui?
— Boa pergunta, Leitora. Alguma pista?
— Só se for a de que os americanos são muito dados à ritualização das palavras dos pais fundadores.
— E?..
— É como se todo este episódio pudesse aparecer como o pai fundador de uma outra ideia de televisão e de media.
Give me de speech, como eles dizem?
— Mais ou menos. Quando as coisas se afastam demasiado do objectivo inicial, é preciso ouvir o discurso fundador de novo, re-ligar.
— Só que hoje as coisas exigem outra abordagem, parece-me. As coisas da televisão, que não as da chamada liberdade de expressão. Fora isso, que é importante... Intenções nobres, Leitora.
— Pois. Mal não fazem, mas...

Passagens

Vão assim em conjunto, Leitora, os seus links e o acrescento aos meus. E desta vez aprendi, creio eu. Tão simples, afinal, nem sei porque não resolvi logo a coisa da primeira vez. Mas a iliteracia tem as suas renitências, não se lhe pode levar a mal, apenas insistir com paciência.
Há um pouco de tudo, como na vida. Alguns amigos. Alguns que conhecemos de lugar nenhum, nem sequer de nome ou de outras escritas. Alguns de quem gostamos muito, outros cuja adversidade prezamos, outros ainda em quem apostamos. Andando e vendo, como sempre. E agora de volta ao trabalho. O subterrâneo? Porquê, o subterrâneo? Ora, que pergunta, porquê o subterrâneo...

Tudo ligado por desvios

Chema Madoz

Ainda é cedo para desesperar. Isto de ser-se intelectual é uma paleta tão vasta quanto os mil cambiantes das coisas agridoces. No mínimo. Uma hipótese: fazer com o Sebald o que aqui se faz com o Dostoiévski. É um mero exemplo (que quase metia ursinhos, imagine-se só como a rede funciona por si mesma).

Freud, 7 de 7 (terminal)


Às vezes, um charuto é só um charuto
. Outras vezes, é mesmo proibido.

Freud, 6 de 7 (agnóstica)

Tenho um lápis do Freud Museum. Nunca o afio, nunca escrevo com ele. É preto. O meu teclado é branco. Pego no lápis quando o teclado se mostra relapso. O teclado amansa logo. É sempre mais fácil escrever do que vasculharem-nos os recônditos. Ou dito de outra forma: é mais fácil saltar para o abismo por iniciativa própria e gritando que desejamos voar, do que empurrarem-nos para lá e morrermos de medo um momento antes de nos apanhar a mão que nos salva. Porque isso existe, sermos salvos. Por quem e para quê, isso já é conversa ociosa.

Freud, 5 de 7 (arquitectónica)

Desejo sugerir, com hesitação, mas, espero, alguma seriedade, que a famosa divisão da consciência psicológica humana - id, ego, superego - deve muito à divisão em cave, quartos e sótão da casa da classe média vienense na viragem do século XIX para o XX. (George Steiner, Nostalgia do absoluto, p. 25) Considere-se agora, com maior hesitação mas igual seriedade, estas casas mais modernas, as de desmultiplicação de volumes (é assim que se diz?), em que os dois pisos, sem cave e sem sótão, dispõem dos acidentes de terreno de modo a cada piso ser térreo. E também os prédios, independentemente da sua altura, que fatiam por apartamento o ser térreo na vertical. Id, ego e superego estão agora no mundo, não mais nas casas/pessoas. É todo um programa evolutivo para a espécie humana. Platitude ou sublime? Só outros virão a sabê-lo. Quando a resposta for já irrelevante.

Freud, 4 de 7 (deitada)

O divâ, tal como o vemos no Freud Museum de Londres, é uma peça de requintada perversidade. Aparenta conforto e abandono, mas as suas cores quentes não enganam quanto às várias transferências que induzem. A psicanálise é realmente conversa de cama, e quem quer que já tenha tido conversas dessas (de cama, quero eu dizer), sabe que só é possível dizer verdades profundas. Mesmo aquelas mentiras para compor a figura, vai-se a ver e já foram ou virão a ser verdades. E a figura nunca fica composta. É por isso que não é possível mentir ao psicanalista.

Freud, 3 de 7 (violenta)

O inconsciente mata por banalidades. E o corredor até à consciência é curto e a porta frágil.

Freud, 2 de 7 (nada sibilina)

As chamadas digressões e contradicções de Freud, aquela coisa de ele pegar num assunto aqui, largá-lo acolá porque vai atrás de outra coisa que lhe parece mais interessante, retomá-lo ali para dizer quase o contrário, largá-lo para outra coisa ainda, reencontrá-lo diferente, nunca concluir — tudo isso só incomoda espíritos fracos. Eu já tinha lido Agustina quando comecei a ler Freud, por isso não me deixei incomodar. Freud é um escritor: a partir daí percebe-se tudo muito bem.

Freud, 1 de 7 (sintomática)

É bizarro que a pessoa que melhor me conhece, que sabe de mim o que nem eu próprio sei, tenha morrido muito antes de eu nascer.
Não é por nada, mas já agora, sendo as coisas assim, gostava que esse senhor tivesse sido mulher.

Mr. Roth

Obrigado pela notícia, André. O PEN/Nabokov Award fica bem a Roth. Embora fosse mais justo dizer o trocadilho do costume, mas aqui com pertinência superlativa: que Roth enobrece qualquer prémio. A começar pelo Nobel. Vai ver que ainda mo conseguirá noticiar. E não é por Roth, não, mas por aqueles que nunca o lerem e para quem o prémio é farol. Que se há-de fazer? Sou um tipo generoso, acho sempre que todas as pessoas têm direito a um bocadinho do inferno no regaço protector de umas quantas páginas luminosas.

A Leitora, no seu infinito particular (XVII)

Não diga nada. Deixe-me acordá-lo para o dia.

São nove e trinta, hora local. Tudo no seu lugar e em impecável concórdia. No vale, a pequena ribeira na qualidade de pequena ribeira. A vereda sob a forma de vereda desde sempre e para sempre. O bosque sob o pretexto de bosque por toda a eternidade, ámen. No alto, os pássaros no papel de pássaros em voo. Até onde a vista alcança, reina o instante. Um desses instantes terrenos aos quais se pede que perdurem.
Eis o seu dia, o gomo da laranja que lhe cabe. Há mais à volta. Não tão saboroso, alguma coisa intragável. Pode ser que sim, mas também que não. E não depende só de si. O seu poder é a cesura. No fim do dia, deste que lhe ofereço em bloco, talvez tenha conseguido esculpir o instante e faça do parágrafo o poema que ele é. Da sua Wislawa, através da sua Leitora, para que exerça a cesura. A arte da interrupção como arte de viver.

(instante 2) hoje dormi assim


(Uma vez que ainda faço parte deles,
deveria aparecer e dizer-lhe:
boa noite, ou seja, bom dia,
adeus, ou seja, bem-vindo
e não lhe poupar perguntas a nenhuma resposta,
caso digam respeito à vida,
ou seja, à tempestade antes da bonança.)


Wislawa Szymborska, Instante
Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves
Relógio D'Água, 2006

Pennies from heaven

Já viste aqui? Não te interessa? Mas olha melhor, repara: se até ao fim do mês fores a estas lojas todas, tens este desconto especial de aniversário por cada compra que fizeres. Já viste bem o ganho, hein? E para mais comodidade, tens esta linha de crédito que te aniversaria com um juro incrivelmente baixo! Não te interessa? Mas como, não te interessa?! É por causa de gajos como tu que a economia está nesta lástima. Se ninguém consome, como é que queres que o produto escoe? E se o produto não escoa, como é que queres que haja necessidade de mais produção e logo de mais emprego? De mais emprego, ouviste?! Não passa por aí? Mas que sabes tu disso, afinal? Dão-te o mundo e tu manda-lo para o caixote do lixo, que treta é essa? E não me mandes calar, que isto é uma democracia, ouviste? Uma democracia! E olha aqui mais este postal, que coisa tão// ……….

So...

Já sabias que ia acontecer. Mais ano menos ano, ia acontecer. Nada de grave. Estranho, apenas. Ou não bem isso, porque afinal já sabias. Mesmo assim, uma certa incomodidade. Todos os amigos e amigas continuam. Ninguém se esqueceu. E mesmo assim. Entre bancos lojas livrarias marca do carro hoteis ainda mais lojas video-clube agências várias discoteca hiper olha a bomba de gasolina também ainda mais lojas (lembras-te de ir a essa? nem eu) — entre todos, recebeste mais sms e postais de parabéns do capitalismo atencioso do que do teu inner circle. Mas ouve lá, por alguma razão lhe chamas inner circle, estás a ver? Não, não é só a proximidade. Na condição da semi-periferia, a coisa começa sempre na linguagem, ou já te esqueceste? So, what’s up duck?

Por exemplo

Thackeray está bem, meu caro Eduardo Pitta. Eu por mim punha mais Dostoievski, também em folhetins e tudo, mas será uma questão de sensibilidade, ou talvez nem isso, porque nada me permite presumir que tenha escolhido Thackeray acima de Dostoievski. Mas esse não é o ponto.
O ponto, por exemplo, é o senhor aí de cima. Na brisa da tarde ou à beira da piscina. Histórias bem contadas, para nos ficarmos por aí. Em português, não em jornalês ou telenovelês. E que por isso são muito mais que histórias bem contadas, como as histórias de Thackeray ou Dostoievski são mais do que histórias bem contadas.
Prefiro outros? Questões de sensibilidade, tão somente. E que merecem uma explicação mais longa, também ao meu caro João Paulo Sousa, mas que não pode ser agora. Uns e outros são poucos? Lamentavelmente, sim.
O resto, pela parte que me toca, é atribuir-me um poder e influência que de todo não tenho. Porque se tivesse, se o mundo fosse à medida dos meus desejos, alguém em português haveria de ter escrito, por exemplo, O mesmo mar, Expiação, Desgraça, Austerlitz, todo o Roth, e o Quignard, e... Acho que o Eduardo Pitta não se importaria, pois não? Ah, tivesse eu esse poder, e a ficção portuguesa contemporânea veria multiplicada por mil os melhores dos seus exemplos, uns e outros, e também aqueles que hipoteticamente desconheço ou não reconheci ainda. Sim, porque eu, quando me imagino deus, não me basta esse prazer contentinho de dizer está bem feito e aprovado, quero mais, que me surpreendam, me mostrem que a realidade é maior do que a minha imaginação, que... (corta, já não vem a propósito, regressa aos noventa romances, tens prazos).

A Leitora, no seu infinito particular (XVI)

Álvaro Lapa, Sonhos Rumores

— Era só para saber como estava. Já sei que não gosta da pergunta, eu própria a acho o seu tanto descabida, ele há tantos mundos no mundo de uma pessoa que uma pergunta assim redonda está mesmo a pedir a resposta esfarrapada do costume, mas enfim, era só para saber se... Irra, diga qualquer coisa, Luís, seja gentil, não me deixe para aqui a falar sozinha sobre nada.
— Acho que a Leitora queria perguntar-me qualquer coisa, mas não se atreve. Não sei porquê. E não lhe vou facilitar a vida, nem pense. No resto, estou bem, obrigado. Nem vejo razões para a sua preocupação, embora lhe agradeça o cuidado.
— Hum... Li a sua revista de blogues...
— Compridita, não é? Foi um pequeno intervalo de leitura.
— Mas tem visto os blogues todos?
— Todos como? São milhares, como sabe, que é lá isso de todos? E nascem e morrem todos os dias.
— E alguns renascem.
— Esses é porque nunca morreram. Sou um ateu por crença, mas tratando-se de blogs e não de religião, acho que tenho direito a ser um velho ateu positivista. Mas a conversa está-se a desviar. Nem sei bem de quê. Ouça, não quero ser indelicado, mas pergunta ou não pergunta?
— Hum... Realmente, acho que já o conheço um bocadinho melhor, agora.
— E?..
— No fundo, o Luís sabe qual é a minha pergunta.
— Quando se começa com esses fundos profundos, chega-se a dizer não importa o quê.
— Mas sabe. Responderá quando quiser, ou quando puder.
— Permite-me que sublinhe e enfatize, Leitora, que não me fez qualquer pergunta?
— Sublinhe e enfatize à vontade, deus me livre de lhe tirar esses direitos retóricos.
— Anh, não percebi bem...
— O quê?
— Houve um espessamento na sua voz, não percebi o que disse, qualquer coisa sobre retórica, foi isso?
— Se calhar era eu a sublinhar pelo meu lado. Mas não se preocupe, não foi nada de importante. Depois conversamos.
— Ouça. (pausa) Obrigado por não ter perguntado. Cada coisa a seu tempo. E obrigado por ter ligado. Farei um pouco mais de terapia breve, tudo ficará bem. Volte às suas coisas, sim? (pausa) Estou?.. Leitora? Estou?!..
— Sim, estou aqui. Estou aqui.