Houve uma história que o Ademar contou, era o resumo talvez de um romance, talvez de um filme, em todo o caso era uma história de exemplo. Dois homens que se conheciam já bem depois das eternas amizades adolescentes, que se acompanhavam em longas e silenciosas caçadas. Uma amizade masculina sem confissões, sem construção de memórias, sem consolo para o futuro.
Foi esse o arquétipo. Contudo, nenhuma das razões que subjazem a esta amizade tão perfeitamente romanesca foram as nossas razões. Não éramos avessos à confissão, à importância crucial e por vezes cruel da memória, à necessidade de consolo — apenas tínhamos outros interlocutores para essa parte da vida. Cada família tem os seus equilíbrios, e por acordo tácito o lugar da nossa amizade foi fundado nessa espécie de silêncio com que se percorrem alguns espaços do mundo. Tanto faz que sejam os grandes espaços em que se procura a caça, como na história de exemplo, ou o pequeno campo e a eira em que jogávamos futebol, como de facto aconteceu connosco. Breve que fosse o jogo, era sempre esse longo olhar que pousamos sobre o mundo, e onde tudo repetidamente acontece pela primeira vez: a força e o cansaço, a paragem e a corrida, o instinto e a inteligência. E sempre, o princípio e o fim.
Futebol inteiro, era assim que dizíamos.