48 # 3

“Os esconderijos são inúmeros, a salvação é só uma, mas as possibilidades de salvação, por sua vez, são tantas quantos os esconderijos.” [Kafka, Aforismos, Assírio e Alvim, trad. de Álvaro Gonçalves, p. 50]

A salvação é não nos cortarem das nossas possibilidades. E as nossas possibilidades são o nosso panteísmo individual, intransmissível e portátil — onde quer que te escondas, para onde quer que vás, o que podes acompanha-te como uma sombra. Aí hiberna a tua angústia, aí habita a tua alegria. Também certeira morte em tempo incerto.

48 # 2

A raiz limpa, mas a gengiva escura de inflamação. O túnel está aberto, a operação de drenagem decorre imperceptivelmente. Devia haver uma metáfora qualquer nisto, até na precaução do antibiótico perante o lugar de passagem — a porta aberta para a expulsão do inimigo é o convite involuntário à entrada de outro (e pior) inimigo. Mas tudo o que há é uma nova consulta marcada e o plano banal de fechar uma via de comunicação imprópria. A metáfora é aí mais fácil: um dia a morte bater-te-á à porta, e não será para pedir licença para entrar. Mas os factos da vida não são metáforas da vida.

48 # 1

40
A selva escura, vejo-a agora nítida aos 40.
Numa antecipação do caminho que não meço
e que se abre de tão denso à minha frente,
numa escuridão que é apenas ignorância,
despropósito, aventura —
certeira morte em incerto tempo.

Luís Quintais, Mais espesso que a água, Cotovia, 2008, p. 91

Voltando atrás # 5

Sim, a voz e todas as suas nuances num reportório por demais clássico, e por isso mesmo desafiante. Mas este não é o meu mundo, e seria um espectador absolutamente exterior se não fosse o desvio jazzístico, sobretudo a cargo de um piano de gosto impecável e inteligência compositiva apurada. Na procura dos créditos, encontro afinal dois pianistas: o conhecido e excelente Gonzalo Rubalcaba, e o para mim completamente desconhecido Jaime Calabuch Junitus. Difícil dizer quem voa mais alto. Como o google foi de nula ajuda, fica aqui a pergunta: alguém sabe quem é (ou vem sendo) Jaime Calabuch Junitus?

Arrumando cd’s (alguns ficam sempre fora do lugar)

Tempo

Numa esquina que não reconhecerás,
Miles esperará por Bill, Bill esperará por Miles.

Luís Quintais, Mais espesso que a água, Cotovia, 2008, p. 35

Breves # 4 (este dente, estes trabalhos, esta humidade)



Antony and The Johnsons, The crying light

Sol de dias frios

Um aforismo pode ir a todo o lado. Os aforismos de Kafka, na sua esmagadora maioria, vão apenas ao paraíso inicial e por lá se mantêm, pensando a expulsão, a permanência do éden, o trato com o mal. Em todo o caso são aforismos, não fragmentos de um tratado que não se chegou a completar ou que tenha sobrevivido truncado. Não pressupõem sistema, apenas deambulação. Não são órfãos de uma teologia já impossível, antes pesquisadores num mundo realmente tão estranho quanto parece sê-lo. O seu movimento é sobretudo afirmativo, sem aquela retracção que faz o tom de negatividade dos seus romances. Se há escrita solar em Kafka, é aqui que a encontramos. Sol de dias frios, mas sol.

Poesia & música

Amandine Beyer, violinista e direcção de Gli Incogniti


MENTE
Uma coisa-movimento,
assim, ao abrir a porta, e dentro
a música de a lembrar.

Luís Quintais, Mais espesso que a água, Cotovia, p. 15

Quando tudo está feito, o remédio é fazer tudo de novo como se fosse a primeira vez

Pois

O fim é um lugar seguro, eu sei. Pouco importa se hoje é ou não a véspera desse dia.

O estado deste blogue (como se isso interessasse a alguém)

Uma mancha dentro do nevoeiro é apenas parte do enevoado. A prudência aconselha que circule devagar ou que encoste em lugar seguro.

Voltando atrás # 4

Comecei a ver com desconfiança e pensando que talvez o fast-forward fosse funcionar muito. Mas a primeira cena mostrou-me que havia filme. A raiva com que ela agride verbalmente o namorado que decide acabar a relação por achar que não está à altura das suas expectativas, é um achado: vemos essa raiva em camaralenta, as palavras não se ouvem mas alguns insultos percebem-se na articulação dos lábios, e em off há a narração dele, tão impassível quanto auto-destrutiva. É um desses filmes escritos, essa mistura sempre perigosa de um texto que vamos ouvindo com imagens que não se limitam a ilustrar a história.
A galeria das personagens secundárias é óptima, com a sua bizarria cómica, por vezes terna. A história acaba bem, e não há particular mal nisso. E o núcleo fantasmático do filme deixa-nos com um leve sorriso sonhador: ele, que pinta e desenha, tem a capacidade de congelar o tempo, imobilizar as mulheres que escolheu para modelo nas suas tarefas quotidianas, despi-las um pouco na sua beleza recatada, retomar depois o mundo com esse acrescento secreto e imperceptível de uns quantos traços de uma paixão benigna.
Fantasia masculina com desculpabilização artística? Talvez. Mas não será por acaso que uma das personagens femininas diz que gostaria de ser amada por um pintor: eles estão atentos à beleza que mais ninguém vê.

Cookin / Relaxin / Workin / Steamin

Começa na pop requintada, acaba no jazz entranhado — uma dupla de fazedores como não há muitas, a verdade é essa (mas a realidade é outra: um país semi-periférico, musicalmente, é nada — mais que terceiro mundo para entrar na world music, menos que país central para entrar na vanguarda ou no mainstream que realmente vende).

PS: por contágio semântico de títulos (que não por programa musical), Chocolate reenviou-me às míticas sessões do Quinteto de Miles Davis de 56. Chocolate, o álbum, deixa-se bem descrever pelos títulos de cada uma dessas sessões; chocolate, a coisa comestível, também.

Voltando atrás # 3

Então será assim: o fio condutor da unidade curricular (tosse bolonhesa) teoria da literatura já está entregue ao Senhor Breton, e constitui um muito engraçado pertinente conciso novelo de dez perguntas dez. Toda a demais bibliografia propriamente teórica deverá ser considerada como o casario restante deste outro bairro. As reuniões gerais terão o Senhor Breton como anfitrião. Bem entendido, em havendo tão alta inteligência que tanto consiga, sempre se poderão socorrer do bom do Senhor Breton para conseguirem, como ele, não-responder às suas (extremamente decisivas) dez perguntas. Considerem este o primeiro e último aviso.

Voltando atrás # 2

Parece coisa de outro tempo, ou de um despojamento de quem já chegou bem ao miolo desta música. É um desses milagres que ainda vai havendo, mas que trazem em si um enorme medo pelo que virá a seguir: como poderá não desiludir quem assim começa?

A neve como pretexto

"Melancolia, aquilo que nos fica entre os dedos quando o esplendor das coisas reais e visíveis se escoa ou confunde com o diáfano Tempo, sósia do Nada."

Eduardo Lourenço, As sais de Elvira e outros ensaios, Lisboa: Gradiva, 2006, p. 44

A vida com árvores # 7

Aguentas-te? Queres um cházinho? De folhas de laranjeira, claro, para reforçar os genes de família.

A vida com árvores # 6

Agasalhar para o Inverno.

A neve está a passar por aqui

Em 1994 fez-nos uma breve visita. Hoje veio com mais vagar, pela animação até parece que pode ficar o dia inteiro.

Voltando atrás # 1

O processo de luto é um corte. Algo nos foi arrancado, partiu, desapareceu — esse é o facto. O luto é deixar partir, deixar desaparecer, deixar arrancar. É cortarmo-nos daquilo que já nos foi cortado — e continuar a haver vida. É por isso que o processo de luto pode ser hoje, involuntariamente, uma crítica radical do capitalismo planetário. Quando tudo se baseia em mais qualquer coisa, acrescento novo, acumulação sofisticada de capital — eis que alguém trabalha dolorosamente para perder, como única forma de ganhar a restante vida.
Um banco de jardim, um desses bancos onde se sentam os sem abrigo, os párias, os namorados perdulários, os contemplativos — é lá que se senta esse homem que tem de aprender a perder. Não admira que esse banco de jardim, esse homem agora no banco de jardim, se torne involuntariamente o atractor de uma complexa teia que envolve uma fusão de grandes empresas. O sistema corre para a perdição dos que o habitam, essa é a regra profunda do seu funcionamento — quem triunfa, triunfa sobre inúmeros derrotados. Eis que aprender a perder se apresenta como uma chave possível para o êxito — mas o que será um êxito assim?
O filme não responde nem teria que responder — até porque o não sabemos ainda. Sabemos dos excluídos, dos que se auto-marginalizam, dos que triunfam segundo as regras aparentes de sempre — do resto, não sabemos ainda. Mas nesse interregno do luto alguma coisa de diferente se traça. Que depois parece perder-se, é certo. A essa diferença o filme chama caos calmo. Depois do interregno, o caos da angústia, também conhecido pela designação simples de normalidade.

Jerusalém múltipla

Jordi Savall, Jerusalem

Soa como um requiem pelo que deveria e poderia ter sido. Mas é um canto pela possibilidade que sempre há de a vida se parecer um pouco com a verdadeira vida. Haverá ainda tempo?

Breves # 3: ainda vai ser 2008 por algum tempo