E à despedida apenas disse a frase de sempre, nada serve

É verdade que à distância as coisas se vêem melhor. Alguém imagina que um livro se possa hoje intitular Todo o alfabeto dessa alegria? Mas naquele tempo fazia mais que sentido. Naquele tempo de 1985, ainda fazia sentido todo o alfabeto e essa alegria. Entrados nos 90, José Amaro Dionísio reuniu todos os seus livros num só livro: O nome do mundo (1996). Era já um livro em contra-ciclo: o nome deixara de importar, apenas as marcas se ouviam; o mundo não era chamamento nem apelo, apenas mercadoria omnipresente.
Depois o autor desapareceu dos livros. Não de todo da escrita: este livro reúne precisamente pequenos textos (seis) de 94, 98, 2002, 2007 e 2008. O título Nada serve aparece em 2002. Acrescentemos-lhe uma parte do “Post-scriptum” que o encerra, e nada mais é necessário:
“Era só o que queria dizer. Depois da morte hei-de talvez acrescentar que cheguei a amar a perda do que amei, mas será tarde demais, o tempo é afinal uma possibilidade tão inútil como resto.”

*O título do post vem da dedicatória do livro: “para o Rui Athayde Ferreira, que me convidou para jantar na última noite, e à despedida apenas disse a frase de sempre, nada serve”

Quem sabe? Talvez o Génio apareça...

Dia 28 de Novembro (sexta-feira), às 21.30h, na Biblioteca Florbela Espanca, em Matosinhos, apresentarei o livro de Pedro Eiras, Os Três Desejos de Octávio C..

O génio sentou-se num tapete que apareceu naquele instante e explicou, com um bocejo:
— Obviamente, Octávio, tu não és o primeiro. Já pertenci a muitos donos desde que a sábia Sulamite me forjou. Já fui de imperadores e de escravos; os escravos quiseram ser poderosos e os imperadores quiseram ser eremitas. [da contracapa]

Podemos começar por aqui, por esta falsa simetria, por esta falsa reversibilidade. Porque ser imperador não é necessariamente o mesmo que ser poderoso, e ser escravo não é efectivamente o mesmo que ser eremita. Podemos começar por aqui, quer dizer, pela falsa simetria e pela falsa reversibilidade de todo o desejo. Mas pensando melhor, talvez não seja bom começar por aqui.

Blindnesse [je ne sais quoi]


“Afirmou que fotógrafos não fazem muita coisa, apenas 20% do trabalho, e que quem faz uma boa fotografia na verdade é a cenografia, a direção de arte ou os próprios atores. Para ilustrar sua tese (da qual discordo, ainda mais no caso dele), completou que sempre que enquadra a Rhonda, a stand in* da Julianne Moore, sente que tem alguma coisa faltando em seu trabalho, mas quando chega a Julianne e ocupa o mesmo lugar, na mesma posição, o quadro parece iluminar-se, a fotografia se completa e a imagem passa a parecer “cinema” A tal da presença, do je ne sais quoi.”
[*Os stand in são as pessoas que, depois do primeiro ensaio, enquanto os atores vão se maquiar, ocupam seus lugares para que o fotógrafo possa iluminar a cena e ensaiar o movimento da câmera.]” (p. 17).

“Por sorte, nesse filme estamos livres desse mal, aqui podemos sempre contar com um último recurso que funciona como uma espécie de colete-salva-vidas, infalível: tudo na cena está ruim? Corta para um close da Julianne Moore. Aí é cheque-mate.” (p. 67).

Fernando Meirelles, Diário de Blindness, Famalicão: Quasi, 2008

Blindness [confere]


“Reflexos o tempo todo, imagens abstratas, mal enquadradas, desfocadas ou superexpostas completarão a receita da desconstrução do espaço (ou da visão?) neste filme.” (p. 27).

“Em cenas muito difíceis, alguns atores estão usando lentes de contato que bloqueiam 100% a visão, deixando-os livres para se concentrar na intenção da cena sem se preocupar em parecerem cegos.” (p. 28).

Fernando Meirelles, Diário de Blindness, Famalicão: Quasi, 2008

121 exercícios de estilo

Freud, pois claro, era um grande escritor. Também um grande escritor, sobretudo um grande escritor — eu sei que (algumas d’)as águas se dividem algures por aí. Entre os que viram um sistema (com as suas revisões, mas um sistema) e os que viram um estilo que nele estava pensando. Digamos, entre Lacan (o sistema, apesar do estilo) e Barthes (o estilo, apesar da tentativa de sistema). Adam Phillips é um descendente da linha “sobretudo um grande escritor”. Há nele um estilo que está pensando. Aqui, por aproximações sucessivas sempre na ordem do paradoxal. Quem quer que tenha dedicado um simples pensamento à monogamia sabe que a coisa se presta (talvez até em demasia) ao paradoxo. É um desses conceitos que não existe sem a sombra activa, cúmplice e movediça do seu reverso. Mas é também um desses conceitos que erradamente restringimos a uma esfera específica, neste caso a da relação amorosa e do contrato marital. Freudianamente, Adam Phillips vai mostrando que os mais apertados nós deste paradoxo estão antes ou à volta dessas situações para as quais convocamos o termo monogamia; e que situações na aparência idênticas obrigam a leituras bastante distintas. Como sempre nestes casos, não se sai de um livro assim mais ou menos monogâmico, mas com a consciência salutarmente irónica de que, sejamos quem formos, não nos é permitido sermos estranhos a isso. Mais vale, pois, arranjarmos um estilo para lidar com a coisa.

Finitos

Nessa gasta história do fim, há quase sempre um lado da questão que nos recusamos a encarar: que um escritor possa ter uma lúcida percepção de que tocou certo limite seu, e que dali para a frente não produzirá mais nada de significativo. Pode um escritor enganar-se sobre isso? Claro que sim. Mas também pode acertar com toda a serenidade: afinal somos finitos, na nossa existência e no modo como a inventamos para nós mesmos.

Blindness

No que à partida seria mais difícil, o filme de Fernando Meireles não soçobra. Seria difícil objectivar em imagem a dupla condição imaginária do leitor de “Ensaio sobre a cegueira”: imaginar-se na pele dos que têm a cegueira branca e imaginar o caos da quarentena e da cidade. Uma câmara trepidante, alguma desfocagem que “resolve” em branco, e um cenário de cidade caótica sobriamente verosímil são um bom análogo dessa dupla condição.
Onde o filme falha, é na dimensão político-poética que o livro ensaia. A importância das mulheres está diluída, o gesto ético da mulher do médico que mata o chefe da camarata dos maus aparece no filme como uma simples e justificada vingança, a moral do grupo em nenhum momento é enunciada, o cão das lágrimas não se percebe que está ali a fazer, a confissão de amor do velho da venda preta tem exactamente o sentido contrário, relativamente ao grupo, que tem no livro, etc. Certo que o filme não tem de ser fiel ao livro, mas o que o filme elimina, ou as suas opções, retiram ao filme a possibilidade de um confronto mais forte com o presente que é o nosso. A alegoria torna-se mais etérea, menos incisiva, mais hollywood. A cegueira, não o ensaio sobre ela. Um sobressalto de alma, não um pensamento que interroga almas (enfim) sobressaltadas.

Isso que vem depois, a metáfora, a vida em geral

Há quem escreva para matar a literatura que o fez nascer, até descobrir que a relação necessária da literatura ao mal é tão ingénua e pueril como a relação da literatura aos bons sentimentos.
É nesse momento que qualquer coisa fica pendurada no vazio como uma coisa qualquer.
Depois é sempre a descer. Há quem volte a escrever, quem filosofe a partir do trabalho em agências funerárias, quem não entre em histórias conhecidas.
É tudo? Provavelmente, não. Mas à vida em geral isso nada interessa, os indivíduos são danos colaterais, a vida em geral é simplesmente isso que vem depois da vida em geral.

Ainda a vida em geral

"Um enterro de burgueses para a pequena burguesia e um enterro de pequena burguesia para o proletariado, reside nisto o segredo todo, não só das empresas funerárias, da vida em geral."
[Roberto Bolano, Estrela Distante, Trad. de Jorge Fallorca, Teorema, p. 145]

Ainda uma metáfora

"De repente apareceu o mar. Um sol fraco iluminava as praias que se iam sucedendo como contas de um colar sem pescoço, suspenso no vazio."

[Roberto Bolano, Estrela Distante, Trad. de Jorge Fallorca, Teorema, p. 144]

Isso que vem depois

"Esta é a minha última transmissão do planeta dos monstros. Nunca mais voltarei a mergulhar no mar de merda da literatura. Daqui em diante escreverei os meus poemas com humildade e trabalharei para não morrer de fome e não tentarei publicar."

[Roberto Bolano, Estrela Distante, Trad. de Jorge Fallorca, Teorema, p. 137]

Sim, isso que vem depois. Sendo que o antes nunca acaba e o depois está desde sempre começando. Como alguns sabem.

Noite

Não te descalças?
Sim, claro.
Contas-me uma história?
Sim, claro.
Páras de dizer “sim, claro”?
Era uma vez uma história que andava atrás de um pajem por montes e vales...
Isso não foi ontem?
Mas agora é com música de fundo, baixinho. Era uma vez uma história que era pajem de um pajem e andava por montes e vales com o seu chapéu e a sua cabeça...

Manhã & tarde

O pajem do pajem

Nunca se pode ter a certeza. É isso que sempre digo, nunca se pode ter a certeza. Levamos o livro para a cama, vamos indo até onde o sono deixa, depois dormimos já quase a tropeçar numa frase. São fins de dia pacíficos, usuais, se o termo não estivesse gasto talvez pudéssemos dizer simplesmente: fins de dia perfeitos.
Mas nunca se pode ter a certeza. Podem acontecer coisas um pouco estranhas: “Ele, o chapéu, assenta nela, a cabeça, como a tampa enviesada de um caixão, ou como a tampa de latão de uma velha frigideira enferrujada.” (p. 7). Mas que raio se passa aqui?.. Espera, há mais, não bastava este estranho par cabeça-chapéu, há agora também um autor que põe a história no encalço do par: “É uma tarefa cansativa, esta de contar histórias. Sempre a correr atrás de um rapazote romântico, pernalta e bandoleiro, e sempre à escuta de tudo o que ele canta, pensa, sente e diz. E o diabo do pajem não pára quieto, e nós temos sempre de ir atrás dele, como se fôssemos na verdade o pajem do pajem.” (p. 8). É por isso que eu digo que nunca se pode ter a certeza. O sono já foi desconvocado, amanhã alguém as vai pagar, mas nisso não haverá novidade nenhuma: a factura é sempre de quem lê.

Remarkable, indeed

Mistérios dos deuses, que as duas bandas jazz mais inventivas e progressivas da actualidade “pertençam” a duas senhoras: Carla Bley e Maria Schneider. Mistérios aceitáveis pelo bem que nos fazem, cada uma a seu muito diferente modo.
Appearing Nightly, todo ele mas sobretudo a longa suite “Appearing Nightly at the Black Orchid” (quatro movimentos, vinte e quatro minutos), é Carla Bley como exemplum e como vintage: o humor desenfreado da citação e do desvio (e são tantos que nem vale a pena começar a lista), as ligações inusitadas mas que compõem coerentemente uma história, as massas fortes e os solos acutilantes, pequenos mas audíveis recantos líricos, e a afirmação quase selvagem da alegria de viver.

Com higiene e sem dor, design avançado

Gente que sabe avisou-me que, para efeitos de recibos verdes, tinha voltado a rubrica “Criação Artística e Literária”, com um novo código. Passei nas Finanças a saber da coisa. Abriu-se a página na minha inscrição e a senhora informou-me triunfante: está a ver aqui, foi feita a substituição automática, onde estava “Editores de obras de sua autoria” já está “Criação Artística e Cultural”. Enquanto meditava com admiração nos grandes benefícios do Simplex, e ponderava a bondade de algumas reformas socráticas, o rosto da senhora contraiu-se em culpa. Segui-lhe o olhar no écran: no segundo campo de inscrição, onde dantes constava “Outras Actividades”, o Simplex tinha colocado sem hesitação: “Aplicador de tatuagens e similares”.

Re-escrever

Não tive ainda a experiência de participar num congresso em que o livro de actas é entregue antecipadamente, não há apresentação de textos mas discussão do conjunto do livro com os autores. Como ideia, parece-me ter algumas vantagens sobre o modelo do congresso clássico, que muitas vezes resvala para uma sucessão o seu tanto autista de leituras. Mas tem um contra decisivo, que este colóquio me evidenciou sobremaneira (como poucos até aqui, valha a verdade): a impossibilidade de re-escrever o texto a partir da discussão gerada. A fórmula de equilíbrio, e creio que mais produtiva, seria dispor-se de uma proposta de texto inicial, dada a conhecer antecipadamente, haver o encontro, e depois algum tempo para apresentar uma versão final.

A imensa minoria

É possível continuar a re-ler, a uma tão curta distância (trinta anos é ainda pouco) um romance sobre o qual já tanto e tão diferentemente se escreveu?
Sim, foi possível. Resultado em livro na próxima primavera. Obras para todas as estações.

Finisterra


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Quase gourmet

Não é só não ser uma prioridade, há também uma pontinha de destino a que já me fui habituando. Apesar do frio e da chuva miudinha, havia fila longa para a crepe canette e para o pierre hermé. Normal. Regressei à minha naturalia de serviço: fruta biológica, leite de soja, essas coisas assim.

Companhia nocturna # 39

A forma como alguns textos se alteram com a música que lhe doamos. De súbito, Finisterra pareceu-me ter a verdade de um jardim abandonado, finalmente livre, de uma natureza que os nossos olhos não podem consentir nem verdadeiramente ver porque seria contemplar o nosso desaparecimento irremediável. Numa serena catástrofe invertida e sem gritos.

Charme

Há muito, muito tempo que não via tanta mini-saia por metro quadrado como em Paris. No Outono. Com bastante frio e alguma chuva. Mais do que ser sexy, a mini-saia deixava uma vaga promessa de intimidade mundana, como se qualquer ponto da cidade fosse desaguar num elegante e acolhedor foyer: um espectáculo, uma conferência, um longo jantar de convívio.

De vez em quando [adenda]

Noite alta, fui sacudido (é o termo) por este pensamento tremendista: a democracia portuguesa também teve o seu imprevisível, o vaudeville santanista. Mas antes de ficar acordado em triste e amarfanhada comparação, o sono socorreu-me com um pequeno pormenor técnico: ido a votos, foi o que se sabe. A lição a extrair daqui é que se não falas da política rasteira à luz do dia, ela chateia-te no sono até acordares. A ver se me lembro hoje, quando for tomar café, de exigir que apanhem essa cambada do BPN — preciso duma noite descansada.

De vez em quando

Bush pai foi sucedido por Clinton, Clinton foi sucedido por Bush filho, e Bush filho quase era sucedido por Esposa Clinton. O que é diferente na democracia americana é que de vez em quando o imprevisível da democracia funciona.

Totem e tabu

No metro, hora de ponta, aquela forma desesperada como as pessoas se agarram ao varão frente a cada porta. Uma contenção animal, uma suspensão momentânea da identidade e dos códigos de intimidade: proibido pensar o quão perto está o outro e o potencial de violência que aí se inscreve. Apelo remoto a uma horda cujo inimigo é simplesmente haver gente entre dois trajectos.
Depois sai-se, respira-se fundo, retoma-se a normalidade da vida.

WC Lectures # 32


O início de outra série deslumbrante, a de esta espécie de "pássaro".
E depois há aquelas histórias tipicamente goreyanas, que trazem o inquietante que não é completamente desconhecido para dentro da normalidade da vida, desarrumando tudo daquele modo que não podemos classificar nem de fantástico, nem de poético, nem de alegórico. Na verdade, o único modo razoável de classificar o que ali se passa é chamar-lhe modo goreyano.

WC Lectures # 31

Os primeiros quatro gatos da série de cinquenta. Ampliar para ver melhor o pormenor da colocação do número em cada gato. A inventividade é ilimitada.

WC Lectures # 30

Uma série genial em Amphigorey again é este "Catgorey" — a começar logo pelo desenho do título.

WC Lectures # 29

Este foi encontrado cá. Em Paris não havia Gorey: no original nada, e as traduções, que existem várias, esgotadas faz tempo. Não o põem na banda desenhada, mas no romance anglo-saxónico. Também não está mal, se bem que... Whatever.

Colóquio/Letras

A Colóquio Letras é, desde há vários anos a esta parte, a melhor revista de literatura portuguesa que se edita entre nós. Parte fundamental desse estatuto deve-se à direcção de Joana Morais Varela. É com estupefacção que leio notícias sobre o afastamento de Joana Morais Varela do seu cargo e instauração de processo disciplinar em sequência da sua reacção.
Não sei que novo projecto a administração da Fundação Gulbenkian poderá ter para a Colóquio Letras e como pode dar-se ao luxo de prescindir de alguém que realizou o trabalho que Joana Morais Varela realizou. Para já, tudo indica estarmos perante uma má notícia para o estudo da literatura portuguesa e um caso de manifesto esbanjamento de recursos humanos especialmente qualificados.

Companhia nocturna # 38

Com uma economia de meios e uma simplicidade desarmante — o que também evita que os seus setenta e quatro anos se façam notados —, Abdullah Ibrahim revisita alguns dos seus temas num encadeado de vinte e dois movimentos que se ligam como se fossem uma única tapeçaria. Ninguém no jazz tem este sentido da melodia construída como simples figura rítmica progressivamente desvelada, capaz de nostalgia cantante ou de efusividade serena.

Obama

O céptico não desdenha da esperança, apenas está infinitamente preparado para a possibilidade da desilusão. No resto, está na festa — porque festa é festa, e esta já ninguém nos tira.