Zeca Afonso # 2

Globalmente, bem melhor do que o disco de Jacinta. Arrisca menos, mas a sua maior fidelidade faz-se por desvios bem doseados e direccionados, que deixam uma marca pessoal indiscutível. Entre o fado e o jazz, um caminho só seu para um Zeca Afonso cada vez mais de nós todos.

Zeca Afonso # 1

Nem tudo é conseguido. Mas por vezes a voz de Jacinta parece andar por outros timbres, e fica-se à espera do que por aí poderá vir. E quando é conseguido, se admiramos o cover, rendemo-nos por inteiro à arte de composição de Zeca Afonso. Estamos a assistir em directo à consagração de um autor tal como ela deve ser feita —prolongando a sua obra. Às vezes parece que não, mas ainda vai havendo restos de justiça neste mundo.

Sabedoria das nações # 4

E tu não queres aproveitar este teu estado de descanso forçado para fazeres o balanço de 2007?
Ui, tu nem fales em balanços, ao chá que tenho bebido é desastre pela certa.
Também não é preciso ser tão escatológico, homem de deus!
Ui, tu nem fales em deus, que...
Ok, ok, vê lá então se dormes. E lembra-me para amanhã não passar por cá. Sujeitinho irritante, irra!

Sabedoria das nações # 3

Com tanta coisa no mundo e tu a desfazeres-te em ranho e baba... Que despautério, menino! Mas tu também pouco ligas ao mundo, não é? Não és jornal diário? E que tem isso que ver com o caso? Mas o melhor é deixar-te em paz, ou ainda me pegas essa coisa... Que desagradável. E que falta de chá, vir com essas coisas para a blogosfera. Francamente!..

Sabedoria das nações # 2

Oh, tadinho, quase a ter febre... tadinho mesmo... quem não te conhecer que te compre... hehehe...

Sabedoria das nações


É da sabedoria das nações que, para alguns gajos, uma constipação é apenas um justo pretexto para ir ao pote de mel sem complexos de culpa. Ah, e para pôr o sono em dia. Corpo é Sábio...

Mas tu não era para estares noutro lado? # 4

E sempre vais?
Não.
Adianta alguma coisa?
Bem, talvez vá.
Em que ficamos?
Ficamos fora de prazo.
Fala por ti.
Nem isso, nem isso.

Mas tu não era para estares noutro lado? # 3

Alegadamente?
Sim, alegadamente. Conheces outro modo de viver, nestes tempos?

Mas tu não era para estares noutro lado? # 2

Manténs a esperança?
Que coisa cretina e estúpida.
Como dizê-lo?
Não digas. Irritas-me. Profundamente. Nem imaginas quanto.
E se imaginasse?
A mesma cretinice e a mesma estupidez.

Mas tu não era para estares noutro lado? # 1

Há um limiar?
Sim, há um limiar.
O único problema é que só se sabe depois. Às vezes, muito tempo depois.
Às vezes, nunca.

Oscar Peterson (1925-2007)


De poucos músicos “anti-introspectivos” eu consentiria que me pudessem levar a atravessar o vasto escuro da alma. Mas viajei muito no comboio da noite. O suficiente para reconhecer em muita da sua música essa pulsão bluesy que não é só ritmo mas também forma da dor e da travessia.

Hoje é sábado, já não está sol, e a gente sempre vai pensando um pouco

mas entretanto é melhor ires comendo as rabanadas, certo?..

Hoje é sábado, está sol, e não quero saber de desgraças

Pensando bem, já não era mau se a liberdade fosse a consciência da necessidade. Muitas vezes não é. Apenas determinismo que desconhecíamos. Herança secreta. Mas é como digo: hoje é sábado, está sol, e não quero saber de desgraças.

post scriptum # 10

Já nos despedimos mil vezes. E mil vezes mais nos iremos despedir sem o sabermos. As histórias passadas continuam sem nós. É a única maneira de nos podermos ocupar da vida que resta.

post scriptum # 9

Não falei na morte. Não acho que se morra aos bocadinhos, nem de uma vez só. Acho que não se sabe. Nem a experiência ensina. Mas estou bastante seguro de não ter falado na morte.

post scriptum # 8

As saídas de emergência dão para o mesmo beco da saída normal. Daí vai-se para toda a parte.

post scriptum # 7

Não te esqueças dos procedimentos.

post scriptum # 6

Podes fugir mas não te podes esconder? Não é verdade. Como a carta roubada, estás à vista de todos, por isso invisível. E se alguém te reconhecer, é porque a carta roubada afinal não és tu — como poderia o roubo prescindir do segredo?

post scriptum # 5

Já nos despedimos mil vezes. Percebo agora que algumas delas foram definitivas.

post scriptum # 4

Não falei na morte. Tenho a certeza. Teria sido desnecessário.

post scriptum # 3

Não há saídas de emergência. É absolutamente seguro que todos sairão.

post scriptum # 2

Não te esqueças dos procedimentos.

post scriptum # 1

Podes fugir mas não te podes esconder? E que importa? Como se alguém andasse à tua procura.

A mim próprio, por exemplo, só mesmo por obrigação

"A muito poucas pessoas que não eu deve — assim o espero — importar a minha vida particular, coisa que não gostaria de ter mas que afinal tenho, como quem veste um pijama para a travessia da noite — oh! estas minhas incorrigíveis alusões culturais — ou lava os dentes, pelo menos, ao começar o dia."
Ruy Belo, no prefácio do post abaixo

Political statement [e não só, e não só...]


Em 16 de Fevereiro de 1972, Ruy Belo estava em Madrid. É lá que escreve a “Explicação que o autor houve por indispensável antepor a esta segunda edição [de Aquele grande rio Eufrates]”. A qual explicação se termina por este comentário que, visando embora um facto miúdo e concreto, tem óbvias ressonâncias de political statement: “Madrid, uma das cidades do mundo mais distantes de Lisboa”. Ontem como hoje, ontem como hoje...

Ou outono com sol # 4

Esta infância é tua. Eu só tenho passado.

Ou outono com sol # 3

De quase tudo poderia dizer que são “coisas que vão e fingem regressar / mas já não nos pertencem”. Não há nisso mais que a angústia normal da vida que passa e aquela melancolia que pode ser a grande barragem contra o ódio à existência. E essa liberdade inteira, inútil mas pacífica, de não dar ao futuro os desejos que não cabem no presente.

Ou outono com sol # 2


Quando o saber de experiência feito não se transforma em sistema e guarda intactas as suas contradições. Quando o muito que falhou não é um saco de ódios mas a difícil aprendizagem da compaixão. Quando a poesia já pouco interessa mas não temos ainda melhor maneira de falar. Quando a luz da madrugada sabe que a mais longa noite ainda está por vir.

Ou outono com sol

AGOSTO

Em tardes como esta o mar é uma
bênção,
o gesto azul de um deus,
a memória de um tempo sem tempo.

Em tardes como esta cada instante
sabe a eternidade
e o horizonte, este horizonte
é um sinal do que ainda pode ser
isso a que chamam beleza:
uma onda que nasce enquanto outra
morre desfeita em espuma
levando atrás de si o nosso medo,
a nossa esperança demasiado humana,
o pacto que selámos e quebrámos
com os sonhos mais antigos, os que um dia
foram apenas nossos,
mas são agora o mar, sem nome nem
destino,
coisas que vão e fingem regressar
mas já não nos pertencem.

Fernando Pinto do Amaral, A luz da madrugada, p. 100

Seria bem mais perverso

Agora que o génio não é tão evidente porque já conhecido, talvez seja tempo de dizer que o que há de retro nesta música não conta a história de uma inocência recuperada ou a ironia da citação distorcida. Dei comigo a pensar que o Lynch de Blue Velvet, hoje, bem podia usar Devendra em vez de Badalamenti.

Rumores # 7

Se não queres ouvir mais, porque é que queres ouvir mais? Põe-te a milhas. Ostensivamente. É a única maneira.

Rumores # 6

Como é que eu sei que não é verdade? Um pequeno pormenor lateral, uma questão de detalhe, uma coisa perdida no meio da história: ele disse que tu levavas uma camisola branca. Tu não tens nenhuma camisola branca. A não ser... a não ser que fosse o teu disfarce...

Rumores # 5

O rumor é como aqueles mails que prometem reiteradamente o aumento do pénis: se fossem verdade, e se os tivesse seguido a todos, tinha um coiso maior que a tromba de um elefante.

Rumores # 4

X conta-me uma história sobre Z sem saber que eu sou Z. A história é falsa. Eu vou fazendo perguntas de modo a pô-lo na pista da falsidade, mas X não desarma, mostra-se até um pouco ofendido com a minha resistência. Cada resposta cria novas falsidades. Cansado do jogo, revelo a minha identidade. X riposta: Ah, agora percebo porque estás a negar tudo!

Rumores # 3

No primeiro minuto, ouves porque seria falta de educação cortares a conversa. No segundo minuto, o incómodo equilibra-se com a perversidade de saberes. No terceiro minuto, já estás a pensar nos pormenores que acrescentarás para tornar aquela história ainda mais interessante.

Rumores # 2

O rumor com interesse de conhecimento. X conta a Y um rumor sobre Z no intuito de perceber, pela reacção de Y, quais são as verdadeiras relações entre Y e Z. Percebe-se que é assim se X está mais atento a Y do que empolgado pelo veneno do próprio rumor.

Rumores # 1

Não percebo. Será que quero saber, para mo virem assim contar?

Fazer a experiência


A receita de Lynch. Ver o filme no cinema: as luzes que descem, o grande ecrãn, o som alto — and you go into a world...
Nada mais — e seria preciso? Apenas: you go into a world and have that experience.

Ocorrência # 7

- Tenho de te perguntar outra vez: como pudeste? Como foi possível? Como é que...?
- Pára!
- Deve ser mesmo grave, para repetires o ponto de exclamação...
- Pára.
- Ou mesmo o ponto final, que também é bastante definitivo.
- Pára
- Assim já é mais o teu estilo
- pára
- melhor ainda suficientemente indeciso a própria paragem constitui uma continuação
- ...
- eu sabia
-..
- looser
-.
- eu sabia
-
- looser

Ocorrência # 6

- Nome, nacionalidade, idade, profissão, estado civil, peso e altura.
- E para que queres saber tudo isso?
- Por causa destes versos: “Hoje atravessas / isso a que todos chamam / realidade”*.
- E atravessaste? Hoje?
- Não é atravessaste, é atravessas. O continuado no tempo.
- Não fujas: atravessaste, hoje?
- Sim.
- E como pudeste? Como foi possível? Como é que...?
- Pára!
- Deve ser grave, para pores ponto de exclamação...
- Pára.

* Fernando Pinto do Amaral, A luz da madrugada, pag. 90

Ocorrência # 5

- Estás sempre a dizer o mesmo, já reparaste?
- Já.
- Imensamente previsível e monótono, já reparaste?
- Já.
- A armar ao suspense ético sem jeito nenhum, já reparaste?
- Já.
- Isso é sinal de um grande vazio, sabias?
- Sim.
- E as pessoas vão desertar, sabias?
- Sim.
- E ela vai desertar também, sabias?
- Sim.
- E então?
- E então, nada.

Da perfeição etc & tal

Ocorrência # 4

A mulher arrastava a perna pelo corredor, toda vestida de negro. Magra, alguma coisa de epiléptico. De repente parou, deu meia volta e começou a andar em sentido contrário. Falava ao telemóvel. Quando nos cruzamos estava a gritar: "Mas como foste capaz? Como pudeste fazer isso?" Afastei-me rapidamente para não ser puxado para aquela história. As frases podem ser iguais, mas isso não quer dizer que as histórias o tenham de ser.

Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 8 [justificação de faltas]


Ocorrência # 3

- Ouve isto: “rastilhos que ateaste / em nome da euforia descartável / que foi sempre o desejo”.
- Poesia?
- Sim. Fernando Pinto do Amaral, A luz da madrugada. Tu achas que o desejo é uma euforia descartável?
- Acho que há uma idade em que descobrimos que o segredo do desejo talvez seja esse.
- Talvez?
- Porque quando nos descartamos do desejo, alguma da nossa pele vai-lhe pegado. E dói. Mas o corpo, já sabemos, segue a lógica da decomposição.

Ocorrência # 2

- Fizeste isso?
-Fiz.
- Mesmo?
- Sim.
- Mesmo mesmo?
- Sim.
- Mas como foste capaz?
- Não sei.
- Não sabes?
- Não.
- Mas tens mesmo a certeza que fizeste isso?
- Quantas vezes mais é que me vais perguntar? Fiz. Eu. Sozinho. E não sei como é que fui capaz. Fim da história.

Elling e Hobgood

Laurence Hobgood (à esq.) é o pianista. Simplesmente perfeito como acompanhante. Nas faixas 10-12, nada seria tão surpelativo sem a sua presença: saber estar nos intervalos da voz sem anular o silêncio da voz.

Elling e Luiza [adenda]

Claro que o que falta na fotografia é a clara ausência de Luiza. Mas quem sabe, sabe. Há o que é mais que a dor, e nos destrói. E há a dor quase invisível, lateral, que não existe na fotografia mas apenas na possibilidade de aquela fotografia poder ser outra bem diferente.

Elling e Luiza

Há medida que vou re-ouvindo, todo o disco melhora. Um pouco mais compassivo com o açúcar de harmónica & sax, quase já nem os noto agora, até porque em verdade não são muito impositivos. Mas sobretudo, passado o primeiro arrepio de ouvir alguém pronunciar desajeitadamente o português do Brasil, é preciso reconhecer que a versão de Luiza, de Jobim, é um daqueles gestos de grande senhor que não se importa de correr todos os riscos. Podia ser, como já foi, um poema de Lautreamont dito em francês. Agora nem há essa caução tremendamente literária, nem Luiza é mainstream bossa-nova. É apenas uma canção de uma melancolia desvastadora a que Elling empresta um tom gutural que arranha em sílabas inesperadas — como essa coisa que dói por dentro e vem à tona em zonas sensíveis que até aí desconhecíamos.

Ocorrência # 1

Já é difícil aceitar que a maioria dos nossos defeitos sejam o reverso das nossas virtudes. Mas mais difícil é distinguir quais dos defeitos são inaceitáveis perante nós próprios, por mais que queiramos as virtudes que os acompanham.

Em todo o caso, vou tentar controlar os estragos, ok?..

I went to a psychiatrist once. I was doing something that had become a pattern in my life, and I thought, Well, I should go talk to a psychiatrist. When I got into the room, I asked him, “Do you think that this process could, in any way, damage my creativity?” And he said, “Well, David, I have to be honest: it could.” And I shook his hand and left.
David Lynch, Catching the big fish. Meditation, consciousness, and creativity, p. 61.

Diferença de idade # 5

E tu porque escreves 23 e 47, assim tão numérico e preciso, e para os trinta dizes trinta e poucos, assim tão extensivamente vago?

Diferença de idade # 4

De qualquer modo, é assim que as coisas são. Tiveste 23, trinta e poucos, agora 47. Não há moral nenhuma nisso. Apenas um modo diferente de bater com a cabeça na parede.

Diferença de idade # 3

Ou se és um pouco mais sábio, mais resistente, mais estóico, mais sensato, mais experiente, mais qualquer coisa — ainda não é suficiente. Fazes sempre merda. Vistas as coisas de um certo ponto de vista. Esse, precisamente.

Diferença de idade # 2

Não é que sejas mais sábio, mais resistente, mais estóico, mais sensato, mais experiente, mais qualquer coisa. Não és. Mas pedem-te tão desamparadamente que o sejas, que tens de inventar uma maneira de sê-lo.

Diferença de idade # 1

Aos 23 anos fazemos algumas perguntas desprevenidas, mas realmente não queremos ouvir as respostas. Aos trinta e poucos aprendemos a não fazer as perguntas cujas respostas não queremos saber. Aos 47 as respostas chegam, mesmo que não tenhamos feito qualquer pergunta. A moral da história são quatro: a) as respostas não são boas; b) de nada valia tê-las ouvido mais cedo; c) em qualquer idade estás só; d) o que se sabe na diferença de idade é o desespero raso, sem epopeia e sem moral da história.

WC Lectures # 20 ou Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 7





Agora a sério, meus caros, há mais manteiga de amendoim ou não?..

Elling, 10 a 12

No jazz vocal masculino, Kurt Elling está no meu topo. Pode-se dizer que a concorrência não é muita, e regra geral não chega onde Diana Krall chega mais que bem (e há nela uma inteligência do piano que não é para todos). Mas Kurt Elling não anda por essas paragens. Se bem que Nightmoves oscile nos acompanhamentos: uma harmónica manhosa, um quarteto de cordas não menos manhoso, um sax demasiado açucarado, alguma coisa a roçar a bossa-nova (aquela faixa em brasileiro, que estranho... mas se fosse em francês já não o seria tanto, por maior distância natural face à nossa língua). Mas a voz não transgride, nunca arredonda, nunca desfaz as rugosidades que são o seu fascínio e a sua vida própria. E depois há esse milagre da faixa dez — um original de Jarrett que desagua com toda a naturalidade em In the wee small hours —, que se prolonga até ao fim do cd, por mais duas faixas. Elling e o trio clássico, que é como devia ter sido todo o disco à falta de gente mal-comportada na harmónica e no sax. Não é que o cd não seja bom, que é, mas as três faixas do fim, realmente superlativas, mereciam algo mais antes.

A garden at night # 2

Sim, eu sei, às vezes toco o limiar dessa espécie de má-fé. Devia deixar de fazer crítica literária assim, e escrever o romance que acho que deveria lá estar.

A garden at night # 1

David Lynch, Bébé électrique en apesanteur, 1986

“And I had a painting going, wich it was of a garden at night. It had a lot of black, with green plants emerging out of darkness. All of a sudden, these plants started to move, and I heard a wind. I wasn’t taking drugs! I thought, Oh, how fantastic this is! And I began to wonder if film could be a way to make paintings move.”
David Lynch, Catching the big fish. Meditation, consciousness, and creativity, p. 13.

Multiplex 34

- Parece-me que o império tem as suas prioridades bem definidas, mas isso não é novidade para quem sabe o que foram historicamente os impérios.
- Pois. Interessa o soldado, no seu tempo de vida útil, e o trabalhador, também no seu tempo de vida útil. No mais, os ricos colocam a regra do jogo: cada um toma conta de si.
- Como eles dizem, qualquer ideia de estado social conduz em linha recta ao comunismo. E o comunismo só aproveita aos loosers.
- O que mais me assusta é a tranquilidade com que eles colocam a pergunta: e porque haveriam de ser os vencedores a pagar a factura dos infortúnios de todas as espécies?
- De facto... A ética do império é outra, e ao menos nisso a administração Bush foi clara. Talvez por isso não houve, desta vez, a acusação de que Michael Moore manipulava os factos. Simplesmente, eles convivem bem com estes factos.
- Mais do que isso. Até têm uma palavra de ordem para todos os pobres: enriqueçam, agarrem a vossa parte do sonho americano!
- E o resto é a história banal de todos os perdedores, dizem eles: desculpas e invocações de piedade.
-Quase que os ouvi dizer: Fuck them all!
- E ouviste... Como sempre, o Império cria os seus bárbaros.
- E não admira que os bárbaros tenham sido bárbaros. É só uma questão de tempo.
- Coisa tão tristemente repetitiva...

O terceiro inconcluso

Tu sabes, essa porta não devia abrir para esse lado. Devia ser ao contrário, exactamente ao contrário. E nem preciso lembrar-te que deveria ser assim desde o início e que desde o início que não é assim. Agora, das duas uma: ou entramos de vez, ou saímos de vez. Ou, vá lá, andamos trocados até ao fim.

Horários de trabalho (também aplicável a ECTS, horas tutórias e coisas que tais)

"Bushnell Keeler, the father of my friend Toby, always had this expression: «If you want to get one hour of good painting in, you have to have four hours of uninterrupted time.»”
David Lynch, Catching the big fish. Meditation, consciousness, and creativity, p. 11.

Os livros & outras coisas # 2

E o pouco que pude ler/ver/ouvir, como soou diferente. Não por profundidade acrescida ou por um súbito sentido secreto enfim revelado — apenas porque em cada coisa era nítido que alguém vivia esse corpo-a-corpo imemorial com o que nos é adverso, com aquilo que mesmo acolhendo-nos não é da precariedade da nossa condição.
Sim, eu sei, é insustentável habitar por muito tempo esse vórtice devorador. Se sobrevivemos, rapidamente voltamos à “crítica” do que lemos/vemos/ouvimos. Não há mal nisso, bem entendido, e há até muita coisa boa. Mas convém saber de que estamos a falar.

Os livros & outras coisas # 1

Sem dúvida, há esses momentos em que tudo o que lemos e aprendemos parece não nos servir de nada para o que temos de enfrentar. Mas sendo momentos verdadeiros, a sua verdade não está inteira nesse nada saber. Porque depois, algum tempo depois, quando pensamos o que foram as nossas reacções, os nossos sentimentos, o modo de lidar, apercebemo-nos que tudo o que éramos e sabíamos se deslocou um pouco, se torceu um pouco, mas que nem a deslocação nem a torção seriam alguma vez possíveis sem o que éramos antes disso. Como aquele atleta que calculou o salto para cair no lugar do costume, mas no lugar do costume alguém pôs uma tábua com pregos, e ainda no ar se torce para cair um pouco ao lado, não em equilíbrio perfeito, não com aquela elegância de um corpo são em mente sana, mas com todos os sentidos despertos, vivos, sobreviventes, como se de repente o sentido de tudo o que treinou não fosse o saltar e o cair perfeito mas a possibilidade de escapar à súbita degradação do perfeito.

WC Lectures # 19

Um sábado (quase) como outro qualquer (finalmente)...

Nada mais havendo a tratar

Havia. Haveria sempre. Mas há momentos em que as fórmulas nos protegem da nossa própria queda metafísica. Nem sempre com vantagem, diga-se em abono da verdade, mas a verdade não é propriamente matéria para estas “reuniões”.

Um despedimento por acentuação

É como eu disse, de noite todos os gatos são pardos. Enfatizando pardos.

Um convite por acentuação

De noite todos os gatos são pardos, disse ela. Enfatizando noite.

Da insatisfação, claro

Eu percebo o alcance da picada ne varietur... E Tomaz de Figueiredo como um do mais insatisfeitos ficcionistas portugueses, eu concedo. A coisa é dele, e presunção e água benta cada um toma a que quer. (Mesmo assim, em insatisfação, o Vergílio Ferreira é capaz de não lhe ficar atrás, e o Diário lá está para o atestar). Agora dos maiores, isso já é seu, e deixa-me de queixola aberta — e olhe que eu li, academicamente tive que ler, para mal dos meus pecados e gáudio sádico de um professor que achava que a contemporaneidade tinha a modos que acabado com o Aquilino...

Vinte e sete

Recarreguei o telemóvel. A Tmn recompensa o meu gasto oferecendo-me um bilhete grátis na compra de um bilhete normal nos cinemas Lusomundo, de segunda a quinta, nos próximos dez dias. Tive direito a vinte e sete mensagens, cada uma seu bilhete. Vinte e sete, ok? De segunda a quinta, ok? O socialismo da abundância imaginava para o futuro a cada um segundo as suas necessidades, o capitalismo do consumo, quando oferece, oferece muito mais do que nos é possível consumir no imediato. Depois — bem, depois tem de ser comprado, claro.

A caixa # 2


Braga é uma cidade periférica, disse eu à procura da caixa. JMF, via mail, diz-me que julga saber que aquela coisa forrada a pano é um exclusivo da FNAC para Portugal... Bom, atenua, mas a tese mantém-se, e haveria alguns milhares de pormenores para o comprovar. Em todo o caso, aquilo não era exactamente uma queixa, porque quem não está bem muda-se, e eu até já me podia ter mudado e não quis. Adiante, pois, e quanto a Fnac, sempre fica mais à mão tê-la aqui ao pé de casa. E a caixa, aquele vermelho da capa e o forro aveludado a preto — que coisa tão ironicamente cardinalícia, não é? E claro que isto só poderia ocorrer a um gajo que, mesmo não ligando puto a essas coisas, vive há demasiados anos em Braga...

Contrapartida sinalagmática

A aluna (em voz baixa): nós queríamos saber se o professor estaria interessado em contrapartidas sinalagmáticas...
Eu: contrapartidas quê?.. como é que você consegue usar uma palavra, sem ser da gíria, cujo sentido eu desconheço? que nota teve? sabe mais destas palavras?
A aluna (com impaciência): professor...
Eu: sim?
A aluna (com desconfiança): o professor não sabe mesmo o que a palavra significa?
Eu: não. não é nada indecoroso nem menos próprio, pois não? espero bem que não.
A aluna (com desalento): professor...
Eu: sim?
A aluna (indo embora): nada, nada.
Eu (entre dentes): vou ter de ir ao dicionário, está visto.

Elipses # 2

De volta. A doença muda-nos, naquele sentido forte de que, se não mudamos de vida, a doença muda-se em definitivo para dentro de nós. Mas essas são outras histórias.

Dizia-se

Pensava-se que implodia. Não era verdade. Explodia ao retardador. Quando a causa já tinha sido esquecida e as consequências arrumadas no sótão. Tinha crises metafísicas, dizia-se.

A caixa

Braga é uma cidade periférica. A coisa nota-se em pequenos pormenores. A caixa Dylan, por exemplo. Impossível encontrá-la por aqui. Apenas o duplo com o mais conhecido do melhor. Ainda perguntei nos hiper que tinham o duplo, ficaram a olhar para mim — que caixa? E aquele calafrio quando entrei na recentíssima Fnac-Braga e nos expositores apenas vislumbrei os minguados duplos. A caixa?, perguntei com medo da resposta. Estava noutro lado. A ver se ao menos em matéria de discos e encomendas dos ditos... E apenas falo das coisas de maior circulação. A ver...

Quatro da manhã

In the real dark night of the soul it is always three o’clock in the morning.
(F. Scott Fitzgerald, em epígrafe de A luz da madrugada, de Fernando Pinto do Amaral).

A noite escura da alma adequa-se aos timings próprios de cada um. Três da manhã é a hora de quem ainda não começou a dormir nem o conseguirá fazer como forma mínima de esquecimento. Quatro da manhã, que é a minha hora, é já depois do primeiro sono, um acordar brusco no meio da vida a que momentaneamente me tinha subtraído. Creio que não morrerei nunca de álcool e tabaco e longas noites de insónia. Antes um ataque súbito ao acordar, ou quando no meio da vida abrimos os olhos para a realidade e ela nos fulmina. Mas o post não era para chegar aqui, onde é que me desviei?

Ainda o Outono

À minha memória, este é o mais longo Outono. Dois dias de chuva e vento e as árvores já estariam nuas. Por contraste com seis anos atrás, em que o Inverno foi súbito, precoce, infinitamente comprido para além de qualquer primavera. Há registos. Isto não chega a ser uma elipse, não exige decifração, nem são sinais de nada a não ser deste Outono doce como forma de vida das cores e da luz. O tempo ensina. A gente pouco aprende. E quase sempre demasiado tarde.

Elipses

A fórmula nunca me foi totalmente convincente, mas posso reconhecer-lhe alguma pertinência: o escritor é a voz (ou dá voz) aos que não têm voz. Neste momento, interessa-me sublinhar o contraponto disto: o escritor não deve usurpar a voz dos que querem falar pelos seus próprios meios. Sobre os últimos acontecimentos que muito em contraluz este blog deixa sub-entender, não serei nem mais claro nem mais insistente. Eles serão relatados em primeira pessoa noutro lugar, pela voz própria de quem é o centro involuntário dessa história. Sou acompanhante, de alguma forma sobrevivente, e há aí também uma história. Mas não antes de a história principal ser contada. Os que sabem do que estou a falar, compreendem que, eticamente, esta é a coisa certa a fazer; os que não sabem do que estou a falar, compreenderão que penso ter motivos fortes para algumas elipses.

Como se

Enquanto andarmos por aqui, é sempre “como se”. Certo, há metáforas melhores do que outras. Ou que nos tocam em lugares do entendimento que nós nem sabíamos que tínhamos. Ou que nos desentendem e nos atiram para fora de qualquer coisa. Mas siga.

Lenz Buchmann: cirurgião, político, morto

Nas séries de Gonçalo M. Tavares, a tetralogia O Reino, dos livros negros, é a casa do romance. Aprender a rezar na era da técnica, o romance que encerra a série e chega às livrarias na próxima semana, é um exemplo superior de romance reflexivo, servido por uma escrita depurada, quase cruel na forma como torna legíveis certos dispositivos da vontade de domínio que piedosamente escondemos de nós próprios. Lenz Buchmann é o nosso tempo visto à contra-luz de uma época não tão desaparecida quanto isso.
Um grande romance de um definitivamente grande escritor.
Um excerto em pré-publicação:

(…)
A sua equipa médica nas operações mais complicadas nunca ultrapassara as sete pessoas, e agora ele via-se envolvido em reuniões em que as suas declarações eram escutadas por dezenas de colegas de Partido. Estes encontros políticos revelavam uma espécie de energia magnética que funcionava ou não dentro de um grupo, ligando os seus elementos constituintes de uma ponta à outra.
Este sentimento de comunidade era uma das invenções deste novo tempo em que Lenz entrara. Não tinham sido discutidos pressupostos, ou seja, homens vindos de sangues completamente distintos, de famílias que nunca se haviam cruzado na cama ou nos grandes pactos de rendição ou de declaração de vitória, estavam agora, lado a lado, parecendo, afinal, ter combatido durante séculos no mesmo exército.
Esta ilusão — que o era — não cegava Lenz. Mesmo nas reuniões em que a paisagem parecia ganhar uma fisionomia única e em que a necessidade de ligação entre os homens se aproxima do limite a partir do qual só o amor físico pode saciar, Lenz mantinha-se em dois pontos: estava ali, em baixo, a afinar as armas em coro com os outros e, simultaneamente, em cima, num posto de vigia, num posto secreto, escondido, e, por que não dizê-lo, num posto que revelava uma traição, pois nele tinha acesso visual, não ao campo do inimigo mas ao campo dos próprios elementos aliados.

214 # 5

É uma realidade muito clara. De certeza que numa outra vida foi uma alucinação.

214 # 4

Era um grunhido. Um gemido? Não, um grunhido. De metal. De metal? Sim, de metal. Meio carro e meio dor que já não nos pertence e circula a alta velocidade.

214 # 3

Como está o mundo lá fora? Continua a ser Outono. Mas como está o mundo lá fora? Não muito diferente daqui, apenas em maior.

214 # 2

Continuar para além das partes.

214 # 1

Recomeçar por qualquer parte.

Directiva Antecipada

Para os fins que se revelarem necessários, quero/queremos tornar pública a “Directiva Antecipada” abaixo transcrita. Sem mais quaisquer comentários, por agora.


DECLARAÇÃO / DIRECTIVA ANTECIPADA

Eu, LAURA FERREIRA DOS SANTOS, na plena posse das minhas faculdades mentais, elaboro esta Declaração como uma directiva/solicitação a ser seguida se me tornar definitivamente incapaz de participar em decisões que digam respeito à minha saúde do ponto de vista médico. Estas instruções reflectem a minha firme vontade de recusar tratamento médico nas circunstâncias abaixo assinaladas, embora, infelizmente, estas Directivas Antecipadas ainda não tenham valor jurídico em Portugal.

. Peço ao pessoal médico que me esteja a assistir (se isso for possível, peço-o directamente a quem tem vindo a ser ao longo dos anos o meu clínico geral, Dr. ........) que, caso eu esteja numa condição mental ou física incurável ou irreversível, sem expectativa razoável de recuperação para uma existência com qualidade de vida, não faça uso de meios ou tratamentos que apenas prolonguem desnecessariamente o meu morrer.

. Estas instruções aplicam-se caso eu esteja:
a) numa situação terminal;
b) em estado vegetativo persistente; ou
c) se o meu cérebro se encontrar irreversivelmente danificado e nunca mais puder recuperar a capacidade de tomar decisões e expressar os meus desejos.

Solicito que os cuidados de saúde a serem-me então prestados se limitem a manter-me confortável e a aliviar a dor, aqui incluindo qualquer dor que possa derivar de não se recorrer aos meios de “tratamento” que recusei, ou de se ter posto fim ao seu uso. De um modo especial, peço que, nas circunstâncias indicadas, não me deixem morrer com a sensação de sufocação e não me deixem entrar em delírio ou alucinações, evitando qualquer outra situação que provoque mal-estar ou dor.

. Se estiver nas condições acima indicadas, penso concretamente o seguinte acerca das formas de “tratamento” / esforço terapêutico abaixo especificadas:
. não quero “ressuscitação” cardíaca;
. não quero respiração mecânica (ser ligada a ventilador);
. não quero nutrição e hidratação artificiais (desde que retirar a hidratação não me aumente as dores ou dificulte a sua eliminação);
. não quero antibióticos.

De qualquer modo, reafirmo veementemente que, nessas circunstâncias, solicito o máximo alívio da dor, mesmo que apresse a minha morte.


Em caso de dúvida, sobretudo em relação ao que eu poderia entender por “expectativa razoável de recuperação” e “qualidade de vida”, constituo o meu marido, Luís Alberto Seixas Mourão, como meu representante, pela total confiança que tenho nele e pelo conhecimento que tem do meu pensar.
A não ser que eu tenha anulado estas directivas/solicitações numa nova Declaração, ou que claramente tenha indicado que mudei de pensar, o que aqui acabo de escrever deve ser entendido como expressando a minha vontade.
Para as redigir, tomei como referência a “New York Living Will”, tal como vem apresentada no livro de Timothy E. Quill, M. D., A Midwife through the Dying Process, Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 1996, 237-8.

Braga, 26 de Agosto de 2003
Braga, 04 de Novembro de 2007 (reafirmação)

Que nada se sabe

Há momentos na vida em que tudo o que sabemos não serve de nada. A gente tenta agarrar-se a qualquer coisa e não há. Mas esses são também exactamente os momentos em que a inteligência mais conta. A inteligência mais nua e compassiva, disposta a recomeçar a história naquelas condições que não determinamos mas nos couberam na roleta russa.

Paris # 16

Quando se deixa uma cidade? Há a hora do avião, mas isso é só uma questão de transporte. E há aquele momento em que outra coisa vem ter connosco para nos dizer que é a hora de partir, mesmo que o bilhete de avião diga alguma coisa um pouco diferente.
Na loja, a estação de rádio saltou inadvertidamente. Percebeu-se a interferência e a súbita mudança de música. Bonnie “Prince” Billy soou com clareza: If you have no one, no one can hurt you. E eu ouvi com nitidez: If you have no life, nothing can kill you. Era o sinal para o combate.

Paris # 15

E o súbito encontro desta mulher deitada que sonha. Reconheci-a imediatamente, sem nunca antes a ter visto. Um corpo não é nada, o mundo que há nele é tudo.

Paris # 14



Giacometti no Centro Pompidou.
A súbita vontade de estudar e perceber profundamente como se vai das suas esculturas cubistas iniciais, cheias de uma volumetria que se agita num espaço delimitado, até a esse corpo fino que se desloca, tão frágil quanto decidido e indomesticável. Mas que de alguma maneira este foi o movimento do mundo que nos calhou — eis o que me parece evidente. Tão evidente, que não consigo ainda começar a explicá-lo.

Paris # 13

O colóquio? Torga vivo era suficientemente audível para induzir os termos com que a si mesmo se lia. Mas mesmo que o não fosse, a sua poesia e o seu diário são explícitos no modo como se auto-interpretam: o privilégio da identidade, do território, do “nativo”. É só agora que a leitura, liberta da tutela de um autor vigilante, encontra a pluralidade de Torga. Mesmo quando isso é feito contra o que Torga achava de Torga.

Paris # 12

Interessante o cotejo entre “A origem do mundo” e fotografias erótico-pornográficas da época que o quadro a seu modo reproduz. Parece-me que o lirismo terá consistido na ocultação da biologia mais pregnante (os grandes lábios) e na invenção de uma natureza púbica demasiadamente natural e livre (por contraste com o cuidado do aparo púbico de todas as fotos da época). Penso que será por isso que o quadro pode agora ser relido, perdido o seu impacto provocatório, como um exercício de sensualidade puramente pictórica: a pureza é quase sempre uma montagem sobre a rasura da biologia e a invenção de uma segunda natureza.

Paris # 11

Courbet no Grand Palais.
A fila do costume para os hapenning do costume. Mas não há ainda outro modo de fazer isto.
O quadro do cartaz promocional (imagem acima) não é um Coubert “típico”, mas é o Coubert que mais se aproxima daquele modernismo da arte com que a ideia de museu e de retrospectiva fez a sua aliança com o Grande Público. Para todos os efeitos, o Grande Público está ainda a acomodar-se ao modernismo da arte.
Pouco tempo e ambiente, de facto, para “sentir” as paisagens de Coubert. Não é que elas sejam da alma, que não são, cheias da sua empiria. Mas há nelas uma alma antiga a que não se chega imediatamente.

Paris # 10

O colóquio? Alguma coisa de profundamente estranho e bizarro em ler uma comunicação sobre Torga em francês. Sinto-me como aqueles cantores de ópera que aprendem a pronunciar as palavras de uma língua que não dominam. Aprendem de cor o sentido dicionarizado, calculando onde pôr as emoções segundo a semântica dessa outra língua, mas não têm a certeza em acto da coincidência do afecto com as sílabas exactas, o tom, o tempo. Esperam simplesmente que “funcione”.

Paris # 9

Também em Paris se pode dar a volta dos tristes em pleno coração da cidade. E há aquele desejo absurdo de sofrer que se desprende da noite, das sombras no côncavo alto dos prédios ou de candeeiros outrora vanguardistas e furiosos. Furiosos, eu disse furiosos? Isso foram dois loucos bem apessoados e de discurso torrencial. Com gestos eléctricos como um Sarkozy ainda mais acelerado.

O wc dos injectados

Um cintilograma ósseo, como muitos exames radiológicos, exige uma injecção de um produto de contraste. O Centro de Medicina Nuclear, pertencente ao Hospital de S. Francisco, no Porto, como é de lei, tem na sua recepção a planta das salas. Fica-se a saber que a sala A é uma sala de espera e o compartimento B um WC. Que a sala G é a “Sala de Espera dos Injectados” e o compartimento H o “WC dos Injectados”. São duas salas contíguas, com uma casa-de-banho a cada ponta. Indiferentes à arrumação meticulosa preconizada pelo mapa, injectados, não-injectados, familiares e acompanhantes, misturam-se com aquela inocência de nem saberem sequer que alguém os pensou em separado. Só mesmo um filósofo para fazer disto um post (ou para entreter a angústia com vagas elucubrações sobre panópticos “virtuais”).

Paris # 8

O colóquio? Como sempre, os três tipos de participantes. Os que não pensaram nada. Os que nos resumem o que já pensaram há muito tempo. Os que pensam diante de nós.

Paris # 7

Uma palavra bengala: donc... donc... donc...
Outra palavra bengala: voilá... voilá... voilá...
Ao fim de uns dias é como o arco do triunfo: a vida passa por baixo e aos costumes diz nada.