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Dear DR. LUIS MOURAO,

The run up to Christmas was even more hectic than usual this year - the not-so-nice side of the snowy landscape we enjoyed in England in December- and so the email I intended to write before Christmas did not materialise, but I didn't want to allow 2010 to end without sending you all an enormous THANK YOU for having supported us through the release of all the recordings we made of the Bach Cantata Pilgrimage, ten years after the tour and five years after the first release. It really meant so much to John Eliot, myself, and all the musicians who took part in this millennial adventure that so many bought into the idea and wanted to collect the CDs, and it is a good feeling to "turn the page" on the BCP and look to the future and many more Bach recordings still to come.

We haven't forgotten the promise to record the Ascension Cantatas - which we are struggling to schedule at the moment but will definitely come - and we are still in  discussions to acquire the cantatas released on Deutsche Grammophon (although probably most of you will already own them....), but for the time being I can announce that this spring we shall be releasing  a live recording of the St. John Passion recorded in the Königslutter Dom in 2003, with Mark Padmore as the Evangelist and many of the BCP main soloists as well as Bernarda Fink. We are also planning to record the Motets in the autumn, which will be released the following year.

An email from me would not be the same without some "boring" stuff, but I thought I would confirm that, although your subscription is now complete, as a BCP subscriber we will continue to offer you a discounted price and priority ordering on our future Bach recordings, and I shall email you before each release with more boring bits on how to go about it!

In the meantime I would like to send you our very best wishes for a wonderful New Year full of music and joy!

Isabella Gardiner
www.solideogloria.co.uk

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Dos tempos vindouros: não ficar morto antes de morrer.

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Feliz ignorância — aquela que de repente nos conduz a um autor que sempre lá esteve e não sabíamos. Vasto mundo. Esgotamento da arte coisa nenhuma, apenas cansaço nosso — da arte errada (pode acontecer) ou do errado de nós (acontece demais).

Driving Miss Laura # 30

Testamento Vital: um artigo e o próximo livro.

20

19

Agora eu sou a mãe e tu és o filho. A história na antecâmara do seu desenlace.

18

A paciência meticulosa da morte, a indiferença com que adia para tempos que lhe sejam mais convenientes.

17

E à quinta temporada descarrilou de vez. Alguns diálogos têm ainda o humor corrosivo dos melhores tempos, mas o absurdo já entrou em águas da normalidade do baixo-poder. Foi bom enquanto durou.

16

"Nós não somos do século d'inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século d'inventar outra vez as palavras que já foram inventadas." [Almada Negreiros] E assim sucessivamente. Até já ser sabido e dizermos: acabou-se a paciência para essa retórica. E contudo, ser ainda preciso, mais uma vez, inventar as palavras que já foram inventadas. E assim sucessivamente.

15

Pediram-lhe um argumento, apresentou autoridade. Riram-se. Ofendido, apresentou mais autoridade, riram-se mais ainda. Depois mudaram de assunto e deixaram-no sozinho com a sua autoridade.

14

tens uma esferográfica preta?
semi-borrona.
não, normal.
normal não tenho quase nada, por estes dias.

13

 
Há dias que se prendem à memória
como se fossem o nome de um morto.
É o primeiro poema, mas é sobretudo verdade para a segunda parte do livro, "Retratos de mulheres", onde todo o amor é matéria de memória e distância, sem ser elegíaco nem impossível.
"Em cidade estranha" tem traços de flaneur, olho pictórico e uma alma estóica (quer dizer, sensível, não crente, não desesperada).

12

Um encontro talhado no céu, é assim que se diz?
Do primeiro disco falaremos depois. Mehldau musicou sete poemas de amor para mezzo-soprano e piano, Otter está nos seus domínios, e é bem provável que Mehldau tenha triunfado por inteiro onde outros (Jarrett e em parte Hancock) falharam. Para ouvir devagar e com outra disponibilidade que agora não tenho.
O segundo disco é mais jazzístico, Mehldau enorme e Otter... — bem, quem não a conhecesse perguntaria: "mas de que fora do tempo tão dentro desta música veio esta voz?". Para já, assim a uma primeira audição, duas obras-primas nesta segunda parte jazzística: Marcie (Joni Mitchell) e Calling you (Bob Telson). Vá, e uma terceira, por causa do touch dele e do riso dela: Blackbird (Lennon e McCartney).

11

Seria injusto não referir a parte de cinema. Actores em absoluto estado de graça. Rostos como pensamento. Uma câmara que lê devagar.

10

tudo nasce, tudo morre e nada grita
mais alto do que o vento sobre as árvores
[Daniel Francoy, Em cidade estranha, Artefacto]

Ainda, e sempre, o vento lá fora.

9


Pegue no Chopin. Desmonte, retire, altere, acrescente, remonte — crie. No fim, deve soar como escrito de raiz. Melhor, improvisado na hora. Jazz puro. Um dos discos do ano, muito bem entre o Jarret-Haden jasmine e o ten Moran.

8

O que escolhe ou o que se escolhe em nós quando escolhemos é um belo mistério. Para aqueles que sabem que há um mistério nisso, claro. Esses que sabem não perguntam porquê, dispõem-se a ouvir uma história, talvez até a acompanhar-nos na nossa história. Não perguntam por razões, sabem que as razões não explicam o essencial. Os outros — bem, os outros ajuízam. O tribunal do senso comum, ou pior ainda, a estupidez do completo auto-desconhecimento de si mesmos.

7

Vergílio Ferreira dizia que os místicos nada tinham a ensinar-lhe. Não era sobranceria, era comunhão num mesmo pathos da interrogação deslumbrada da existência e da aceitação louca da felicidade paradoxal do mundo.
Não quero rasurar o religioso do filme. Humanos de credos diferentes que rezam juntos, um arrojado discurso sobre o sentido da encarnação — uma humanidade que existe enquanto diferença e singularidade —, uma ética que toma as suas decisões passo a passo e conquista com sobriedade o seu limite no lugar de resistência que escolheu. 
Mas o que sobretudo me importa no filme é esse lugar humano onde a vida pode ser coisa diferente disto. O valor do silêncio e da palavra necessária, do ritual e dos caminhos aleatórios, da extrema concentração e do riso leve, da decisão mais torturada e da paz de ter decidido. Uma vida que, para se cumprir, não necessita de dominar ou explorar outra vida. São monges, estes homens? Sem dúvida. Mas são também uma história de humanidade que poderia ser contada com outras crenças ou ausência delas, e com outros intervenientes. Da mesma forma que, infelizmente, estas mesmas supostas crenças ou ausência delas poderiam ser uma história de desumanidade. 

6

Devo ser (ou estar) entre o insociável e o inamigável. Perdoem-me, não frequento. Não percebi ainda a vantagem de tudo isso. Gosto muito de vocês mas vou continuar a declinar. Têm o meu telemóvel e o mail, acho que é suficiente. Ofereço-vos a privacidade, acho que é o bem maior.

5

"Não devia ser engraçado. Simplesmente, não devia. Mas de facto é." 
Tão portentosa imaginação para a morte não diz assim tão mal da vida, bem pelo contrário. Em todo o caso, o humor negro é um privilégio, só concede as suas graças a quem o mereça.

4

Aquele momento em que, apesar de todos os teus esforços e truques, não consegues não saber o que sabes — o fim da tua vida como esse todo a que chamam vida, o começo dos teus restantes dias como resto e dia-a-dia.

3

O conhecimento que importa devolve-nos ao mundo como estrangeiros.

2

Há apenas um erro neste cd, que são duas canções em francês e uma em espanhol. Percebo a patine e os gostos pessoais, mas a voz de Carlos do Carmo não evita a sensação de estarmos a ouvir estrangeiro. No resto, impecável. Temos cancioneiro, temos até standards, Sassetti é irrepreensível e luminoso na exploração, Carlos do Carmo é afinal um crooner de alto quilate. Repito: temos cancioneiro, temos até standards. Malta do jazz, trabalho não falta.

1

Este blogue não é um diário, não é um jornal, não pretende ter ideias sobre as coisas, não se sente sequer obrigado a expôr as ideias que lhe calha ter. A que propósito vem isto? Vocês sabem o que eu quero dizer, e a verdade é que estou demasiado cansado para dizê-lo. Adiante.

Companhia nocturna # 85

A menina não só dança como bluesa feita gente grande.

WC lectures # 38

Ainda

Era um perdedor, mas sem a culpabilidade e o complexo dos perdedores. Alguns achavam que tinha tido a sabedoria ou a manha de ajustar devidamente as suas expetativas, mas ele bem sabia que se limitara a deixar seguir o mundo após ter tentado, como toda a gente, acompanhar a sua velocidade. Deixou seguir o mundo e pouco depois, simplesmente, esqueceu-se disso. Era extraordinária a quantidade de vida que existia nesses vastos terrenos por onde o mundo passara de uma vez por todas. Vida perdida, mas vida. Não havia outra maneira de dizê-lo, a palavra certa ainda era essa.

Reprise # 25

"Acrescento: entre o último poema escrito
e o que se segue, todo o cuidado é pouco."

Teresa M. G. Jardim, Jogos radicais, Assírio & Alvim

Companhia nocturna # 84

O fado é apenas o cais de partida, o resto passa-se lá longe, onde só há música e modos de a viver. Um esmero na palavra e na sua sonoridade, um requinte inventivo na instrumentação, uma voz sem alardes, perfeita no seu retraimento, que obriga a ouvir.

WC lectures # 37

Companhia nocturna # 83

Parece que já é dia lá fora.

Reprise # 24

O mundo é persistente. Estúpida, bondosa e inocentemente persistente. Não temos que escolher entre as três, elas vêm ter connosco ao mesmo tempo.

Reprise # 23

Há duas etapas na tua vida: primeiro és um ser vivo, depois um sobrevivente.

Reprise # 22

Vamos aos cemitérios por dever de memória. Mas também para obrigar a nossa incredulidade e o nosso escândalo à evidência do mármore e da terra.

trabalho de luto # 11


Futebol inteiro

Todas as relações têm os seus arquétipos. O Ademar começou por ser o irmão mais velho, e único, da minha namorada, depois o cunhado. Mas isto não é ainda uma relação, apenas o terreno circunstancial onde uma relação se pode desenvolver.
Houve uma história que o Ademar contou, era o resumo talvez de um romance, talvez de um filme, em todo o caso era uma história de exemplo. Dois homens que se conheciam já bem depois das eternas amizades adolescentes, que se acompanhavam em longas e silenciosas caçadas. Uma amizade masculina sem confissões, sem construção de memórias, sem consolo para o futuro. 

Foi esse o arquétipo. Contudo, nenhuma das razões que subjazem a esta amizade tão perfeitamente romanesca foram as nossas razões. Não éramos avessos à confissão, à importância crucial e por vezes cruel da memória, à necessidade de consolo — apenas tínhamos outros interlocutores para essa parte da vida. Cada família tem os seus equilíbrios, e por acordo tácito o lugar da nossa amizade foi fundado nessa espécie de silêncio com que se percorrem alguns espaços do mundo. Tanto faz que sejam os grandes espaços em que se procura a caça, como na história de exemplo, ou o pequeno campo e a eira em que jogávamos futebol, como de facto aconteceu connosco. Breve que fosse o jogo, era sempre esse longo olhar que pousamos sobre o mundo, e onde tudo repetidamente acontece pela primeira vez: a força e o cansaço, a paragem e a corrida, o instinto e a inteligência. E sempre, o princípio e o fim.
Futebol inteiro, era assim que dizíamos.

trabalho de luto # 10

trabalho de luto # 9

trabalho de luto # 8

trabalho de luto # 7

muito trabalho, muitas idas e vindas, muita música # 2

Não é só a voz de Robert Wyatt, é também o clarinete de Gilad Atzmon e o violino e viola de Ros Stephen. Alguns standards como nunca os ouvimos, tão frágeis, tão perto do essencial, tão para lá deste mundinho.

muito trabalho, muitas idas e vindas, muita música # 1

Tem Charles Lloyd, já há muito sem nada a provar a ninguém, entre composições suas, algum Monk e arranjos de tradicionais, soando tão jovem quanto o Chet Baker jovem, mas mais bluesy. E tem um trio superlativo: Jason Moran, Eric Harland e Reuben Rogers.

bloco-notas # 17

Um dia terei feito as contas à vida. Mas julgo que muito se passou atrás das costas. Fui onde não sei nem estive. Culpado e herói em pequenas proporções desconhecidas, irrelevante sempre para as contas maiores do mundo. Que de resto não sabemos quais sejam. Há muito que fugi pelas escadas que há sempre nas traseiras do rigor. Saí noutra rua tão principal quanto a da frente, com outros carros do mesmo trânsito, outras pessoas da mesma humanidade. Não há uma ciência para o mundo e as suas tarefas, menos ainda para o que se passa atrás das costas ou nas traseiras da vida. Vamos dentro do que não sabemos como dentro do nosso próprio corpo. Até que tudo pára, outros continuando.

bloco-notas # 16

Um dia terei feito as contas à vida.
Mas julgo que muito se passou atrás das costas.

*

Há muito que fugi pelas escadas curvas
Que há sempre nas traseiras do rigor.

*

Não há uma ciência para o mundo e as suas tarefas

*

Miguel Cardoso, Que se diga que vi como a  faca corta

Driving Miss Laura # 29

Hoje, o Testamento Vital no Prós e Contras (22h, rtp 1): Laura Santos, Galriça Neto, Daniel Serrão, Maria de Belém e Rui Nunes.

Mundo vivo


De Wynton Marsalis, as mais das vezes nem quente nem frio, antes pelo contrário. Mas houve Citi Movement, esse pináculo, e quem fez uma coisa assim pode sempre regressar das coisas irrepreensíveis de bom gosto mas nada excitantes. Vitoria Suite é quase sempre excitante. A ancoragem é clássica — a massa de som, as passagens, a ironia é Ellington by the book —, mas por sobre isso a enorme liberdade e frescura da coisa spanish (e dos spanish eles próprios: Paco de Lucia, Chano Dominguez, Tomasito, El Pirana). Uma mistura que é um mundo vivo.

Uma avalanche de narrativas

Ora bem, disse o manchas, enquanto esfregava as mãos de contente. Ora muito bem, repetiu, para o caso de não se ter ouvido logo à primeira. Lá ia ele começar mais uma nota crítica. Mas antes ainda disse mais uma vez: ora muito bem mesmo.

Partir

É uma música para partir, não para chegar. Não sei porque digo isto, mas sei que me está absolutamente certo. O resto não interessa (ou era tempo tirado à viagem).

bloco-notas # 15

Sim, talvez isso muitas vezes exija um esforço sobre-humano, uma auto-vigilância extenuante — não deixar que a nossa dor, individual, intransmissível e sumamente verdadeira, crie os seus pequenos bodes expiatórios. Somos tão miseráveis assim, quase tão involuntariamente miseráveis? Somos.

A vida com árvores # 11

A árvore acumula
Tempo
Mas sem nostalgia

[Alberto de Lacerda, O pajem formidável dos indícios]

bloco-notas # 14

O subentendido, a um tempo impróprio, mesmo falso, mas também radicalmente desafiador, de que compreender é aceitar.

Uma viagem à Índia # 1

Sim, a questão é agora o tédio, ou nos termos do sub-título: melancolia contemporânea (um itinerário). Mas o tom de dissecação imperturbável mantém-se, mesmo quando alargado ao humor negro. É por isso que ler é afastarmo-nos de Bloom. Bloom fica no seu definitivo tédio, o mundo prossegue. Ler é o prosseguir do mundo. Narrar é o prosseguir do mundo. Bloom não lê nem narra. Prosseguir é cruel. Não há aqui sequer a desculpa ainda heróica do sim nietzscheano, da inocência do mundo que se aceita como destino. Prosseguir é só prosseguir. Isso é cruel, porque sem desculpas, sem razões, e sem afastar a morte. Não se esperava consolo da dissecação do mal. Porque se haveria de esperá-lo da dissecação da melancolia?

Lloyd Cole goes la la la

man, o cd até se ouve bem, o peso da idade não é tão pesado assim, as líricas continuam em alta, as melodias desceram à planície mas não sou eu que me vou queixar em demasia, mas essa coisa do la la la é que não havia mesmo necessidade, e aqui para nós que ninguém nos ouve, esse departamento já está esgotado pelos la la la manhosos que a gente tolera no Cohen e nas angélicas vozinhas das meninas dele, é dose antiga, tás a ver o esquema?

Cadernos de Gonçalo M. Tavares | 27

Vamos ter que atravessar o óbvio: um livro de livros e da literatura toda que os livros fazem e imaginam para além deles. 
Vamos ter que nos lembrar do que literariamente já esquecemos, mesmo que até nunca o tenhamos sabido.
Vamos ter ainda que saber sair pela porta dos fundos desta síntese maior que as partes  tão diversas da obra de Gonçalo M. Tavares. 

 Depois, poderemos finalmente começar a ler, isto é, a separar-nos de Bloom — porque o mundo prossegue, mas nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de Bloom, o nosso herói.


É nestas alturas que um gajo gostava de ter uma reputação qualquer que pudesse apostar: este é um dos tais

Hora de fecho

Persiana a descer no seu andamento elétrico. Borboleta entre a persiana e a janela. Persiana a subir no seu andamento elétrico. Borboleta de encontro à janela. Apagar a luz. Pausa. Acender a luz. Persiana a descer no seu andamento elétrico. Vazio entre a persiana e a janela. Apagar a luz.

Reprise # 21

No limite de cada um há um absoluto que vale para o todo, porque o preço que cada um paga é de facto absoluto e irreversível.

Kurt Elling # 2

esta terra não está feita para nós (Ruy Belo) — esta música sim

Kurt Elling

Coltrane e Hartman são colossos intimidantes, e o dueto acidental que os uniu em 1963 é uma referência absoluta para todo o amante de jazz. Só que Kurt Elling não é um qualquer. Não há hoje voz masculina no jazz que se lhe compare, nem desafio que o diminua. E os arranjos são perfeitos. A coisa arranha, como só Coltrane sabia; a coisa aveluda por dentro do arranhar, como só Hartman era capaz. A coisa sabe a Kurt Elling em assombrosa perfeição.

PS: é impressão minha, ou ninguém por cá falou disto?

Reprise # 20

No inverno, à mesma hora desta foto, será já noite.
Sem dúvida, o começo de qualquer coisa. Mas é-o agora, a esta distância, não quando a primeira vez o escrevi. Como sempre, estávamos lá, começou connosco ou através de nós, mas não sabíamos que era um começo. Provavelmente, será também assim com o fim.

Troubadour

Um incómodo na voz, como se ela estivesse sempre errada no acento das línguas que tenta — mas é por esse incómodo que alguma coisa fica certa.
Um incómodo na guitarra, como se nunca se desviasse suficientemente do original a não ser na sua solidão — mas é esse deslizar solitário que conduz à parte incerta.

Reprise # 19

A realidade vem sempre cobrar o seu preço? Duvidoso. Já vi angústia que chegue precisamente pela realidade ter falhado em coincidir com a culpa de alguém que escapou impune.

Reprise # 18

No inverno, à mesma hora desta foto, será já noite. 
Uma notação realista pode tornar-se uma “metáfora” para quem não precisa de guiar-se nessa realidade particular. A metáfora aparece rapidamente quando deixamos de estar sujeitos às regras da sobrevivência no mundo natural. Uma constatação de perigo pode assim transformar-se num presságio melancólico, o alerta dos sentidos ser substituído pelo devaneio sensual da imaginação nocturna.

Reprise # 17

No inverno, à mesma hora desta foto, será já noite.

Delicadeza

Não me perguntes isso, dizia ela. Era uma forma delicada de me dar a entender que eu não gostaria da resposta.

No silêncio de ler

Há um momento na vida de um leitor intensivo a partir do qual tudo o que lemos se liga visivelmente a quase tudo o que já tínhamos lido. É como se um gigantesco mecanismo se pusesse enfim em movimento. Os seus objetivos são insondáveis, provavelmente inexistentes, mas a magnificência silenciosa do movimento é por si justificação que baste.

Começa a ser um dia como outro qualquer

Há perguntas de que já sabemos as respostas. Mas não aceitamos as respostas porque isso impossibilita uma história e obrigar-nos-ia a seguir sem ela. Então repetimos as perguntas. Dizemos que sim, que sabemos que essa história que queríamos é impossível e que vamos continuar com a restante vida. Mas repetimos as perguntas. A restante vida implica antes de mais parar com as perguntas cujas respostas já sabemos há muito.

Reprise # 16

Não são os infortúnios da virtude. Ainda há disso, mas não é isso. É a teia em que nos enredamos para sermos apenas decentes. A prova de que o pecado original se mede na construção social e não aconteceu lá atrás, está a acontecer desde sempre agora. Não é todo o mundo, mas é sem dúvida a parte do mundo mais incontornável e que mais pesa.

Reprise # 15

A clamorosa inabilidade em usufruir de todo o tempo do mundo. Não é só a culpa de sermos sobreviventes ao nosso banal fracasso. É a teia em que nos enredamos para sermos apenas decentes.

Reprise # 14

Este é um leitor que entardece. Soletra a morte. Na verdade, começa a ter todo o tempo do mundo.

Reprise # 13

 Portanto, os livros, o chá e os óculos (em processo de naturalização). É uma imagem da vida privada, pouco a dizer a partir desse ângulo. Porém, há lá uma história condensada, e as histórias são sempre humanas, singulares, nunca privadas. Uma banal história de acumulação do tempo enquanto existência — mas singular. Porque livros, chá e óculos poderia ser o contexto de um jovem leitor. Não aqui. Cada elemento tem uma camada específica de tempo. Este é um leitor que entardece. Soletra a morte.

Reprise # 12

No início, apenas os livros. Às vezes havia bolachas, chocolate quente, limonada. Tudo esporádico, não existe na memória, apenas na reconstituição laboriosa do tempo. Portanto, no início, apenas os livros. Depois, os livros e o chá. Agora, os livros, o chá e os óculos (em processo de naturalização).

Oscilação

Não entre isto e aquilo, mas sobre que força aplicar para a recusa disto e daquilo.

Reprise # 11

O tempo cura. Desde que não nos fixemos no seu próprio movimento de cura. Gastando-o como se fosse nada, ou até possibilidade do agravamento da doença. Esse o preço.

Reprise # 10

Mas também a ciência animal
de lamber as feridas, a furtiva alegria
Inês Lourenço, Coisas que nunca, 2010

9/11

A homenagem, claro. Mas penso nos realmente próximos das vítimas. Porque há também a dificuldade destas mortes históricas. Como se a carga simbólica e a rememoração social nos furtasse o morto e tornasse o luto mais difícil. Demasiado sós, quando o morto é exclusivamente nosso; quase sem privacidade, quando o acontecimento histórico se apodera dele.

Há esse momento em que tens necessidade do despojamento, de parte da tua língua, de te chegares ao precipício para conheceres a distância. Depois a vida continua, como sempre continua para aqueles que por cá continuam. Não interessa o que ganhaste ou perdeste durante esse momento, não há matemática para isso. O momento perdura em camera obscura, ao longo do tempo vai-se revelando diferentemente, dirás até que já não é consequência disso e contudo é, mas também não há meio de o saber ou de o negar. Nem isso importa porque a voz continua e sabes que atravessou a camera obscura.

Reprise # 9

E o sexo de ler? Sim, existe. Na fórmula llansoliana e para lá dessa fórmula. Não vamos agora falar disso. Mas sim, existe.

Reprise # 8

O meu verão: a leitura sub specie mar.

Reprise # 7

Ler nada pode contra a morte. É apenas um ritmo de estarmos vivos, e como a vida sujeito a interrupção definitiva. Acabarei este livro?

Reprise # 6

O fim do meu mundo já aconteceu. Quilómetros e quilómetros de passeio na praia em dias consecutivos, na parte dos aglomerados humanos ninguém a ler. E contudo, eu sei que uma frase destas, em bom rigor, não quer dizer nada que não se possa resumir a uma nostalgia vagamente narcísica, e que, em si mesma, pouco tem que ver com a leitura. A não ser naquela parte em que a leitura é a desculpa culta e legitimada para o próprio exercício do narcisismo.

Reprise # 5


Certo, uma casa de férias que se alugue não precisa de ter uma estante. Para os livros, se os houver, bastará o saco que os transporta. A mitologia barthesiana do intelectual em férias só circulou no milieu, e mesmo essa implicava mais o intelectual como escritor do que o intelectual como leitor. E o intelectual como escritor, já se sabe, é da ordem da criação ex-nihilo: nada de bagagem, nada de biblioteca acoplada.
Ao longo dos anos, fui-me habituando aos lugares improváveis de colocar os livros que as férias permitem. Este não foi dos piores, e sem dúvida nenhuma foi o mais lógico: na dispensa, em partes iguais entre as utilidades e os comestíveis.

O cânone é um tigre de papel

Eu não pergunto nada ao João Tordo porque, por princípio, tomo as afirmações dos escritores em entrevistas como sintomas e não como argumentos. Que o escritor passe isso a ensaio, e então conversaremos. Mas quando um crítico como o Eduardo Pitta parece tomar esses sintomas como argumentos também seus, aí já me apetece fazer perguntas.
Eduardo, acha mesmo que o cânone português manda que se escreva hoje como nos idos de 50, 60 e 70 do século passado? Leio nos jornais e não encontro ninguém que pense isso (e para simplificar, desconto já o António Guerreiro). Leio na academia e encontro as coisas mais díspares, como aliás seria natural porque o processo está em aberto — mas em todo o caso leio muito menos defesa ou valorização do experimentalismo para hoje do que defesa e valorização dos tais romances que querem contar uma história.
Acha mesmo que "Existe um conjunto de regras das quais não se deve sair se queremos fazer o que cá se chama literatura"? Serão as tais do abjecionismo metafísico que fo Eduardo diz ter constituído o mito da nossa ficção dos anos 60? Mas mesmo que esse mito o tenha sido de facto (o que concedo com ressalvas), onde está ele hoje a não ser na história que desse tempo literário se tenta ir fazendo?

Retroversão neoliberalismo-século XVI

“E as mais antigas famílias nobres até ganharam o novo título de Grandes de Espanha. (...) Este estatuto passou a permitir-lhes, a partir daí, apresentarem-se diante do rei de cabeça coberta, tratando-o por primo, e outras mais prerrogativas, como entrar nas igrejas montado a cavalo ouvindo aí, nesses preparos, a missa.” (Pedro Almeida Vieira, A mão esquerda de Deus, p. 160-161)

Reprise # 4

Que há nesta varanda? Um ringue de boxe (bate na tua dor, recebe da tua dor, bate na tua dor, recebe da tua dor). Um combate em número indefinido de assaltos (dia, noite, baixa-mar, preia-mar, luz, sombra, murmúrio, rugido). A possibilidade permanente de sair — se podes sair, porque não podes sair?

Reprise # 3

Que é uma varanda que abre sobre o mar? Um navio sem ponto de partida ou de chegada.

Reprise # 2

Que há numa varanda? Fundamentalmente, apenas o que fica para além dela.

Reprise # 1

A varanda foi determinante. O resto era já da ordem do suplemento: quase ninguém, os dois restaurantes ao virar da esquina, a nortada permanente. Convém sempre que o nosso desejo real de solidão não seja distraído por um excesso de mundo. Dez quilómetros para norte e doze para sul, o mundo existia abundantemente. Mais fácil, assim, esquecer-se de nós. Mais fácil, também, a ilusão de uma distância protegida.

Ten

Começa como um Oscar Peterson que tivesse vivido e ouvido o que a idade mais recente de Jason Moran permitiu. E vai por aí fora, quase sempre em composições suas, aos costumes melancólicos dizendo nada. Faltava alguém para, no cimo dos cimos, equilibrar a veia mais lírica de Jarrett e Mehldau. Agora já não falta.

Fronteira

A partir de uma certa fronteira, a associação de ideias já não revela o inconsciente do sujeito mas o da sua cultura. O problema é que a cultura, neste sentido de coisa incrustada, não subjetivizada, é grandemente inculta. Pouco mais, afinal, que boçalidade vertida em linguagem de época. A cada tempo os seus slogans assassinos.

Tautologia & circunlóquio

O que há de pior numa tautologia é quando percebemos que podíamos verbalizar interminavelmente a definição sem nada ganharmos de substancial quanto à compreensão da coisa. Muitas das tautologias têm essa condição. E contudo, a tautologia não é tão frequente assim. Certamente porque apesar da nossa finitude, temos tempo a mais. O circunlóquio não é o contrário da tautologia, apenas um programa de ocupação de tempos livres.

Inconveniências

Somos literais, entendem-nos metaforicamente — eis uma bondade involuntária do nosso interlocutor, que assim nos dá aquele ponto de fuga por onde poderemos escapar à proximidade inconveniente do real.

trabalho de luto # 6

trabalho de luto # 5

trabalho de luto # 4

trabalho de luto # 3

trabalho de luto # 2

trabalho de luto # 1

Jasmine

Aos primeiros acordes irrompeste em lágrimas. Não era a música, apenas as circunstâncias, o curto-circuito com a realidade, com aquilo que na realidade te faltaria agora para sempre. A música fez-se ouvir depois, calando as lágrimas, sentando o teu corpo por dentro, abrindo-te no rosto uma luz breve de aceitação – nada de kitsch sentimental, apenas  a sobriedade poética de uma balada. Outro mundo, continuando na realidade este. Poucos o conseguem verdadeiramente. E menos vezes ainda temos a oportunidade de o saber com esta clareza involuntária, e por isso certa.

janeiro-agosto

não perguntes, não respondas

bloco-notas # 13

ENTEADA: Que repugnante; estas complicações intelectuais enojam-me, enoja-me toda esta filosofia que revela a besta em cada um de nós e que depois a quer salvar, desculpar... [Pirandello, Seis personagens à procura de um autor]

Pois, rapariga, mas o ponto é este: ou se faz o número de Vasco Pulido Valente e a caravana passa, ou se é para ir na viagem haverá curvas em que te vão sair os bofes pela boca. Mas sobrevive-se, ok?

This is all there is

O gesto só pode ser tão largo como o mundo, e apontar também o que nele para sempre desconheceremos. Contudo, o tom não podia ser mais exacto.

Aguentem só mais um bocadinho, há aqui outros prazos a que atender

 
Com a blogosfera a mexer mais do que o mercado de transacções futebolístico, o Manchas não podia ficar parado. Haverá alterações profundas até ao final do mês (já agora convém deixar assentar o bruáá que por aí vai). E antes disso ainda virei aqui por via de umas listinhas e de duas ou três coisas que urge pôr em dia.