O mundo de mundos

Nestes dias cheiro o ar, como os animais. Bichos da terra.
Era uma morte esperada na família. Depois de cinco anos de completa ausência da mente, a máquina parou por fim. Na última visita, tive de novo a certeza absoluta que jamais quererei sobreviver assim a mim mesmo. Como sei, sabíamos todos, que nunca o quis para si.
Agora há que cumprir todas as formalidades. Mesmo aquela parte de dor que, não sendo falsa, é também uma formalidade com que dizemos uns aos outros e a nós próprios o incompreensível que há em tudo isto. O incompreensível nada ou o escândalo não menos incompreensível da esperança. A ambos servem os rituais, que só na sua superfície se deixam definir de um modo ou outro.
O resto virá depois, em momentos imprevistos e sem palavras, ou com palavras de uma intimidade que o pudor apaga de ilegítimos destinatários.
Nestes dias cheiro o ar, como os animais. Bichos da terra.

O primeiro irrepetível ou o primeiro de cada vez?

Por fim, levantei-me, aproximei-me da cama em bicos de pés e, sem me despir, pousei devagarinho a cabeça na almofada, como se tivesse medo de perturbar com algum movimento brusco o que transbordava dentro de mim... [Ivan Turguénev, O primeiro amor, Tradução de Nina Guerra e Filipa Guerra, Relógio D’Água, p. 38]

O amor não é o acontecimento. No acontecimento, as coisas acontecem — é tudo. O amor é quando o acontecimento é interrompido e o sujeito fica a sós com os restos imensos do que quer que tenha acontecido. Por isso o amor é cosa mentale, ou tempestade emocional que não tem a possibilidade de uma passagem imediata até ao outro, ficando a rodar na mente. Os que, como Vladimir, querem guardar cuidadosamente toda essa tempestade, têm a esperança de que, em breve, o acontecimento será reatado. É esta esperança a marca do primeiro amor, do irrepetível primeiro amor? Talvez. Mas os que aprendem com a experiência encontram a inesgotável generosidade do acontecimento: o primeiro que se repete de cada vez. E como Vladimir, guardam cuidadosamente tudo o que se reatará no reatar do acontecimento. Dizem até já, dizendo sem dúvida até sempre.

Plágio na consciência

Sonhei que acordava de repente com a clara certeza de que a punch line não era minha. Mas o sonho não me disse de quem era. Filme? Verso? Não fales de mim, fala comigo? Bom, o melhor é não me tentar recordar, a ver se de súbito me lembro.

Companhia nocturna # 30


Durme, durme, hermosa donzella
Romance Sefardi

Durme, durme, hermosa donzella,
durme hermosa, sin ansia y dolor!
Heq tu esclavo, que tanto desea
ver tu sueno con grande amor.

El dia vo llorando,
la noche sin durmir
pasando y preguntando
fin hasta cuándo vo sufrir.

Antigamente

Não é da mudança do mundo que falamos, mesmo quando é evidente que o mundo mudou. É do pouco futuro que nos resta, por já termos tido todo esse passado. A melancolia com que dizemos “antigamente” vem só daí.

Hoje esteve um azul de antigamente

No farol tudo era sempre e só azul, brilhante se sol, espesso se chuva, pálido se nevoeiro, ténue se vento, denso se sombra, sempre e só azul, azul-mar, azul-rocha, azul-espuma, naquele sítio todas as coisas eram azuis.

Dulce Maria Cardoso, Até nós, Asa, 2008, p. 105

Os infortúnios da virtude # 6

Depois de horas, dias, meses, apresentei-lhe finalmente o livro envolto em amor: é sobre ti. Cansada de horas, dias, meses, atirou-mo à cabeça: não fales de mim, fala comigo.

Reloaded # 1

Ela diz que traz maltesers. Ele não sabe o que são maltesers. Ela abre o saco de maltesers. Ele diz que aquilo segue o mesmo princípio dos smarties. Ela não sabe o que são smarties. Ele come e confirma: com cores, podiam ser smarties. Ela come também e mostra-lhe o rótulo do saco: são maltesers. Ele diz que inventaram aquilo apenas para que ela e a sua geração se sentissem donos do presente. Ela diz que não há razões para ele se preocupar, a metafísica é a mesma e continua a resumir-se a comer chocolates.

Literalmente # 4

Havia histórias para narrar, era essa a questão. Nós temos histórias que vão desaparecendo de serem narradas. A greve dos acontecimentos, disse o Baudrillard. Que agora se prolonga como um indiferente e perpétuo estado de greve dos acontecimentos. A nossa condição inescapável.

Literalmente # 3

Via mail, Filipe Guerra diz-me que foi verificar no original as passagens que citei de Primeiro Amor — o literalmente está lá mesmo. Também me parecia que devia estar. Digamos que Turguénev tinha coisas mais altas com que se preocupar. Ou melhor, literalmente, tinha mesmo coisas mais altas com que se preocupar. Coisas que exigiam narrar a toda a velocidade. Tal como em Dostoievski. Mas já não como em Tchékhov — que por isso mesmo é outro cuidado estilístico. Esconder com graciosidade que nada há para contar exige um certo tipo de arte — em suma, nada literal. Porque a questão é que, onde há livro, tem de haver acontecimento, nem que seja sob a forma do seu simulacro ou do buraco negro da sua ausência — é o imperativo da res extensa. Nao há como fugir-lhe. Literalmente.

Literalmente # 2

Leonard Lynch e David Cohen, ou de como há mais pensamento na blogosfera do que os media podem alguma vez imaginar: "Quando cheguei a Algés, uma hora mais tarde do que previa, a primeira imagem que vi foram duas: a primeira aquelas pessoas todas no Central Park de geleiras e tal para assistirem ao concerto de Paul Simon and Art Garfunkel, quando abria aquele disco duplo costumava olhar muito para as pessoas que estavam lá; a segunda tem a ver com os cortinados que me levaram logo para Lynch. E foi como se fizesse todo o sentido. Ora, aqueles arranjos não são à casino são, isso sim, a club silencio, mas ao contrário."

O rei morreu, viva o rei! # 3

A peça de Tom Stoppard terminava com um vídeo do concerto que os Rolling Stones deram em Praga em 1990, o primeiro concerto rock na Checoslováquia pós-comunista. Por um milésimo de segundo, perguntei-me: foi afinal para isto?
Eu sei. Durante um milésimo de segundo, fui fascista.
Mas há toda uma série de perguntas a fazer depois desse milésimo de segundo que não são fascistas. Que talvez até sejam perguntas comunistas num mundo pós-comunista. Não por acaso, talvez, Mick Jagger cantava I can’t get no satisfaction.

O rei morreu, viva o rei! # 2



Na política dos grandes ideais comunistas também não é assim. Os grandes ideais comunistas não pertencem estritamente à ordem da política, nem são inteligíveis se reduzidos unicamente às regras desse quadro. É por isso que o luto dos grandes ideais comunistas é tão lento, complexo e diversificado. A questão fundamental do luto amoroso bem sucedido resume-se nisto: decidir qual o essencial a guardar, para melhor poder esquecer o resto e abrir espaço para a restante vida. No luto amoroso bem sucedido, o essencial que se guarda acaba sempre por ser a reconfortante certeza de que o amor, o movimento do amor, existiu, foi possível, é possível. Mil histórias para dizer isto, mil histórias multiplicadas por mil histórias para dizer ainda “amo-te”. Qual é o equivalente de “amo-te” nos grandes ideais comunistas? Parte da esperança política à esquerda reside em conseguir encontrar uma resposta mínima para esta questão. Não será por acaso que alguma esquerda europeia olha para Obama. Não é só pelo que diz, mas também como diz. Nessa outra ordem que não é estritamente política, sabemos que o amor diz o que o Outro é, como conteúdo, através da forma como o percepcionamos e intuímos. Em liguagem rock’on roll: I like the way she moves...

O rei morreu, viva o rei! # 1

No amor não é assim. Passados alguns meses — vi a peça em Abril —, o que me lembro com mais nitidez de Rock’on Roll, de Tom Stoppard, é uma pequena frase do velho Professor Comunista, “filosofando” sobre o fracasso da relação amorosa que tinha iniciado logo após a morte da sua mulher: “a dor não quer saber para nada se estás a ter grandes orgasmos e quão fantástica pode ser a tua nova vida; a dor dói-te e destrói-te, e tens de aguentar sozinho ir até ao fim dela.” Depois, haverá ou não a possibilidade de qualquer coisa. No fim da peça, esta relação reata-se — mas é já outra coisa. O velho Professor Comunista já tinha morrido o que tinha a morrer na morte da sua mulher.

Companhia nocturna # 29



Num mundo ideal, António Pinho Vargas teria oferecido essa melodia fabulosa que é «Tom Waits» a Keith Jarrett — digamos, como se fosse um standard —, e Keith Jarrett ter-lha-ia devolvido em triplicado, múltipla como o mundo que há em tudo, única como só as melodias assim podem ser.
Mas este é um mundo real, como me dizem as borboletas do poema de baixo que ouvem esta canção há muito, muito tempo.

E comove, bem para lá de não me comover



BORBOLETAS

Noites sem sexo são perfeitas, também: janelas entreabertas,
sombras que passam na rua através das horas, relâmpagos
que não chegam a iluminar as paredes do quarto. Românticos
que se encontram depois de viver vidas paralelas, cansados

- mas enlaçados antes que chegue a hora de partir, sem saberem
se amanhã há outro sono igual, ou uma escolha para fazer.
Os dois sabem que são doidos, estendem os dedos na escuridão
entre as luas. Os dois sabem que mais adiante podem arder
de repente no meio do Verão, consumidos pelos segredos

e pela indiferença. Noites sem sexo são perfeitas, também;
e raras, e condenadas e incompletas. Borboletas no estômago,
batendo asas contra todas as paredes do corpo - não deixando
que ele adormeça, inquieto e insatisfeito, voltado para dentro

e para o passado. Românticos que se encontrarn quando nenhum
deles esperava outra oportunidade, outro caminho. Nunca estamos
preparados, diz um. Nunca estamos, repete o outro, quando
a primeira borboleta sossega depois de um beijo em dívida.


Francisco José Viegas, Se me comovesse o amor, Famalicão: Quasi, p. 36

Companhia nocturna # 28

Do jazzmen que já foi — que de algum modo não deixou de ser —, muito material transitou para aqui. Com mais arquitectura, com mais densidade. Uma longa suite com muitos recantos para descobrir. Nunca é a técnica nem o improviso repentista (o que não significa que, noutros, estas não sejam qualidades admiráveis). É sempre a composição, o rigor que solta a música com o peso apropriado a cada momento.

A vida com árvores # 4

Alguns tenros ramos vibrando verde.
Algumas doces folhas em aéreos esboços esverdeados.
(agora vê lá se cresces até poder ser eu menino à tua beira)

WC Lectures # 27

Não dou propriamente muito pela aventura de comer — idiossincrasias, claro — mas sou um fã desta arte sobre as desventuras de comer...

Era exactamente assim que a coisa aparecia no meu telemóvel

e por isso eu desisti (bem, realmente nunca usei a função, e pelo pouco que se via não me pareceu que valesse a pena rebobinar mentalmente o livrinho de instruções). Mas ainda bem que alguém foi de opinião diferente. No resto, parece-se bastante com o que eu disse, só que o coro está mais afinadinho e melódico...

Aqui estou eu sentado em frente dela

O fetichismo que se desconhece a si próprio faz baloiçar o corpo como uma criança, somos esse ser que tendo já separado o mundo de si, o trata ainda como um sujeito que fosse só exterioridade. Nessas condições, a alma que é um vício é-nos um território inimaginável. Pregas de vestidos e botinas, eis o que sabemos da alma que vagamente começamos a intuir. Numa palavra: ficamos tão infantis quanto deveras o somos. É por isso que aos dezasseis anos — é a idade que ele tem —, o amor só pode vir a ser uma derrota. Romeu e Julieta não tiveram tempo de o saber. A condenação política, empurrando-os para a morte, salvou-os do conhecimento. Mas Vladimir sobreviverá. Vai aprender por si mesmo que a única consequência de sobreviver é a aprendizagem. E que isso não é particularmente exaltante. Como aliás a existência não é nada de que qualquer coisa em particular se possa definir como exaltante.

"Estava a olhar para ela e a sentir quão próxima e querida se tornava para mim! Como se a conhecesse havia muito, como se não soubesse nada nem tivesse vivido antes de a conhecer... Trazia um vestido escuro, usado, pusera avental; eu teria acariciado de boa vontade cada prega daquele vestido e daquele avental. As biqueiras das botinas assomavam debaixo da bainha do vestido: apetecia-me inclinar-me com veneração sobre aquelas botinas... Aqui estou eu sentado em frente dela - pensei -, acabo de travar conhecimento com ela... que felicidade, meu Deus! Por pouco não saltei da cadeira, tão fascinado estava, mas limitei-me a baloiçar os pés como uma criança deliciada com uma guloseima."

Ivan Turguénev, O primeiro amor, Tradução de Nina Guerra e Filipa Guerra, Relógio D’Água, p. 21

Dividir para reinar

Tinha aprendido a estratégia como político, mas desde sempre era um reformado da política. Todavia, estava interessado em reinar sobre si próprio. Dividia todos os seus problemas em parcelas progressivamente mais pequenas até serem pequenos nadas. Regra geral, os resultados eram satisfatórios. A grande contrariedade eram as excepções à regra. Sempre imprevistas e imprevisíveis. Naturalmente — ou não fosse isto um post afundadamente moralista — a principal excepção à regra era a própria existência.

Literalmente

Ok, eu percebo as reticências de João Bonifácio ao concerto do Cohen. O que foi grande, foi mesmo grande — impossível não concordar. Mas o que não foi tão grande, não foi lupanar. Não, aqueles arranjos não são à Casino do Estoril, são arranjos de uma dor implosiva e bem-comportada à... bem, vamos dizer assim, à Tchékhov. Há o óbvio e o cortesmente dissimulado. Lembro-me de ter discussões semelhantes acerca de Coltrane (o génio óbvio do grito) e Bill Evans (o génio cortesmente dissimulado do grito). Cohen veio vindo de um pólo ao outro, e essa é a sua história — génio e grito envolvidos em roupagens diferentes, num corpo diferente, num olhar diferente.
E mesmo que... e mesmo que num deslize ou outro — mas também houve deslizes antes, há sempre deslizes onde há génio, o génio inacaba tudo e essa é a sua potência criadora —, sim, e mesmo que... bem, vamos dizer isto de outra maneira.
Eu ri-me como um perdido com a “recensão” que o Rogério Casanova fez de Português Suave. E quando chegou o “literalmente”, quase me ia engasgando de tanta risota. Até porque me lembrei das mil vezes que a comida “aterrava” na mesa, nos romances anteriores, segundo as contas do João Pedro George. Arranjos, que valha a verdade, nem lembram ao lupanar. Mas o Osvaldo já tinha chamado a atenção que certas coisas como trocar o nome das personagens durante algumas páginas acontecem também aos grandes. Ao que posso agora acrescentar que o “literalmente” também. Porque na viagem até Lisboa me decidi por umas horas de férias absolutas, e não é que logo à página 18 de O Primeiro Amor, de Turguénev: “Os seus olhinhos negros espetaram-se, literalmente, na minha cara”. Imaginam o calafrio, a súbita desconfiança de que algum génio maligno me tivesse trocado o conteúdo do livro? Mas quando na página 36 li esta confissão en passant: “toda aquela algazarra, (...) aquele convívio invulgar com pessoas quase desconhecidas subiram-me literalmente à cabeça”, não houve calafrio nenhum, já tinha tido provas sobejas do génio de Turguénev. E do Cohen também. Literalmente.

Hey, that’s a good way to say goodbye

[para o coro] Vá, minhas queridas, não parem. Podiam continuar assim a noite inteira: tum ba to tum. Gosto tanto. E vocês não têm nenhum sítio interessante onde ir, pois não? Vá, não parem. [para o público] No outro dia tive uma revelação acerca da verdade. Aquilo que todas as filosofias e todas as religiões procuram foi-me revelado. [olhando rapidamente para o coro] Continuem, não parem. [para o público] Mas eu vou-vos revelar a verdade, porque eu não sou o tipo de pessoa que guarda uma coisa destas só para si. Vocês querem saber a verdade? Bem me parecia que havia muita sede de verdade. Bom, então eu vou-vos revelar a verdade. [aponta para o coro] tum ba to tum.

But that’s why you want to be there

Das paisagens # 14

Sem a força da juventude, mas com a recordação de já termos estado aqui — este longo caminho que lava o olhar. Dizia-se, vamos aos carris?, e eram muitos quilómetros até lá cima, toda a atracção do desafio, e um prémio final em mundo visto que não merecíamos nem bem compreendíamos. Agora sabemos: Se houvesse uma obrigação digna e perfeita / seria esta: /subir pela montanha, / esgotar as suas forças, contemplar o vale. [Francisco José Viegas, Se me comovesse o amor, p. 10]

Companhia nocturna # 27


Em todo o caso, sou infinitamente terrestre e imanentista.
Em todo o caso? Sim, talvez. Em todo o caso.

A vida normal usada contra si mesma

O diagnóstico de Enzensberger é acutilante. O seu conceito de “perdedor radical” como figura do terrorista é uma mistura, equilibrada no fio da navalha, entre uma caracteriologia psíquica e uma outra sociológica, ambas devedoras de uma modernidade que falhou tanto aos sujeitos como alguns sujeitos lhe falharam a ela. Eis uma síntese possível da figura do perdedor radical: “desespero pelas próprias insuficiências, busca de bodes expiatórios, perda de sentido da realidade, sede de vingança, delírio da masculinidade, sentimento compensatório de superioridade, fusão entre destruição e auto-destruição, desejo compulsivo de, por meio da escalada do terror, se tornar senhor da vida dos outros e da própria morte.” (p. 93). Isto no seio de um mundo globalizado em que, por um lado, os excluídos o são de um modo radical e sem precedentes, e, por outro, os movimentos islâmicos vivem em colectivo, e ao nível de complexo civilizacional, aquilo que os perdedores radicais vivem individualmente. Neste ponto, a caracterização do estado de desenvolvimento das sociedades árabes, apoiada em dados fidedignos, é verdadeiramente devastadora e explica algumas coisas.
Do meu ponto de vista, faltam apenas dois aspectos para o retrato ser mais completo. Uma reflexão sobre a perda do ideal de revolução e suas consequências no desenvolvimento da modernidade tardia — de alguma forma, os perdedores radicais de hoje foram, ontem, os escravos convocados para a grande revolução porque só tinham a perder as grilhetas que os amarravam. E uma reflexão sobre a condição tecnológica da globalização e seu potencial destrutivo — por mais radicais que sejam estes perdedores, o seu poder destrutivo não advém da sua fúria e do limite de auto-destruição até que estão dispostos a ir, mas dos instrumentos de que dispõem. Neste sentido, o que é perturbador e novo neste terrorismo é que ele usa a vida normal contra si mesma, o que nos instrui sobre duas coisas: a vida normal, hoje, usa de uma força que, desregulada, destrói a normalidade; usando os terroristas a força da vida normal, torna-se impossível estabelecer uma normalidade que lhes seja imune.

Companhia nocturna # 26


A vibração do silêncio quando a música acaba.
É nesse momento breve, alto para dentro, nesse oco que já não é música nem ainda o esquecimento dela — tu.

No lugar onde tudo aconteceu

A patologia do realismo enquanto cenário: estamos no lugar onde tudo aconteceu, diz o repórter. À volta não há nada nem ninguém, ou então muita gente que também não estava lá quando tudo aconteceu. O repórter narra então a história de como tudo aconteceu, e não há qualquer vantagem visível entre o directo e o estúdio. A não ser a possibilidade da reafirmação final da patologia do realismo enquanto cenário: fulano de tal, estação tal, em directo do lugar onde tudo aconteceu.

Companhia nocturna # 25

Que Andreas Scholl habitava a perfeição, já o sabíamos. E tanta era, que uma imperceptível distância se abria entre ele e a nossa humanidade comum. Agora, Andreas Scholl encarnou — e como é admirável a perfeição humana que simplesmente se entrega à canção do mundo.

Injunção ao cinema

Reúne Escalas, de 1981, acrescentado agora de O Deserto.
Fotopoemas. Não é uma questão de harmonia ou de ilustração mútua, mas de combate, re-envio e multiplicação. É legítimo lermos apenas os poemas, sem olhar mais nada: eles bastam-se. É legítimo olharmos apenas as imagens, sem ler mais nada: elas bastam-se. A ideia de cinema-tógrafo seria a do movimento que circula entre ambos e que faz circular ambos. Mas um movimento que se retrai ao contínuo do cinema, antes fotogramas isolados, poemas isolados, e conexões topográficas entre tudo. Cinema, só em quem vê/lê. De alguma forma, como sempre acontece. Mas aqui com as matérias primas mais disponíveis: liberdade maior que se paga com uma injunção maior a fazer esse cinema. Como também quase sempre acontece — e não é mau.

Multiplex # 44

Como me tinham avisado, Forgetting Sarah Marshall não é tão estúpido quanto o inenarrável título português que lhe foi atribuído, “Um belo par de... patins “. Bom, a dor de cabeça passou, já não foi mau.
E fica uma sequência, essa em que Mila Kunis é toda ela a personagem que age empaticamente para com a dor de corno de um homem que desconhece. De súbito, o sorriso e a pose profissional da recepcionista de um hotel havaiano dobra-se desse olhar doce de que um humano é capaz perante a derrota de outro humano. Certo, esse olhar doce carrega boa parte da trama (boy encontra girl compreensiva, girl compreensiva já soube o que era a derrota, etc), e o filme não faz (nem podia fazer) qualquer esforço para se desviar disso. Never mind. Naqueles segundos, únicos em todo o filme, podemos amar uma personagem e sentirmo-nos vagamente confortados em todas as nossas derrotas.

Uma indiscrição

"Cheio de curiosidade, atrevi-me a ir verificar uma vez o que lá se encontrava estampado, e descobri a assinatura dele, do senhor Soares, às avessas, e ao invés, mas fui-me logo embora com a ideia de que tinha cometido uma indiscrição que não se desculpava."

Mário Cláudio, Boa noite, senhor Soares, p. 19

Levar o nome próprio às avessas e ao invés — é nisso que consiste a literatura que merece esse nome. Não a experiência de um, mas a experiência do mundo às custas desse um — que é isso também, e sempre, a vida. A gente compõe a normalidade de um lado apenas para deixar a existência e a literatura trabalharem em paz e sossego do outro (em paz e sossego?..).

Das paisagens # 13 [ilhas no meio do nevoeiro]

"Surpreendíamo-lo noutras ocasiões, a examinar com minúcia o mata-borrão, e percebíamos que o senhor Soares se sentia fascinado pelos rabiscos que tinham sido mal absorvidos, todos negros porque só ele usava tinta dessa cor, e salpicados de borrões que se assemelhavam a ilhas no meio do nevoeiro. Cheio de curiosidade, atrevi-me a ir verificar uma vez o que lá se encontrava estampado, e descobri a assinatura dele, do senhor Soares, às avessas, e ao invés, mas fui-me logo embora com a ideia de que tinha cometido uma indiscrição que não se desculpava."

Mário Cláudio, Boa noite, senhor Soares, p. 19

A confiança no leitor


Eis um exemplo poderoso de um dos alicerces da literatura: que ela se faz usando literariamente a própria literatura. Não só no sentido de que recicla o que já foi feito — o que até não é aqui propriamente o caso —, mas também no sentido de que a sua compreensão subentende a compreensão de literatura anterior. Não fosse Bernardo Soares ter sido quem (não)foi, e não fosse Pessoa ser ainda o mito da poesia enquanto essa qualquer coisa outra que fica sempre além do poema, e Boa Noite, Senhor Soares implodiria, aliás sem estrépito nenhum. Porque esta rápida reconstituição de alguns ambientes lisboetas em que o Sr. Soares teria trabalhado e habitado, vistos pelo prisma de um simples trabalhador de armazéns de tecidos, é apenas um cenário, estilisticamente irrepreensível, em que a bem dizer não se passa nada — muito menos alguma coisa que prove do Senhor Soares o Bernardo Soares que literariamente foi. O Senhor Soares é poeta — esse é um adquirido para o trabalhador-narrador, e tanto basta para a sua deferência e para a sua vaga curiosidade, que contudo não ousa saber mais, mesmo quando tem alguns indícios de que o Senhor Soares, pelo seu lado, não se importaria de o conhecer melhor. Toda a arte deste romance reside numa elipse que é, por sua vez, elipse de outra elipse, aquela que constituiu Bernardo Soares personagem desse “drama em gente” pessoano. Não se trata de dar corpo e vida a uma invenção pedida a outro, como acontecia no saramaguiano O ano da morte de Ricardo Reis, que por isso se bastava a si mesmo enquanto romance, ainda que exigisse a enciclopédia pessoana para um maior entendimento do seu alcance. Trata-se de algo mais arriscado, porque precisamente não se basta a si próprio: de através de um mínimo de corpo e vida, de tudo fazer indício para a existência desse corpo e dessa vida. A humildade da grande arte também se pode ver nisso: na forma como se coloca inteiramente nas mãos da inteligência e sensibilidade dos leitores e da enciclopédia que os constitui. Que é como quem diz: “A rua onde morava o senhor Soares apareceu-me como uma dessas onde nada acontece, mas onde de facto se pode imaginar muita coisa” (p. 71).

Essa parte obscura

Gosto da imprecisão da memória. Frases que de repente regressam (de livros, filmes, conversas), que sei que estão “erradas”, mas absolutamente certas na sua incorporação em mim. O que se transformou coincide com o que vou sendo. Mas para o saber, teria de as reconstituir na sua originalidade — e se o fizesse, separava-me dessa parte obscura que me transporta pela vida tanto quanto as minhas escolhas conscientes.

O mar, ainda

Não se vê o mar. Não se olha o mar. Quem está ao pé dele, está só ao pé dele. O Pessoa talvez não concordasse, que isto entre um rio e o mar há uma certa diferença de espaço, e sobretudo da proporção e importância de sermos o sujeito diante desse espaço. Ele perdia-se no infinito, a gente está só ao pé do infinito, como um cão deitado aos pés de um dono que não há.

Das paisagens # 12

Às vezes olho longamente o céu, como se quisesse compreender. Acabo por voltar sempre ao mar.

Multiplex # 43

Não é preciso muito tempo de filme para nos surgirem aquelas perguntas todas: esta simplicidade, esta vida da periferia social, esta comunidade pré-moderna, esta dignidade sem pathos, é isto ainda cinema visível? E na medida em que vamos ficando, a resposta é inequivocamente sim. E o resto que haveria a dizer, realmente, pouco interessa para aqui. Para o multiplex, basta isto: Abdellatif Kechiche, um realizador de cinema.

Psicopatologia da vida quotidiana # 40

Então quis ficar morena. Eu que sempre detestei o sol. Deu-me. Pensei que fosse coisa de gaja. Mas afinal o que quero é ficar a mulher que ele nunca conheceu. E re-começar a partir daí. Como? Sim, é coisa de gaja, mas num nível muito diferente.

Companhia nocturna # 24

“À noite, a horas tardias, os objectos pousados arrefecem.”*
A música ouve-se do outro lado desta vida que só tem este lado.

*Bernardo Pinto de Almeida, Cinematógrafo

Encontros

Nelson Mandela, antes. Agora, talvez Ingrid Betancourt. Uma coisa é certa: Ingrid Betancourt foi ao encontro da história. Veremos se a história vem agora ao seu encontro. Não é preciso saber muito para dizer que Ingrid Betancourt está preparada. E que este mundo, de que muitas vezes justamente desesperamos, precisa de encontros assim.

Das paisagens # 11

Quando isso aconteceu? Não o sei. Já disse que poderia ter outro tipo de precisão cronológica, mas não posso, não quero. A imprecisão é uma espécie de penumbra onde os vultos que importam ganham a sua merecida luz, com o correr do tempo.

Lídia Jorge, “Perfume”, in Praça de Londres, p. 73

Perfume

Embora seja no romance que encontremos o melhor da sua arte, convirá não esquecer que Marido e outros contos (1977) é uma obra absolutamente notável e que O belo adormecido (2004), metade por metade, é não menos notável. Praça de Londres não vai tão alto, e creio que antes de mais o problema está na brevidade destes contos — a escrita de Lídia Jorge precisa de espaço para a reiteração e para a construção do pequeno pormenor que devém decisivo. Em todo o caso, e só por isso já valeria a pena, o último conto, Perfume — o mais extenso, claro —, é de antologia.

Psicopatologia da vida quotidiana # 39

Ela, arrastando firmemente o cadáver afectivo dele e escolhendo yogurtes magros: “Eu sou uma pessoa que assumiu uma determinada forma, depois de determinados antecedentes e antes de transformações posteriores.”