Os trabalhos e os dias (21)

Deve haver uma figura mitológica para isto, mas não sei qual é. Para isto de corrigir exames e ler a deformação das nossas afirmações, dos textos que comentamos, dos autores de que nos socorremos. Expulsaram os nossos antepassados do paraíso porque comeram da árvore do conhecimento. Quase de certeza que foi uma precipitação. Deviam-lhes ter feito um exame. E tendo chumbado, ainda andaríamos por lá, entre serpentes e maças, na paz do senhor.

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # reprise

Adio para segunda-feira a publicação do texto de um modo que tornará a sua autoria quase explícita. Entretanto, para eventuais retardatári@s, aqui fica de novo o texto que nos ocupa e cuja autoria se trata de identificar:

Alcançamos, seguindo uma via de silêncio mútuo, o cimo de uma ladeira onde, além de podermos ver, debruçados numa ponte, as linhas férreas por onde seguiam andorinhas, vislumbrávamos as linhas curvas da paisagem que ensinam os olhos e libertam, sem palavras, os soluços da garganta.

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 7

Miss Allen (por mail): O autor é Luís Mourão e se não é bem pode continuar a sê-lo.
Humm... Não me parece. Não enjeitaria, mas não me parece.

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 6

Uma leitora devidamente identificada só pede a toda a corte celeste e infernal que o texto não seja um arroubo de boa literatura da Margarida Rebelo Pinto — embora me julgue suficientemente perverso para colocar um texto da dita cuja a ilustrar tão magna questão como a de “Arte & Contexto”.
Descanso a leitora e demais interessados: não é um texto da dita cuja. Mas até fico com pena de não me ter ocorrido a perversidade...

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 5

Três leitor@s devidamente identificados arriscam:
1. Torga, por causa das serranias, andorinhas e soluços da garganta.
2. Mário de Carvalho, por um certo sabor a pastiche, certamente de um dos seus romances “históricos”.
3. Miguel Real, porque parece a reconstituição de uma linguagem de época.

O meu muito obrigado aos três leitor@s. Ninguém acertou, mas a argumentação é boa, e obrigar-nos-á a conclusões ainda mais interessantes quando se desvendar a autoria.

Quem é o autor? ou Arte & Contexto # 4

Com a turma de mestrado, falamos longamente acerca das possibilidades de autoria deste texto:

Alcançamos, seguindo uma via de silêncio mútuo, o cimo de uma ladeira onde, além de podermos ver, debruçados numa ponte, as linhas férreas por onde seguiam andorinhas, vislumbrávamos as linhas curvas da paisagem que ensinam os olhos e libertam, sem palavras, os soluços da garganta.

Ninguém acertou, o que foi bom, porque assim o debate foi muito produtivo. As hipóteses mais interessantes foram estas:
1. Algures entre um epígono de Eça e um Eça muito melhorado, ou que tivesse com a paisagem uma relação metafísica “naturalizada”, quer dizer, sem necessidade de sublinhar o sublime, incorporando-o apenas como reacção natural e quotidiana.
2. Neste sentido, poderia ser um texto de um Vergílio Ferreira com o pathos controlado, embora o encaixe sintáctico seja substancialmente diferente do seu modo nervoso de escrita.
3. A hipótese que mais agradou foi a de que se tratará de um texto recentemente encontrado na arca pessoana, atribuído a um novo heterónimo.
4. Finalmente, causou uma viva estranheza o facto de as ligações dentro do parágrafo terem o acerto pesado de uma redacção de quarta classe — aquele “onde” magoa mesmo o ritmo — e o que está a ser dito ter a gravidade da mais funda sabedoria.

Publicarei de novo o texto amanhã, de um modo que tornará a sua identificação quase imediata.

A imensa minoria

Atrasei-me, já não há bilhetes para a conferência de Giorgio Agamben logo à noite, em Serralves. A imensa minoria destas coisas está a crescer?.. Gostava de pensar que sim. Mesmo descontando o algum chic, vi rostos realmente interessados. Vamos pensar que sim.

Adenda: o Pedro Eiras leu o post em tempo útil e às oito e meia em ponto conseguiu bilhetes reservados que não foram levantados. Vantagens de ter um blog e leitores à altura. De Agamben, depois falamos.

Privado, ou nem tanto

Pediste uma resposta honesta, frontal, etc — tudo o que está no pacote quando se pede uma resposta assim. Só há um problema quanto a isso. É que quando se pede uma resposta assim, pressupõe-se que vamos ouvir uma espécie de revelação qualquer. Nunca estamos a pensar que a resposta possa ser um prosaico e enrascado "não sei". E contudo, não tenho outra resposta para te dar a não ser precisamente um prosaico e enrascado "não sei".

Epifanias # 70

Quem é o autor?* ou Arte & Contexto # 3

Alcançámos, seguindo uma via de silêncio mútuo, o cimo de uma ladeira onde, além de podermos ver, debruçados numa ponte, as linhas férreas por onde seguiam andorinhas, vislumbrávamos as linhas curvas da paisagem que ensinam os olhos e libertam, sem palavras, os soluços da garganta.

*A pergunta é mesmo directa, não visa qualquer armadilha teórica. O texto tem autoria. Respostas para: luis.mourao@mail.telepac.pt

Foi até muito bom

Geometria sensitiva. E afinal melódica.
E essa coisa extraordinária de um mundo vasto, mas perfeitamente singular, se poder definir ou identificar por dois ou três traços. Aquilo que nos leva a dizer: ah, isso é philip glass... Mesmo que não seja, passa a ser. É essa a força dos grandes.
Em palco, um homem simples e afável. Mais a música que ele. Como deve ser.

Impossível ser mau...

Plano nacional de leitura

Barcos. Nomes de mulheres. Um ou outra flor. Nome de um proprietário mais macho ou mais convencido do seu pecúlio. É só na dimensão do recreio ou do luxo que aparece a mitologia, o segundo sentido poético ou a inventividade genial de um nome que se basta a si mesmo. Isto tem uma moral, mas não é nada agradável. Ou isso, ou é irrelevante.

Juros de demora # 4

Este país, de facto, é um cemitério sem saída.
Manuel de Freitas, Juros de demora, Assírio & Alvim, p. 27

No nosso isolamento imposto, ainda podíamos dizer, como Ruy Belo: o meu país é o que o mar não quer. A imagem não era um comprovativo, apenas um lamento abstracto que admitia correcção futura. Agora, europeus por direito próprio e alguma prática, em especial a dos inquéritos sociológicos e psicológicos, ou seja, não podendo mais escapar à comparabilidade, somos um cemitério sem saída. E somo-lo "de facto". "De facto" é o que no verso diz a sua pertença à actualidade. Uma época em que sabemos que sabemos. É também por isso que a realidade já não aproveita muito à poesia.

Epifanias # 69

As noites dos meus dias, a luz da madrugada.

Epifanias # 68

- E se nunca ninguém vier?
- E se nunca ninguém veio e tu estás simplesmente enganado?

Juros de demora # 3

Não é fácil falar
das coisas que nos matam.
Manuel de Freitas, Juros de demora, Assírio & Alvim, p. 17

Além do mais, é sempre demasiado cedo. Ou demasiado tarde. Mas não é pela questão do tempo, é pela questão do excesso. É sempre demasiado.

Regressar

Não, não é a melancolia, a delicadeza, o impresionismo. É mesmo a dor dilacerante, o fio de corda que estendemos sobre esse abismo, e atravessá-lo como se deambulássemos por paisagens capazes de hospitalidade. É por isso que se regressa uma e outra vez a Evans.

Petição

Para conceder estatuto de refugiado político a assistentes que queiram abandonar os seus (i)legítimos catedráticos ou similares e ingressar noutros departamentos que não se rejam pelo lema «Assistente não pensa, executa.»

Juros de demora # 2

Não sei de que fugíamos.
Dizer que era da vida pareceria
demasiado lírico, demasiado verdadeiro
— e a vida raramente aproveita a um poema.

Manuel de Freitas, Juros de demora, Assírio & Alvim, p. 14


Por vezes, só a arte (a literatura, por exemplo) permite começar a dizer a proximidade à verdade. Não é dizer a verdade, muito menos saber a verdade, mas começar a dizer a proximidade à verdade. Desse terreno que não é ainda a verdade mas a ela conduz interminavelmente, diz-se que é demasiado lírico, i.e. improvável, irrealista, desfasado, e demasiado verdadeiro, i.e. insuportável, indomesticável, impenetrável. Claro que a verdade é ociosa — claro. E por isso a arte (um poema, por exemplo) aproveita pouco da vida, i.e. da verdade. Mas isso tem um preço, como existencial e ontologicamente tudo tem um preço: o de ter de atravessar a órbita da verdade para dela conseguir escapar. O que também é coisa ociosa — claro. E pagará juros de demora.

Joss

Confesso: estou preocupado. Joss, Joss Stone, anda triste. E a tristeza, ao contrário do que muito boa gente pensa, não produz grande arte. A pós-tristeza sim. A sobrevivência à tristeza também. Mas a tristeza propriamente dita é apenas tristeza. Acontece que Joss anda triste. Tem vinte anos e há dois anos que não tem namorado. Como é possível? Tem o talento, tem a beleza. Tem até o dom da ironia: só quer namorar para dar trabalho às revistas do coração... Eu oferecia-me, não fosse ela ter demasiado a idade e o look geracional da minha sobrinha. Pareceria incesto, por assim dizer. No fundo, sou um conservador - tss, tss... Mas fica aqui o alerta para rapazes mais novos ou entradotes menos conservadores. Por favor, façam a Joss uma mulher feliz. Eu agradecerei a música, depois. Porque há no amor suficiente alegria e suficiente tristeza para a grande arte.

Juros de demora # 1

Brincamos, somente, com os castelos
da morte. Talvez me bastasse
ter-lhe respondido que nunca escrevi
sobre nada; limito-me a anunciar
que vou morrer, com razoável certeza.

Manuel de Freitas, Juros de demora, Assírio & Alvim, p. 10

Pode uma poesia limitar-se a anunciar reiteradamente a razoável certeza de que se vai morrer? Pode. Qualquer anúncio exige estratégia, estrutura, cálculo e risco. Há muitos ingredientes para cada uma destas coisas. Suficientes para muita poesia.
Estratégia? Um não-herói sozinho. Estrutura? Verso de rédea curta, como uma cerveja ou um copo de vinho na mesa estreita de uma taverna escura. Cálculo? Sombras, traços disfóricos, o que aí está à vista de todos, mas segundo o ângulo mais raso. Risco? As referências naturalmente intelectuais, que põem tudo a funcionar entre uma leitura de segundo grau e uma experiência que, antes de ser da vida, o é da literatura tout court.
Mas, naturalmente — muito naturalmente, aliás —, isto não pretende ser uma síntese da poética de Manuel de Freitas. Até porque não há sínteses da poética de ninguém. Ou se as há, eu não acredito nelas — o que é uma frase que mereceria um longo desenvolvimento. Mas não vou tirar tempo ao poema com estas tretas teóricas e idiossincráticas.

Terror

Jogar a feijões. Como as crianças sabem sem saber o valor essencial de tudo. Depois crescem. E esquecem-se, dizemos nós, quando vemos as altas paradas dos casinos ou das vidas de todos os dias. Mas somos nós quem não vê a seriedade com que as crianças jogam a feijões. O terror da existência está aí todo intacto.

Multiplex 32 # três

- Sim?..
- Estava a pensar nas palavras da domadora.
- Domadora?! (risos)
- Passemos o lapsus à frente, pode ser? Comoveu-me a descrição do melhor orgasmo da dominadora: no fim, pensou que não estava só, que a solidão tinha acabado.
- Mas não tinha...
- Não, não tinha. O que faz raccord com a definição desse clube sexual que dá o título ao filme: é como nos anos 80, mas com mais desespero.
- E é mesmo...

Multiplex 32 # dois

- O filme, sim, era disso que estávamos a falar...
- O filme tem um realizador dentro, parece-me.
- Definitivamente, um nome a fixar.
- E personagens com alguma espessura, a carne vai-se enxendo com as psicologias que as animam.
- Psicologias... O termo não é inocente, pois não?
- Não, não é. Há um lado de catálogo de disfuncionalidades sexuais que não é negligenciável, mas a vida também tem isso.
- E há uma metáfora enraizada no real, coisa que o cinema muitas vezes não tem.
- O apagão de Nova Iorque pouco depois do 11 de Setembro?
- Ligado à ausência de orgasmo e ao seu encontro de uma forma bem individual, solitária...
- Eu quase que diria auto-construtivista... (risos)
- Pois... A metáfora não é lá grande coisa, mas a imagem da masturbação no banco de jardim à beira-mar é poderosa na forma como repõe certos mecanismos do narcisismo primário ligados a uma ideia de natureza perdida.
- Hi, onde nós já vamos... (risos) Até porque o filme, lá para o fim, cansa o seu tanto, tal como aqueles filmes do erotismo europeu dos anos setenta.
- É, coisa o seu tanto claustrofóbica. Mas se formos a ver, claustrofobia é o que mais há no cinema mainstream: a redução dos motivos a uma platitude que não complexifica a vida toda.

Multiplex 32 # um

John Cameron Mitchell, Shortbus

- Há qualquer coisa no filmar explícito do sexo para o grande público que vai mudando.
- Como vão mudando as práticas sexuais do grande público. Ou melhor, mudam primeiro essas práticas e só depois a visibilidade delas nos filmes do grande público. Como é natural.
- Sim, como é natural. Há vários sites na internet, completamente amadores e gratuitos, onde o público pode colocar os seus vídeos amadores das suas práticas sexuais. Todos eles mimetizam a sexualidade dos filmes pornográficos, mas incorporando essa sexualidade na sua prática quotidiana. O interdito tornou-se simples norma do prazer.
- Às vezes até demasiado normativo...
- Bom, também é natural que aconteça. Mas o que me parece importante é que o esfumar desta barreira entre a filmagem do porno e a filmagem do sexo no mainstream não diz respeito ao que se pode ver, mas a uma prática sexual diferente. Os inquéritos confirmam os vídeos sexuais amadores.
- E o filme?
- Claro, o filme, era disso que estávamos a falar, não era?

Psicopatologia da vida quotidiana # 28

Fala da jovem vendedora: “É tão fácil vender roupa a homens como dar chocolates a crianças”.

Começar

Gosto da tua Susanna e da sua magical orchestra. Ouve um tempo em que a lentidão era a melancolia — há toda uma discoteca da ECM para o provar. Mas esta lentidão por dentro da lentidão é um começo a partir do essencial.

A Leitora, no seu infinito particular (LIX)


Gosto da tua Dee Dee Bridgewater. O fogo e a alegria exuberante é a primeira impressão. A serenidade a segunda — e mais funda. Tudo está certo, assim alegre e exuberante. Sem a construção histérica da alegria e da exuberância para consumo de plateias vagamente entediadas.

Epifanias # 67


quando a alma magoada errar por
toda a parte e
o esquecimento — então

da ombreira de uma porta ou do cimo de uma colina
ainda o desejo,
tão quieto como uma coluna tombada, vai estar à tua espera
com um beijo de pedra.

João Miguel Fernandes Jorge, Termo de Óbidos
Relógio D’Água, 2006, p. 81

Rebecca Moore

Gostei da descontracção tipicamente nova-iorquina. Do arranhar da voz sem pose de anti-estrela, apenas a dizer ou a gritar as coisas. De sentir que há ali um mundo que não se deixa definir por umas quantas fórmulas musicais e obsessões temáticas. Tem ela espaço para crescer e eu espaço para vir a gostar mais.

Ou isso

A derrota. O conforto da derrota. O amarfanhar do que pensavas. Pô-lo como um cachecol por cima da gola alta, só para enfeitar. Ou fazer estilo. O conforto da derrota. Ou sabes alguma coisa ou pertences apenas à raça desprezível dos que encolhem os ombros a tudo.

Dar a volta à coisa # 22

As pessoas vão de um lado ao outro. Mas quando fazem o percurso inverso não se diz que vêm do outro ao lado um. A linguagem discrimina o outro, condena-o a destino, ponto de chegada, não partida ou lugar inicial.

Dar a volta à coisa # 21

O mau político está sempre a confundir um lado e o outro. O bom político também. Mas o mau político confunde pelas más razões, e o bom político pelas boas razões. Daí a importância do chamado discernimento político. Que nada discerne, porque realmente nada há para discernir, há apenas que atribuir valor.

Epifanias # 66

esse passado é quase tão alheio que mal cabe no limite da vida

João Miguel Fernandes Jorge, Termo de Óbidos,
Relógio D’Água, 2006, p. 13

Dar a volta à coisa # 20

Estar morto é tirarem-nos de um lado e meterem-nos definitivamente no outro.

Dar a volta à coisa # 19

Realmente zen seria tirar de um lado e não pôr no outro.

Dar a volta à coisa # 18

Perfeitamente ocidental seria não tirar de um lado e pôr no outro.

Dar a volta à coisa # 17

Arrumar é tirar de um lado e pôr no outro.

Dar a volta à coisa # 16

O problema de tirar de um lado e pôr no outro é que isso revela que há dois tipos de pessoas: as suficientemente complicadas para verem nisso um problema, e as suficientemente complicadas noutras coisas para não verem nisso um problema.

Dar a volta à coisa # 15

O problema de mudar de casa, do sexo anal e de levantar dinheiro no multibanco, é que não se trata apenas de tirar de um lado e pôr no outro.

Dar a volta à coisa # 14

O valdevinos é o tipo que não tem dinheiro suficiente para valorizar a discrição.

Dar a volta à coisa # 13

Do estroina ao efabulador, é apenas uma questão de corte na mesada.

Epifanias # 65


dilacerante felicidade, sem nome sem razão
onde poisar em noite de muita chuva

João Miguel Fernandes Jorge, Termo de Óbidos
Relógio D’Água, 2006, p. 10

E o verso longo?

perguntam-me num mail acerca de “cortar e retirar”. Mas não é o mundo, por vezes, demasiado longo? Tanto que cortar e retirar deixa ainda um verso longo? O que importa é que cortar e retirar nos deixe sempre à beira do abismo. E todo o solo quotidiano é abismo, segundo o ritmo da poesia. A lenta volúpia de cair — mas disso falaremos depois*.

*A lenta volúpia de cair é um verso de Luiza Neto Jorge que Pedro Eiras usa para título do seu mais recente livro de ensaios sobre poesia. A seu tempo aqui virá. Há que cair com a lentidão necessária à volúpia.

Quanto tempo, quanto

tempo para aprender a falar o mundo segundo o ritmo da poesia:

Lembro-me de três factos, apesar de
«não te podes recordar»
ouvir acerca de fugaz instante: na casa velha, que era
dos Vieiras, a porta da rua dava para uma sala, sentado
numa cadeira de bunho, manta sobre as pernas
o meu avô paterno.

O ritmo do mundo tem também as suas cesuras e as suas elisões. Mas o que a poesia corta e retira é para que o ritmo do mundo se pareça com o ritmo da poesia que o fez nascer. Como se tudo viesse de nós — memória e invenção são irmãs gémeas —, sabendo que simplesmente tudo passa através de nós. Mas que o ritmo se altera, alterando-nos. Cortar e retirar.

E Agustina?

Sim, um júri deve argumentar. Deve tornar o mais claro possível aquilo que juridicamente se chama o seu “itinerário cognoscitivo”. É por isso que quero aqui responder, em meu nome — um júri é sempre uma soma de nomes individuais, convém não esquecê-lo — à pergunta que algumas pessoas me fizeram por mail: que me levou a não preferir A Ronda da Noite?
Desde logo, esta nota curiosa. A pergunta envolveu sempre A Ronda da Noite, e não O Cemitério de Pianos. Provavelmente, mera coincidência. Mas acertada, no que me diz respeito. Considero José Luís Peixoto um autor de indiscutível talento, mas ainda à procura de poder “dizer qualquer coisa” com o talento que lhe calhou e que tem oficinalmente desenvolvido através de vários itinerários formais. Neste momento, José Luís Peixoto faz-me lembrar aqueles antigos patinadores de leste: potencial técnico irrepreensível, mas coreografia fria, com vida não vivida por dentro. O seu primeiro romance teve o sangue e nervos mastigados que nos romances seguintes como que se ausentou. O melhor que se pode desejar a um autor assim é que a vida não lhe seja fácil — sem que isto, naturalmente, seja desejar-lhe mal. O grande romance virá.
Agora A Ronda da Noite. Muito simplesmente, é uma obra-prima. Provavelmente, é também o melhor romance de Agustina. Isto não é um juízo eufórico, é um juízo, digamos, histórico. Porque esta obra-prima poderia ter sido escrita há oitenta ou cem anos atrás. Pelo tipo de personagens, eventos, reflexão e linguagem — nada em A Ronda da Noite nos abre directa e flagrantemente a contemporaneidade. Agustina não é contemporânea, é como as tragédias gregas – está lá tudo, só temos de “traduzir” isso para o nosso tempo e os nossos termos.
Com todos os riscos que isso envolve — e são muitos, e farão de nós, no futuro, críticos que erraram o seu tanto — um prémio de romance de 2006 deveria ler 2006 sem a mediação do “clássico”. É uma forma de dizer. Mas é a minha forma de dizer, e é a minha assinatura que está lá. E a assinatura, podendo ser entendida como vaidade (que também é) e como responsabilidade (que também), é mais radicalmente a marca da contingência.