A Leitora, no seu infinito particular (IV)


- Desta vez foi logo à primeira!
- Sorte, Leitora, puro golpe de sorte. Estou entre reuniões. Ou para ser mais exacto, as reuniões estão entre mim e mim, e a distância é grande...
- Compreendo. Faça uma pausa comigo, queria ler-lhe uns versos.
- Versos?
- Porque não? Até os deve conhecer, andou a citar o livro no blog.
- Ah...
- Por acaso, não acho que o livro, no conjunto, chegue à altura dos versos que citou.
- Também nunca disse que chegava, para pôr as coisas nos seus termos. Apenas citei a altura, ainda para continuar nos seus termos.
- Pois, é verdade. Mas sempre se poderia presumir que...
- Termo exacto, o seu. Mas não dei a presumir, dei a ler.
- Seja. Consegue aí um espaço para me ouvir?
- Dê-me um momento, deixe-me entrar aqui... isto serve, acho que é o arquivo, há um pouco de silêncio... Preciso de fechar os olhos.
- Faça escuro e antigo por dentro dos olhos fechados, eu espero.
- Escuro e antigo, gosto disso. Escuro e antigo...
- Eu espero...
- Sim, mais um pouco, se não se importa. Escuro e antigo...

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Mais Instituto praTodos

(17)








— A nova comissão estratégica para pensar o futuro do instituto decidiu, por unanimidade, transformar a “alocução importantérrima” daquele que não é o seu chefe na plataforma para as suas conclusões.
— E acrescentou-lhe o quê?
— Um voto de confiança inequívoco nas capacidades de liderança daquele que não é o seu chefe.

A Leitora, no seu infinito particular (III)

Faris Nourallah, Near the sun

- Até que enfim, já estava aqui a fazer um grande filme com a sua incomunicabilidade!
- Eis o esplendor da frase sintomática.
- Como?!
- A prova de que você existe, e tem a idade que tem, mais os conhecimentos que pode ter.
- Agora perdi-me... O Luís está bem?
- Trabalho a mais, é só. Mas a questão da sua frase é simples: o “grande filme” é uma expressão bem da sua geração, o “incomunicabilidade” já é um termo da sua instrução acima da média.
- Tanta análise para coisa tão miúda.
- A importância do pormenor, do sintoma. Não esquecer, Leitora. E consigo, tudo bem?
- Mudei de música, estou mais próxima do sol, agora. Com brisa leve, qualquer coisa de agridoce no ar. Desfaz-se nas calmas, mas deixa rasto. É disso que preciso.
- Também não apanho essa, pois não?
- Mas pode ouvir um bocadinho, eu subo o volume.
- Não sei meter áudio no blog, deixe estar.
- Mas quem estava a falar do blog? Eu ofereço-lhe daqui um bocadinho, acho que lhe vai fazer bem. Vá, ouça, depois amanhã falamos. E descanse. Ou como li num sítio qualquer, feche o dia...

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Mais Instituto praTodos

(16)








— Aquele que não é o seu chefe fez uma “alocução importantérrima” no acto de posse da nova comissão estratégica para pensar o futuro do instituto.
— E então?
— Generalidades.
— Ora, lá está você outra vez...
— E uma ideia forte.
— Bem me parecia que tinha de haver uma ideia!
— Sendo crível que a actual conjuntura do ensino superior obrigue a redimensionar a rede, o instituto deve ser preservado tendo em vista a sua importância no desenvolvimento regional.
— Hum... E dos outros estabelecimentos da rede, disse alguma coisa?
— Que obviamente devem ser ajustados às necessidades nacionais, tendo em vista o uso ponderado do dinheiro dos contribuintes.

Para variar, uma certeza

- hum… ãã…
- É só para perguntar se já fez a oração matinal do crítico.
- Mas isto são horas?.. Deitei-me tão tarde…
- Então quando acordar mesmo não se esqueça de fazer a oração matinal do crítico. Com fervor, Leitora, ou as suas preces não serão atendidas…
- Mas está a falar de quê, meu deus?
- Exactamente isso. Primeiro, peça estômago capaz de digerir essa coisa light. Depois, peça a benção de se deparar com um nome que seja marca registada. Finalmente, peça a suprema ventura da providência cautelar.
- E não será pedir coisas a mais?..
- Pois… da bondade de deus, de facto, parece que já não há muito a esperar. Pelo contrário, da estupidez humana, pode-se esperar tudo. Portanto, peça. Peça com força e verá que é atendida.

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Mais Instituto praTodos

(15)








— Aquele que não é o seu chefe elogiou a providência cautelar em boa hora interposta pelos visados.
- Mas a democracia, a crítica?..
- Mas não os ataques pessoais, disse aquele que não é o seu chefe.
- E eram ataques pessoais?
- Aquele que não é o seu chefe diz que é impossível conjugar na mesma frase couves & alforrecas sem que isso constitua um ataque pessoal da mais baixa estirpe. E acrescentou que há outros termos que...
- (interrompendo) Não quero saber mais nada, até amanhã, até amanhã...

Uma dúvida, deveras

- E se a providência cautelar for para defender os interesses das couves & alforrecas? E se for, hem? Que me diz a isso?
- Digo-lhe que já é tarde, cara Leitora. Já não são horas para ligar sobre esses assuntos.
- Mas imagine que era. Imagine, sei lá, que é tudo uma questão no fundo ambientalista.
- Nesse caso devia ser ao contrário, não lhe parece? Uma acção, por ofensas e injúrias, das couves & alforrecas contra a Margarida Rebelo Pinto e a Oficina do Livro.
- Está a ver?
- Estou a ver o quê?
- Tudo o que uma ideia absurda precisa para existir é que lhe dêem atenção por um momento que seja. A partir daí ela faz o seu próprio caminho.
- Deveras... E sempre são menos insondáveis os caminhos das providências cautelares, lá isso é verdade.

Deveras, uma dúvida

- Tenho uma dúvida sobre esse post aí de baixo.
- Diga, Leitora.
- Não estarão todos feitos?
- Como assim?
- Não há como um escândalo para apimentar as vendas. E assim ganham todos. É que de outra maneira não se percebe.
- Não?
- O ensaio não vende, ninguém lê essas coisas, muito menos o público que a lê a ela. Não se percebe.
- Está a esquecer as pretensões.
- Que pretensões?
- Aquelas entrevistas em que ela dizia que ainda havia de escrever um romance a sério, comme il faut, coisa em grande estilo.
- Ah, isso...
- Pois, isso. Com uma crítica destas só lhe resta fazer como o Paulo Coelho e dizer que o Joyce manifestamente não sabia o que fazer com um romance.

Se a coisa pega, lá se vai a crítica (ou o que resta dela)

- A Leitora leu-a?
- Adiei sempre. E depois daquilo já não valia a pena. Se bem que houvesse umas questões de “ar dos tempos” que talvez valesse a pena pôr.
- Acha?
- Pensando bem, se calhar até não. O que foi dito já pôs a sintomatologia demasiado à mostra.
- Pois olhe, agora despiu-se por completo.

Multiplex 3 (pastoral)



- Fiquei um pouco preocupada consigo.
- Mas porquê?
- Qualquer coisa no tom de voz ou no seu mau-humor. Diga-me que não é nada grave.
- Não é nada grave. Aliás, pouca coisa é grave. Mas eu também fiquei a pensar.
- Sim?
- Era para falarmos de Transamerica, de que aliás eu gostei bastante, mas a Leitora veio-me com o Brokeback Mountain e eu penso que isso é porque o mecanismo de construção do clássico já começou.
- Se a gente se lembra, é porque vai devindo clássico.
- Sobretudo se a gente se lembra não a propósito do filme mas para os propósitos que a nossa vida põe.
- Ah, gosto da fórmula...
- Estou então perdoado?
- Já estava, não se preocupe. E que põe a sua vida, se é que posso perguntar?
- O que todas as vidas põem com mais ou menos evidência: tudo o que temos é alguns dias em Brokeback Mountain.
- E isso é pouco?
(silêncio)
- (a medo) Perguntei alguma coisa de errado?
- Não... Mas a outra pergunta, vinda de si, minha querida jovem Leitora, é uma resposta que não esperava.

Multiplex 3


- Uma coisa leva à outra, é sempre assim.
- Pois, mas quem tem de andar para aqui a mudar os cartazes do multiplex sou eu. Bom, o que é que queria ainda dizer acerca do Brokeback Mountain?
- É apenas um acrescento pequeno à leitura do Groucho. Ou nem será bem acrescento, porque o Groucho não estava propriamente a falar disso, e o Luís também não.
- Não tenha problemas de re-ler, as Leitoras têm essa função.
- Não tenho probemas, mas devo ter os escrúpulos necessários à boa re-leitura, não acha?
- Touché. Não o diria melhor. Sou todo ouvidos, agora.
- É ainda a questão do final. Aquela dor que o vence a ele, a dor de ser o sobrevivente do amor...
- ... bonito, uma poetisa...
- ... não é só o velho reconhecimento da história de amor, ainda que o seja de um modo muito visível, mas talvez uma coisa ao mesmo tempo mais simples e mais importante para o sentido do filme.
- Poetisa e retórica, esta pausa é dos cânones. Continue, continue...
- Aquela dor torna-o humano para lá de qualquer questão de identidade ou de escolha sexual. E o filme faz-nos aceitar que aquele homem tem direito à dor da perda de um outro homem, como todo o sujeito tem direito à dor da perda daquilo que dá sentido à sua existência.
- Continue...
- O filme termina onde a questão da homossexualidade se torna indiferente e nós nos podemos tornar mais humanos. As lágrimas dele não têm género nem identidade.
- Muito certo, parece-me... Mas não avance mais ou ainda me recita a “Lágrima de preta”...
- Que frieza a sua! Que é...
- (interrompendo) Desculpe, são as irrupções do meu humor-negro, tente não ligar. Estes tempos são difíceis para as palavras profundas, as falésias do lugar-comum espreitam a cada passo.
- E agora ironiza dando-me um cliché para cima!
- Involuntário, bons deuses, involuntário. É o cansaço, só pode ser. Salve-me com a canção, está bem?
- Qual canção?
- A sua Marisa Monte. Também já tenho. Aquele verso “dou-lhe o melhor e o pior de mim”...
- Hum... O seu infinito particular, é isso?
- Qualquer coisa assim. E também dá para o filme, já viu?
- Dará para quase todos...
- É, qualquer coisa assim.

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(14)








— Aquele que não é o seu chefe criou uma nova comissão estratégica para pensar o futuro do instituto.
— Hum... E continua a presidir à comissão?
— Tem de ser. Diz que há informações a montante e a jusante que só o chefe está em condições de fornecer.
— E a coisa não se resolvia com um memo?
— Isso é informação extática, o futuro implica fluxos permanentes e capacidade de deslizar na rede.
— E ele desliza?
— De comissão para comissão, sem dúvida.

A Leitora, no seu infinito particular (II)


— Que aconteceu mais, afinal?
— Enganei-me. Na circular, em vez de meter para norte, saí para sul.
— Enganou-se?..
— Já sei que não há enganos, também conheço a cartilha do Sr. Freud. E nunca me tinha acontecido, o que só reforça a coisa de não haver enganos.
— Nunca se tinha enganado?
— Desta maneira, nunca. Quanto a orientação, sou uma condutora, qual será o termo?, eu diria que infalível. Acha que é demais?
— E como quer que eu saiba, se a não conheço? Acredito em si, para este ponto é suficiente. Por onde anda agora?
— Alentejo adentro, muito pacata, muito senhora do meu tempo. Às tantas dei comigo à procura de um vilarejo, tal como na canção.
— E você a dar-lhe com a Marisa Monte!
— Mas é tão lindo!.. “Na varanda, quem descansa / vê o horizonte deitar no chão / Pra acalmar o coração”.
— Foi por isso que você se enganou? Pra acalmar o coração por aí?
— Hum... E se eu disser que me limitei a procurar um solar com varanda e horizonte a condizer?
— Você diz apenas o que quer, e em boa verdade eu nem sequer tenho de perguntar por isso. Mas como a conversa começou pelo engano...
— Um dia destes estou aí, isso é certo. Mas para já vou andando. Se calhar precisava de férias... Ou de não ir em linha recta, o que não é bem o mesmo.
— Posso perguntar uma coisa?
— Parece grave...
— Não exactamente. Encontrou a varanda, o solar com varanda?
— Logo à primeira. É Alentejo, percebe? Foi a pernoita de ontem, agora continuo.
— Esteve muito tempo à varanda?
— Bastante, sim.
— Interferências literárias? Pessoa, Mia Couto?
— Devia?
— Dever, não devia. Apenas pergunto. A tal outra varanda, ou o frangipani, qualquer coisa assim?..
— Não. Mas pensei um bocado que precisava de falar consigo sobre o Transamerica.
— O filme?
— Isso mesmo, o filme.
— Bom... Mas então deixe-me mudar de post, isso é um multiplex, é preciso respeitar as séries.
— Ah, eu sabia que você ia dizer isso!
— Ou não fosse você uma Leitora avisada, não é verdade?..

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(13)








— Aquele que não é o seu chefe criou uma comissão estratégica para pensar o futuro do instituto.
— Excelente.
— A que ele preside.
— Hum, não sei se...
(interrompendo) Reuniram uma vez por semana, no último mês.
— E já há resultados?
— A comissão vai ter de ser inteiramente remodelada, todos os elementos alegaram sobrecarga auditiva.
— Falaram muito e não se entenderam, foi isso?
— Isso, ou a frequência da voz daquele que não é o seu chefe causa saturação irreversível.

Os mandarins também se abatem? Oh, sem dúvida...


O texto de Eduardo Pitta é tão sóbrio e justo na sua denúncia, quanto participante no “não havia necessidade” do assassinato. O que diz é inteiramente correcto: alguém teve poder (não sei se tanto como Eduardo Pitta dá a entender, mas tomo a sua informação como a de alguém que sabe do que fala), alguém que raramente foi desafiado nesse poder, alguém que só agora, “que o fazem mais doente do que está”, é criticado pelas mesmas coisas que já mereceriam crítica há vinte anos atrás (não vou discutir se já há vinte anos, porque o meu ponto é outro). “Portugal não muda. É pena.”, conclui Eduardo Pitta.
Ora, onde Portugal também não muda, e é pena — sobretudo vindo da frontalidade e sobriedade de Eduardo Pitta —, é naquilo que o seu texto omite. E omite o quê, o texto de Eduardo Pitta? Os nomes próprios. O que deveria ser o justo combate na arena do espaço público, torna-se piscadela de olho para iniciados: não o espaço público, mas a apropriação desse espaço para conversa privada.
Penso que não estarei errado ao presumir que o texto se refere a Eduardo Prado Coelho. Agora Eduardo Pitta dir-me-á se havia necessidade de ter usado o “ele” em vez do nome próprio. Por alguma razão — mas podem ser razões demasiado privadas, que sei eu? —, lembro-me de Eduardo Prado Coelho ter escrito não sei aonde que a maior violência que sofreu na sua integridade foi quando dois médicos, falando entre si, se lhe referiram como “ele”. Coisa que vinda dos médicos, naquele contexto, era perfeitamente aceitável, mas que foi sentida como sinal evidente de que estava em perigo.
Não sei qual é a “piadola soez” a que Eduardo Pitta se refere, nem quem o seu autor. Se calhar também não ganharei nada com isso, a não ser acrescento de alguma tristeza e de alguma justa indignação. Mas preferia saber. Porque às vezes começo a pensar que não é bem Portugal que não muda, mas apenas algumas pessoas. E não queria que essas pessoas não se ouvissem chamadas pelo nome próprio à responsabilidade que lhes cabe.
É pouca coisa como medida de transformação do espaço público? Claro. Mas porque não começar por aí?

A Leitora, no seu infinito particular (I)


— Tinha a certeza que era você.
— Isso é que é segurança. E saber!
— Era uma certeza simples, qualquer coisa como saber que faria todo o sentido que fosse você, e que esse sentido não constitui nada de extraordinário. Bom, onde é que você está, Leitora? Já chegou, está a caminho, ainda não partiu?
— Digamos que estou a caminho.
— Explique lá isso.
— Parti. Ou deixe-me ir um bocadinho atrás. Tinha decidido partir, e fiz todas as diligências necessárias para isso. Contas, chaves a gente de confiança, esvaziar o frigorífico, tudo isso. Saí de casa para partir, mas passei ainda na Gulbenkian. Não tinha nada de particular a resolver lá, mas senti que era necessário.
— Compreendo.
— O que é que compreende?
— Que de facto tinha alguma a resolver na Gulbenkian, mas não sabia o quê.
— Pois foi. Descobri isso na sala multimédia. Gente ocupadíssima com as suas teses e trabalhos, mas a atmosfera não é de concentração, é de enclausuramento.
— Não seria disciplina, solidão necessária?
— Não. Quando levantam a cabeça, não há pensamento no seu olhar, apenas fadiga e trabalho.
— Não seria transpiração? Conhece por certo...
(interrompendo) Não é isso. Não há o brilho ou a sede de comunicar. Quando falam, é como se fossem um relatório, não uma aventura ou uma pergunta que as faça viver.
— Hum...
— Fui lá confirmar que tinha mesmo de partir.
— Compreendo. Mas pode regressar quando quiser, por isso...
— Eu sei. Mas assim é melhor.
— De modo que está a caminho.
— Estou, mas há mais.
— Bom... Espere só um pouco, tenho aqui uma outra chamada, já lhe ligo de volta. E vai ter de baixar um pouco mais essa música, ouço-a com alguma dificuldade.
- Não gosta da minha Marisa Monte? Tão a propósito, este infinito particular.
- O propósito seria ouvi-la a si, não acha? Mas eu já lhe ligo.

notas da consulta 4

K. tinha razão, o problema é de forma, e da primeira separação entre arte e vida; curioso: há um luto das coisas intelectuais como coisas intelectuais, mas que muitas vezes se confunde com luto de sentimentos associados às coisas intelectuais
não esquecer livro para K., trocar a prenda

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(12)









ENCERRA AOS FINS-DE-SEMANA

Pensava que eu ia contar aquela história? Sim, essa, com os dois secretários de estado lado a lado, apresentando algumas ideias sobre os requisitos para a formação de professores, um pela educação, outro pelo ensino superior? A tal onde se disse que tendo o Presidente da República promulgado a lei dos graus académicos e diplomas do ensino superior, e contando com o tempo de saída em diário da república, a data de 31 de março para a apresentação de novos cursos ou remodelação de cursos teria de ser adiada? Exactamente essa onde o secretário de estado do ensino superior disse que estavam a ser delineadas novas normas técnicas para os formulários de apresentação dos cursos? Pois não vou. E sabe porquê? Porque o Textoon encerra aos fins-de-semana para descanso. E já agora, porque a história não tem piada nenhuma. É uma história incomum de eficácia, de repente parece que estamos num país nórdico. A lei já saiu em diário de república, as novas normas técnicas já foram publicadas, a data de 31 de março mantém-se. Agora é só corrigir os dossiers todos conforme as novas regras, e está feito. Uma semana chega. E sim, claro que dá para descansar este fim-de-semana. Repare só meu ar relaxado. Compreende agora o que quer dizer "encerra aos fins-de-semana"?..

Terapia breve, 7ª sessão

— É verdade, de facto pensei que não iria vê-lo tão cedo.
— Achou assim tão catártica a última sessão?
— Catártica e com remate sereno, pareceu-me que as coisas se reajustaram bastante bem.
— Pois, também senti isso. Mas conhece aquela expressão: um comboio esconde sempre outro comboio?
— Sim...
— Pois neste caso o comboio escondia um comboio que eu nem sequer queria ver.
— E já o vê, agora?
— É o comboio «tenho de mudar de forma».
— Forma de vida?
— Forma do blog. A vida lá vai andando, não tem nada a ver com isto.
— Hum... Mas já me tinha colocado esse problema da forma, quando falamos da importância do diálogo que tinha com o Groucho.
— Pois já, estava sempre a colocar esse problema, mas ao mesmo tempo não estava.
— Porque diz isso?
— É uma variante da carta roubada: o que está à vista é o que não se vê. Neste caso, fala-se do problema para não pensar o problema.
— Hum... E porque vê o comboio agora?
— Porque hoje de madrugada aconteceu-me uma decisão.
— Aconteceu-lhe?! Não decidiu você?..
— Se calhar tanto faz. Conhece alguma coisa do mecanismo dos blogs?
— Vagamente.
— Para postar, é preciso entrar no blogger, tem-se um nome e uma senha. O browser, depois das primeiras vezes, conduzia-me directamente ao Casmurro. Quando criei o Manchas, tinha de sair do Casmurro para a dashboard, e desta para o Manchas. Em resumo: de cada vez que ia postar no Manchas, abria-se antes o Casmurro, e tinha de mais uma vez me confrontar com essa perda.
— Estou a ver... Mas não há um mecanismo?..
— ... claro. E foi fácil. Agora o browser abre directamente na dashboard, se calhar ainda o consigo pôr a abrir directamente no Manchas.
— E isto que fez agora já o podia ter feito, é essa a sua questão, certo?
— Até porque mexi logo no template, ler as instruções sempre serve para alguma coisa...
— E então?..
— E então nada. Tenho de mudar de forma. Não quero, mas tenho.
— E em que acha que posso ajudá-lo?
— Em nada, precisamente. Mas tinha de vir cá para ter a certeza.
— E agora tem?
— Ter não tenho; mas acabo de a comprar, vou ver se lhe dou algum uso...

Flamenco Sketces (II-adenda)


Live at Yoshi’s desce um pouco na segunda parte, regresso ao início, depois vou buscar a minha Jessica Williams de eleição: This side up. A noite vai ser longa, lá fora chove com aplicação, e em matéria de vento a zona está em alerta laranja. Há qualquer coisa de Arca de Noé neste cenário, mas se bem me lembro havia animais a mais e jazz a menos naquela história. Mas a que propósito vem isto? Talvez porque continuo a ouvir muita gente a opôr Coltrane a Bill Evans. Também há tempestade em Bill Evans, só que é lá fora, como aqui. Audível em fundo, um certo sobressalto é de lá que vem, a música vai respondendo a esse medo. Há tanta angústia e dilaceramento naquele que grita como naquele que implode em silêncio. E tanta velocidade para fora das fronteiras na respiração ofegante como na quietude melancólica. A serenidade de Jessica Williams é a de quem acompanha o desenrolar da tempestade. Essa que não acabará nunca.

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(11)








— Aquele que não é o seu chefe disse que contratou dois jovens modelos para promover a imagem da instituição.
— E vão fazer o quê?
— Uma sessão fotográfica provocantemente juvenil com as t-shirts do instituto.
— Ah, isso... Por momentos pensei que os mandassem ao ministério de corda ao pescoço...

A amável Leitora

merece o meu respeito pelo seu silêncio destes últimos dias. Não considero a sua pergunta um pretexto para a outra pergunta, mas mesmo que o fosse, o pretexto é um bom pretexto. A resposta é sim, a casa existe, tal como existe o castelo de Viana, o multiplex, o rio e o mar. Mas não é curioso que só agora tenha perguntado? Tem as malas prontas, o carro operacional, por sua vontade já cá estaria — mas só agora se lembra de confirmar esse pequeno pormenor do alojamento... Claro que para si não seria um magno problema, isso eu também percebo. Conheço essa liberdade de tudo o que possuímos caber num simples carro utilitário. Olhe, pense um pouco mais. Ou simplesmente venha, se for essa a sua vontade. Deixe passar estas chuvas, sempre a viagem será mais agradável. Ou atravesse a tempestade numa épica menor (mas cuidado com a estrada, está bem?).

Um espirro

Não me sai da cabeça. Foi no Jornal da Uma da rtp. A notícia era sobre a confirmação científica daquilo que se aventava como hipótese: o vírus da estirpe mais perigosa da gripe das aves aloja-se nos humanos na parte mais baixa (seria assim?) dos pulmões. Como o cientista explicava, isto é uma sorte. Se o vírus se alojasse na garganta ou nas fossas nasais, a transmissão de humano a humano seria pandémica. Dizia o cientista que o vírus estava apenas a uma mutação de conseguir mudar de aposentos humanos. Para mim, é a combinação perfeita de ficção científica com terror — com a vantagem incalculável (acho que o termo tem mesmo de ser este) de que isto pode tornar-se realidade. Foi isso que os jornalistas da rtp quiseram sublinhar no final da notícia: a voz off dizia-o, e o remate em imagem foi um sonoro e profundo espirro. Qual Cronenberg, qual Exorcista, qual quê: aquilo sim, foi o terror puro e duro. Um espirro.

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(10)








— Aquele que não é o seu chefe diz que o grande drama do ensino superior é a falta de alunos...
— Grande verdade.
— ... e que por isso vai contratar uma empresa "altissimamente profissional" para promover a imagem da instituição.
— E isso não será caro?
— Aquele que não é o seu chefe diz que mais vale um instituto falido, mas com alunos, do que um instituto falido por falta de alunos.

Flamenco Sketches (I)

Não sabes quando, mas essa foi a primeira vez. Por certo tarde, como quase toda a música na tua vida. Mas ainda a tempo. Por isso perdeste as referências, e encontras esses acordes lá muito mais para trás, quando era impossível que já os conhecesses. É assim que sabes que toda a música que é a tua vida nasceu contigo. Ou para seres mais verdadeiro, que nasceste tu dentro dela. Por certo tarde, mas ainda a tempo. Hoje, mais uma vez.

Flamenco Sketches (II)

Live at Yoshis's volume two

Abre fulgurante com a composição de Miles Davis. Segue muito alto com duas composições suas, "Spoken softly" e "Elbow room".
O resto ouvirei mais logo e irá em adenda.

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(9)








— Aquele que não é o seu chefe apresentou os resultados de uma “importantérrima investigação” transdisciplinar realizada no instituto.
— Não ouvi falar de nada...
— A investigação estava indexada a um esforço real de contenção de custos nas chamadas despesas da arte de bem receber.
— Nem sei bem o que isso é...
— Segundo o estudo, é possível poupar imenso dinheiro com as mesas de reuniões, congressos e outros eventos similares...
— Sim?
— ...se em vez da usual garrafinha de água por cabeça, for colocada uma garrafa de meio-litro por cada três, quatro ou até mesmo cinco cabeças.
— Bom, não sei se...
— Este expediente deve ser completado por técnicas de dissuasão subtis mas eficazes.
— Por exemplo?
— Colocar as garrafas a uma distância tal do copo que quem quiser beber tenha de se levantar e empoleirar-se na mesa para chegar à garrafa.
— Engenhoso, de facto...
— Como efeito colateral, as pessoas falam muito menos.
— Hum... E aquele que não é o meu chefe também?
— Tem um protocolo especial, a secretária transporta-lhe uma garrafa de litro.

Fechar o dia, dispor os sonhos

Short Talks, de Anne Carson: Alexandra Barreto traduziu todos os textos relacionados com artes plásticas. Obrigado.

Poesia e teologia negativa (calma, é menos intelectual do que parece…)

Álvaro Lapa, Cadernos de Homero


Faz-se assim. No início de cada aula, lê-se um poema, ou um texto, ou ouve-se uma música, ou vê-se um quadro, qualquer coisa que as alunas possam depois comentar com um peremptório “isto não tem nada a ver”. Há quem chame a isto “motivação”. Eu chamo-lhe murro no pequenino estômago do senso-comum, mas como se vai percebendo não sou um gajo de fiar. Com o repetir do processo, algumas almas mais dadas às subtilezas do sentido começam a estabelecer as mais estranhas conexões entre tudo o que se diz e subentende e entrediz. Há quem chame a isto “estádio reflexivo” ou “idade dos problemas mal estruturados “ (sendo que os bem estruturados não interessam nada, porque precisamente deixam de constituir problema). Depois chega o dia mundial da poesia. É aí que entra o meu número de teologia negativa. Comemorar pelo contrário. Experimentar como seria a vida sem poesia. A coisa não demora muito. Não se poderia falar porque a palavra e tal, nem ver porque a imagem e assim, nem respirar porque o ritmo… Rapidamente se entra na não-vida. Claro que isto não tem nada a ver, mas a teologia negativa serve precisamente para isso. Depois a aula acaba. Mais cedo, por causa da vida re-encontrada. Que segue.

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(8)








— Aquele que não é o seu chefe preparou comemorações especiais para o dia mundial da poesia.
— Bravo! E qual é o programa?
— De manhã, a conferência “O instituto é a poesia do ensino e a épica do futuro”, seguido de uma actuação da tuna com temas do cancioneiro popular estudantil. De tarde, haverá…
— Não quero saber mais nada!
— Mas?..
— Não quero saber mais nada! Até amanhã, até amanhã…

Terapia breve, 6ª sessão

- Diga, então.
- Mas só para não haver mal-entendidos de qualquer espécie: tudo o que se diz aqui está ao abrigo da confidencialidade terapeuta-cliente, certo?
- Claro, absolutamente.
- Bom, nesse caso... Aparentemente, tudo começou com -----------, logo seguido de ---------.
- É normal.
- Pois é, também me pareceu. O pior é que -------. E mais ainda quando ---------, percebe?
- Também é normal, convenhamos.
- Pois é, também me pareceu. O problema é que era normal de todos os lados, está a ver? Isso pode ser realmente um problema. Foi então que ---------, logo seguido de ------; um pouco mais tarde, enfim, não muito mais tarde, aconteceu que -----.
- Realmente...
- E como se não bastasse, ainda houve --------. Claro que nada disto, como hei-de dizer?, foi ------, mas mesmo assim o sentimento era o de que ----------. Ou para ser mais exacto, se é que nestas coisas podemos desejar a exactidão, o sentimento era o de que ------.
- E como seria normal, para salvar tudo, elegeram o Groucho.
- Pois foi. Mas acabou bem. Tudo pesado, acabou bem. E no meio daquilo aprendi uma coisa fundamental e perigosa.
- Perigosa?
- Sem dúvida, perigosa. Que a ironia não tem moral.
- Acho que não estou a apanhá-lo...
- Tudo o que gerou discórdia e reconciliação, visto de fora, foi o mais brilhantemente cómico.
- Ah, isso... Mas também me parece normal.
- Pois, mas eu não o sabia por experiência, que quer?
(pausa)
- E diga-me, agora que me contou isto: ainda acha, como quando aqui veio a primeira vez, que o blog acabou porque tudo o que começa, algum dia tem de acabar?
- Mas claro. Se não for de uma maneira é de outra. E se não for nenhuma das duas, a morte resolve.
- E isso é metafísica ou você é apenas um intérprete obtuso?
- Mas você também nos lia?!
- Evidente. Como é que acha que se aguenta a terapia dos outros, hem?..

Fecha o dia (dessa maneira, pode ser, como queiras — mas fecha o dia)

É verdade que há um momento breve
em que tudo se decide —
esta rua em vez da outra
esta camisa em vez daquela
este passo que se dá e não um outro
aquele que precisamente iria abrir uma porta
para outro universo.

Bernardo Pinto de Almeida, A Noite
Relógio D’Água, 2006

E contudo

eu sei que a filosofia sempre foi uma preparação para uma morte. A consolação da finitude. Mesmo quando é da vida e só da vida que ela fala. Mas hoje não é bom dia para pensá-lo.

Fernando Gil


Eu sei que é estúpido, mas nestas alturas não sei perguntar outra coisa: como pode morrer aquele que pensa?

"Até aos cinquenta, estive apenas a aprender e só agora estou a desenvolver alguma coisa que julgo ser meu"
(no programa de Ana Sousa Dias, via o acidental)

Nem só mas também


O jogo abelairiano por excelência: o que se esfarela ao toque, tem a consistência de uma porta cerrada (sobre nada?).

Textoon



MIT

Mais Instituto praTodos

(7)








— Aquele que não é o seu chefe diz que é um erro histórico fechar os cursos com menos de dez alunos.
— Hum...
— Diz que desde o Estado Novo que os grandes sucessos de Portugal estão associados a formações com menos de dez intervenientes.
— E deu exemplos?
— O hóquei em patins.

Caminhos da fotografia




Meu caro João Paulo Sousa

Antes de mais, obrigado pelas suas palavras sobre este blog. Não retribuo em relação ao Da Literatura, porque o link para lá, desde o momento em que os soube pôr, diz tudo.

1. Aceito as ressalvas que faz em relação ao seu texto inicial saber que instante e efémero são construções. O ponto, pois, como diz, não é de discórdia quanto aos propósitos, em abstracto, da fotografia, mas quanto ao conseguimento da exposição de Nozolino em Serralves.

2. Parece-me que a sua argumentação vai neste sentido: o JPS acha possível à fotografia apresentar a dimensão trágica de uma época, mas acha “difícil que o possa fazer com honestidade sem recorrer a um tom explicitamente neutro”. No seu entendimento, o preto e branco, como exclusivo, contaminaria tudo de um efeito de ornamentação e de fascínio, portanto, seria bastante o contrário do neutro. E isso levaria o espectador a deter-se na excelência do gesto autoral, sem que o pensamento descolasse alguma vez dessa estrita dimensão estética — que se tornaria assim mero ruído estético.

3. É claro que estou de acordo consigo quanto à possibilidade teórica de uma estratégia artística poder redundar em mero ruído estético. O que me parece é que o JPS ontologiza: a) quando afirma que fora de um tom explicitamente neutro a fotografia falhará no apresentar da dimensão trágica de uma época; e b) quando parece dar a entender que o preto e branco, quando em exclusividade, se transforma inevitavelmente em ornamento.

4. Mas vamos supor que, pelo menos em relação ao primeiro aspecto, o JPS tem inteira razão. Fica ainda um problema: o que seria, hoje, em fotografia, um tom explicitamente neutro?

5. O exemplo que dá do documentário de Alain Resnais, Nuit et Brouillard, é magnífico. Duplamente. Porque a obra é tudo isso que muito bem diz dela, e porque permite ver o modo diferente como olhamos para o problema com que Nozolino se depara.
Lembro que Resnais, ao delinear a sua estratégia, não tem de se confrontar com um acervo de imagens de actualidade que saturem o seu espaço. Tem de facto o problema exactamente contrário: uma escassez de imagens e de relatos que, do ponto de vista empírico, reforçavam a ideia metafísica do inapresentável. Cada imagem de arquivo tinha um peso que é para nós, hoje, bastante inimaginável. Seria possível “estragar” isso? Sem dúvida. Mas o tom de contenção, aqui, está na ordem lógica do material. E o texto de Jean Cayrol pode “permirtir-se” o inventário neutro porque se trata de dizer pela primeira vez, expor pela primeira vez. Até certo ponto, o texto não precisa de “compreender” o que está a dizer (de adjectivar, metaforizar, relacionar), precisa apenas de inscrever-se num real que não o suporta, ficar aí — o seu neutro tem a violência de tudo o que passa a existir apesar de sabermos que é a vida toda que fica em causa por isso.

6. Quatro anos depois, em 1959, Alain Resnais realizou Hiroshima, mon amour. Não é um documentário, é certo. Mas creio para este ponto esse aspecto não é relevante. O que é certo é que de Hiroshima havia em abundância o que nunca houve de Auschwitz-Birkenau: em imagem, em palavra, já também em pensamento. Eu diria que o filme é tão contido quanto o foi o documentário, só que de uma forma necessariamente diferente, porque é diferente o mundo de discursos com o qual se confronta. O texto de Marguerite Duras, na sua poeticidade sonâmbula, alcança o mesmo efeito, se bem que em sentido contrário, porque é isso que o problema lhe exige: inscrever o amor num cenário de violência que não o suporta.

7. Voltemos então a Nozolino. Creio que será pacífico que o problema com que se confronta é este: como dar a pensar aquilo que é objecto de saturação de imagem e palavra, e exactamente porque saturado se torna não-pensável?
A escolha do preto e branco é uma tentativa de subtracção a esse mundo de imagens hoje predominante. Por certo, com o risco de ser “artistique”. E a dimensão empírica das fotografias acrescenta-lhe também o risco do “exótico”. Nozolino tenta ultrapassar esse risco pelo efeito de conjunto: a) a identificação dos lugares estabelece uma circulação entre o “lugar exótico” e o “nosso lugar”, criando uma homologia que dá que pensar; b) a disposição das fotografias, deixe-me dizê-lo com as suas palavras tão certas para Resnais, compunha “um vasto e desolador travelling pelo interior de...” — de qualquer coisa que é um mundo inabitável dentro deste mundo que habitamos.

8. Não funcionou? É provável. Também tenho as minhas reservas, mas não coincidem com as suas. A minha pergunta, para tentar pensar dentro dos seus termos, é então: o que seria hoje, relativamente à matéria que Nozolino trabalhou, um tom explicitamente neutro?

9. E depois uma outra, que envolve uma infinidade de perguntas dentro dela. Para sublinhar o valor do filme de Resnais, o JPS diz-nos: “Tenho para mim que Resnais é um grande realizador, mas não penso nisso quando visiono Nuit et Brouillard”. Percebo o que quer dizer. Mas pergunto-me se, interiormente, de cada vez que vê o filme, não resolve de imediato todos os problemas que o classicismo dele acarreta (aí incluído a sua mestria inegável), de modo a desimpedir, digamos assim, as vias de acesso ao que ele dá a pensar (um pouco como quando lemos Camões, ou “ultrapassamos” a linguagem de época, a métrica e a absoluta mestria do dizer, ou não o lemos de todo). Ora, numa época que sabe que a arte é arte, numa época que criou o conceito de museu de arte contemporânea, não acha que os espectadores de Nozolino devem ultrapassar a evidente mestria do gesto autoral para se interrogarem sobre a direcção que esse gesto aponta? Eu concedo que um espectador possa dizer de Nozolino: «Que magnífico fotógrafo!”, mas acho que isso revela mais a impotência de pensamento do espectador do que auto-referencialidade do autor.

10. Claro que o seu caso não é, de todo, incapacidade de pensamento, mas postura ontológica: o preto e branco, hoje, quando em exclusivo, é fatalmente ornamental. E portanto, a minha última pergunta terá de ser: porquê?

11. São muitas perguntas, eu sei. Espero que as tome como prazer de pensar em diálogo, que é só o que pretendem ser. Um prazer com tempo.

Multiplex 1 (recomeço?..)



- Vá, faz de Groucho para podermos falar do filme.
- Essa bateu-te, hem?
- Vá, sê o meu sujeito transaccional, tu até sabes o que isso é e tudo. Vá lá... Chamo-te Groucha, para ficar mais de acordo.
- Nem penses! Que disparate...
- Ajuda-me, vá lá.
- Mas não te vais espraiar nem...
- Não, é só uma rapidinha cinematográfica. Vá lá...

Multiplex 2


- Menos comentários desta vez, não foi?
- Nenhuns, a bem dizer. Pela certa, foi confundido com filme de acção. O sinal evidente é que nas partes mais filosóficas crescia o barulho do trincar das pipocas.
- E o programa é nítido, como toda a gente disse.
- Violência gera mais violência, e mais violência pode levar à destruição total.
- Pois, o problema é que se isso é verdade para os indivíduos, não o é o para os estados.
- Não?..
- De um modo geral não, e para estes muito menos. Já vem no Rousseau.
- Ah, já me lembro. Qualquer coisa como: de homem para homem vivemos no estado civil e sujeitos às leis; os povos, esses, vivem em estado natural
- Exactamente. Os indivíduos renunciaram ao uso da violência e deram o monopólio dela ao estado, e é isso que garante a sociedade; os estados entre si, mais coisa menos coisa, vivem segundo a lei natural do mais forte.
- Se bem que esse mais coisa menos coisa não seja de deitar fora.
- Pois não, mas já não vem aqui ao caso.
- Talvez. Porque o caso queria ser o de um conflito entre países e acaba por ser, sem que o Spielberg o quisesse, o do velho conflito entre a consciência de um indivíduo e a real politik.
- Spielberg percebe de famílias, isso eu concedo, mas só percebe de famílias...
- ... e por isso pensa que a moral de um estado é a moral de uma família. Ora não é.
- O que não é mau nem bom, é simplesmente assim.
- E perdem sempre as famílias, mas isso também é simplesmente assim. Ou tristemente assim, mas é como é.
- No resto, é um filme de acção.
- Pois...
- E então, resultou?
- Na... Nem ponta de Groucho. Mas obrigado na mesma.
- Estás por tua conta. Vais ter de mudar de forma.
- Que gaita...
- E já agora, outra coisa...
- Sim?
- Não leves a mal, mas é melhor deixares a família de fora, percebes?
- Pois...
- Tás muito longe de ser o Larry David. Mas mesmo que fosses, eu não tenho seguramente qualquer vocação para ser mulher dele. Lamento.

Augusto Abelaira


Augusto Abelaira faria hoje 80 anos. E não vejo melhor maneira de homenagear um autor que é também muito “meu” do que contar exactamente como este post chegou aqui. Acho que Abelaira acharia a história bastante sua.
Manhã alta, no supermercado pelos legumes para a sopa, recebo uma sms do Osvaldo Silvestre:
Veio no Publico q o Abelaira faria hoje 80 anos. Ve s poes uma referencia ao homem no Manchas, pois ele merece.
Agradeci, e naturalmente disse que sim. A primeira vez que eu e o Osvaldo falámos (tão jovens que éramos [e quão estranho encontrar-me a escrever este tipo de frases]), foi a propósito de um texto meu na Cadernos de Literatura, “Augusto Abelaira: a palha e o resto”, agora recuperado em Sei que já não, e todavia ainda (que por acaso até é um título muito abelairiano, noto agora...). Abelaira voltou muitas mais vezes às nossas conversas. Mais tarde, em Slow Motion, o Osvaldo viria a escrever alguns dos capítulos que considero bibliografia básica sobre Abelaira, em especial sobre o pendor metaficcional dos romances pós Sem tecto, entre ruínas. Mas adiante. Houve que fazer a sopa, e enquanto esperava que fervesse, uma rápida pesquisa na Google para imagens: esta que aqui vai, e uma outra, que irá amanhã, por outras razões, também elas perfeitamente abelairianas.
Pedaços dos livros iam regressando.
O incipit de O triunfo da morte, que começa logo no capítulo 2, para mais rapidamente se entrar na não-acção daquilo.
A síntese perfeita da desilusão político-social da nossa história recente, em O bosque harmonioso: “o 25 de Abril foi o nosso D. Sebastião, o remorso de o termos deixado escapar. Mas verdadeiramente não o queríamos, não sabíamos que fazer com ele. Vamos continuar a esperá-lo, adiá-lo-emos sempre”.
Ou o magno problema do Prof. Garden, em O único animal que?: “Seremos a língua em que me exprimo? (...) Ensinemos um grilo a falar italiano, e ele transformar-se-á em homem italiano. Ensinemos um homem a falar cri-cri e ele tornar-se-á grilo”.
A tarde foi passada em orientação de teses (nenhuma delas sobre Abelaira, hélas). Quando me voltei a sentar ao computador, pensei na crónica que Abelaira poderia escrever com o sentimento que voltei a experimentar durante algumas das conversas: os melhores desta nova geração são bons como nós nunca o fomos com a sua idade, mas não têm para onde ir. Não há lugares nas universidades, não há lugares nos liceus, não há lugares, ponto.
Não queria fazer um post tipo pequena entrada para enciclopédia, mas achei que não seria mau remeter directamente para qualquer coisa parecida. Nova pesquisa. No Projecto Vercial, a entrada é diminuta, inaproveitável. No IPLB o texto é mais compostamente longo. Leio rápido na transversal, só para me certificar. Abano a cabeça uma ou outra vez — demasiado filosofia, pouca literatura —, mas acho que serve. O texto não está assinado, é do dicionário cronológico de autores portugueses. Copio o link. E agora?
Várias coisas a dizer. Mas algo martela na cabeça por detrás disso tudo, não sei bem o quê. O suficiente para impedir de começar. Até que de repente se torna muito claro: um “bípede céptico e desinteressado”. É a fórmula que resume uma personagem, mas qual? Vou à estante, olhar os livros de Abelaira, como se a resposta me devesse saltar das lombadas. A fórmula é cada vez mais nítida, mas o que é que isto quer dizer? Continuo sem saber de onde me vem, nada lhe acrescentei, mas a verdade é que chama várias coisas até si. As várias coisas que tinha a dizer? Começo-me a rir do processo obviamente abelairiano que a ideia de post está a tomar. Penso então que devo escrever precisamente isso, e regresso afoito ao computador.
Mas alguma coisa martela ainda, o suficiente para impedir de começar. Vejo claramente na minha cabeça bípede céptico e desinteressado escrito num itálico elegante, e toda uma disposição do texto em que os conceitos fazem primeiro um caminho para lá, e depois se afastam, mas de alguma maneira levando-o consigo. E por um toque acidental do rato, abre-se de novo a janela do IPLB, e então sim, claramente visto, está lá a frase bem no centro do texto. Vou lendo um pouco antes e um pouco depois, e é já numa mistura de estupefacção e riso que vou reconhecendo aqui e ali frases minhas, e que regressa de há muitos anos um texto escrito entre os vários que me foram solicitados na altura e que esqueci por completo, porque o que sempre fica, quando fica, é o rasto do autor. Posso agora começar. Augusto Abelaira faria hoje 80 anos. E não vejo melhor maneira de homenagear um autor que é também muito “meu” do que contar exactamente como este post chegou aqui. Acho que Abelaira acharia a história bastante sua.

Textoon



MIT

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(6)









ENCERRA AOS FINS-DE-SEMANA

Aproveite para rir noutros lados. A crónica do Conselheiro Acácio Espada até termina com brinde e tudo. A declaração de Marques Mendes de que não quer transformar o congresso num evento televisivo também é boa: uma aposta em que como ele amanhã encerra o congresso só lá para as três da matina, quando o bom povo português já fechou as televisões e disse adeus a todos os eventos? Ou será antes que a essa hora já ninguém se lembrará do evento que ele vai tentar produzir para os telejornais da noite? E qual a diferença entre essa duas hipóteses? Rir da não diferença entre ambas é que é bom. Você diz que isto assim já não é um textoon? Pois não. Mas eu não disse que encerra aos fins-de-semana? Então, de que se queixa?..

Da amável Leitora

"Agora tenho a vida muito dobradinha aguardando nas malas."

Percebo, está decidida. Mas espere um pouco mais. E compreenda isto: toda a gente vai pensar que eu a inventei e que a frase em cima é como se a tivesse dado a uma personagem. E têm e terão razões para pensar isso. Essa será a sua vida. Pense bem.

Fisioterapia


Tive de levar o cão à fisioterapia. Passei-lhe toda a angústia e ele somatizou. No fim teve direito a um osso e a mim mediram-me a tensão. Em alguns aspectos, este mundo começa a ficar equilibrado.

Textoon



MIT

Mais Instituto praTodos

(5)








— Aquele que não é o seu chefe diz que o instituto vai fazer uma aposta forte na qualificação do seu corpo docente para rapidamente atingir a meta de cinquenta por cento de doutores.
— Excelente. E ele próprio vai também doutorar-se?
— Para já está ocupado a cem por cento na chefia.
— Ao menos quando sair da chefia?..
— Espera que isso só aconteça quando tiver de se reformar.

Respira



do mar
olhando alto

respira

De novo o pecado mortal da fotografia, ou sedução estética, espontaneidade e efémero



1. Em A verdade é um lugar incerto, João Paulo Sousa (JPS) comenta uma recensão de António Guerreiro ao livro de Rui Nunes, O choro é um lugar incerto, que reúne e desenvolve textos escritos para o catálogo da exposição de Paulo Nozolino, Far Cry, presente no ano passado em Serralves. O ponto que me interessa é o comentário a alguns aspectos da exposição de Paulo Nozolino.

2. JPS começa por questionar o uso exclusivo do preto e branco, partindo das suas consequências: “Ao invés de apresentar a dimensão trágica da modernidade, o efeito provocado por estas fotografias é o da sedução estética, tão cuidadosamente preparado, aliás, que não hesita em se refugiar no mito da espontaneidade e do efémero. (…) Se aquelas fotografias não estivessem a preto e branco, o que as distinguiria, afinal, de um vulgar exercício de fotojornalismo?”.

3. Para além de JPS responder parcialmente à sua própria questão — o preto e branco, aqui, salva do vulgar fotojornalismo —, o problema parece ser o da oposição entre “apresentar a dimensão trágica da modernidade” e a “sedução estética”. É uma questão antiga na fotografia: a sua vocação “realista”, apta por hipótese a apresentar a dimensão trágica ou outra de qualquer época, dar-se-ia mal, ou até seria atraiçoada, pela procura de efeitos de sedução estética. Ora, o que a fotografia foi descobrindo é que a sua suposta vocação “realista” não pode impedir-se, por si mesma, de se tornar arte, ou de ser vista segundo o ângulo da arte. A ambivalência dos sinais que envia é incontornável, sobretudo quando se trata do sofrimento ou da dimensão trágica: como diz Susan Sontag, essas fotografias gritam “Parem com isto” ao mesmo tempo que não se podem impedir de exclamar “Que espectáculo!” (Olhando o sofrimento do outro, p. 83).

4. Parêntesis: a fotografia grita “Que espectáculo” não pela matéria em si mas pelo espectador (que o fotógrafo também é, antes de mais e em primeira mão): é o fascínio humano pelo macabro e pelo horror que está sempre em causa, fascínio tanto mais desfrutável quanto houver uma mediação que o permita viver em segurança (não apenas física, mas também psíquica).

5. Se a fotografia não se pode impedir de se tornar arte, quando deliberadamente o quer ser encontra, por maioria de razões, o mesmo problema das outras artes. Que eu colocaria nos conhecidos termos pessoanos: fingir que é dor a dor que deveras sente.

6. Assim, a sedução estética (e a sedução também se pode exercer por repulsa, mas isso é outra história, ou pelo menos não é a história das fotografias de Nozolino) é o meio de transporte do pensamento. Que não se “refugia”, como diz JPS, “no mito da espontaneidade e do efémero”, mas o encena como mito que é. Não se trata de captar um instante, mas de construir o acesso ao instante que não é o da fotografia, mas o do pensamento que ela será capaz de suscitar: ou já não é um adquirido do ver exposições fotográficas que o olho-câmara selecciona (e constrói) uma primeira vez, e que o autor, escolhendo o que fica e o que deita para o lixo, constrói derradeiramente como conjunto e obra?

7. Se há algumas questões a colocar à exposição de Paulo Nozolino creio que elas não passam tanto pelos termos em que JPS as põe, mas, por exemplo, pelas questões que Susan Sontag coloca a propósito de Sebastião Salgado — os fracos não são identificados nas legendas, são todos tornados iguais e anónimos (p. 85-86) — ou a propósito do facto de que, “em geral, os corpos atrozmente mutilados que se vêem nas fotografias que se publicam são da Ásia ou de África. Este costume jornalístico é herdeiro de uma prática velha de séculos de exibir seres humanos exóticos – ou seja, colonizados; […] o outro, ainda que não inimigo, é olhado apenas como alguém para ser visto, não alguém (como nós) que também vê” (p. 78). Ou seja, não é o problema da sedução estética, mas o problema do que essa estética dá a ver e a pensar.

8. Por último. A fotografia de Nozolino que JPS escolheu para o seu post era das poucas na exposição que tinha figuras humanas. Será porque quando falamos de instante e efémero dificilmente resistimos à antropomorfização? Mas mesmo aí: quando aprenderemos a lição pessoana — que se trata sempre (e diríamos hoje, quer o queiramos ou não) de fingir instante o que deveras instantaneamente se vê?

Textoon



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Mais Instituto praTodos

(4)








— Aquele que não é o seu chefe diz que o instituto vai fazer um forte investimento na modalidade do visitant-professor.
— Excelente. Vamos então ter professores nossos a fazer temporadas em outros institutos, e professores doutras instituições a virem até nós. Já não era sem tempo.
— Acho que não é isso... Aquele que não é o seu chefe redefiniu o conceito de visitant-professor.
— Como assim?
Visitant-professor é o professor que visita as empresas para aprender a trabalhar segundo os padrões da actividade privada.
— Mas como assim?!
— Calma, ele disse que era apenas o primeiro passo no caminho de um empreendedorismo exigente, percebe?

A amável Leitora

... notará que já lhe dou maiúscula, o que será princípio de aceitação, mas compreenderá que por enquanto decline o pedido. Lembro-me de ter ouvido uma história, a propósito de mosteiros zen ou de noviços jesuítas (para o caso tanto faz, ainda que as diferenças sejam muitas): o aspirante ao ingresso pedia, e demorava muito a ser atendido; quando entrava, era constantemente incentivado a sair; quando permanecia, davam-lhe o pior que houvesse; quando era aceite, matavam-no. Acho que esta última parte deve ser simbólica (mudança de nome, mudança de "estado", essas coisas). As outras nem tanto, mas também não sei se são prova ou provocação. Em resumo: pense melhor. A sério: pense melhor. E com calma. Tem que perceber toda a dimensão da embrulhada em que nos vamos meter. E não vale a pena dizer que já percebeu porque ainda não teve tempo de perceber. Eu sei que não, sou mais velho e estas coisas sabem-se... No início da próxima semana voltaremos a falar.

PS: obrigado pelos acertos no template; não nos preocupemos com o profile; outra coisa: comece pelo último, depois terá tempo para os primeiros; mas sobretudo — pense; pense com calma

notas da consulta 3

Ron Mueck, Untitled (boy)

como K. disse, deixá-lo andar, está tudo dentro das margens normais
centrado na dor, precisa de tempo
a lucidez é ambígua: faz avançar quando relativiza, paraliza quando é apenas análise
introduzir na conversa que um blog é um blog é um blog
dar-lhe uma tarefa? ou será ainda cedo?
NB: próxima consulta é antes de aniversário de K.; levantar dinheiro para pagar à empregada

Textoon



MIT

Mais Instituto praTodos

(3)







— Aquele que não é o seu chefe visitou as áreas mais remotas de influência do instituto.
— Hum...
— Concluiu que na área da fronteira, os jovens preferem ir estudar para Espanha.
— Porque o ensino é melhor?
— Porque há auto-estrada e a vida nocturna é mais interessante.
— São argumentos de peso, temos de convir.
— Aquele que não é o seu chefe já disse que ia falar com o governo por causa das estradas.
— E quanto à vida nocturna?
— Assegurou que os serviços da chefia iriam funcionar vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas.

Sossega



Também esse navio
distante cruzando o alto mar
as gaivotas poisadas sobre o paredão
uma bicicleta cortando o negro liso do alcatrão —
tudo isso me sossega
devagar.

Bernardo Pinto de Almeida, A Noite
Relógio D'Água, 2006

Terapia breve, 5ª sessão

- Agora nem abro isto.
- Pois, compreendo.
- Não era só o escrever, era também o ler.
- Mas já o lia antes, penso?
- Desde a primeira hora. E isso aumentou a aventura.
- E com os outros membros, também era assim?
- Desde sempre. De alguma maneira, era uma comunidade leitora. (pausa) Que até cumpria com panache a utopia de qualquer comunidade leitora: produzir alguns dos textos a ler. (pausa) Um large ensemble...
- Sim?..
- Cada um seguindo o seu caminho, mas ouvindo os outros e respondendo enquanto seguia o seu caminho. Se calhar na música não se percebe tanto, para quem está de fora há sempre um efeito de orquestra. Mas ali percebia-se as voltas que um texto dava, pelo facto de a casa ser colectiva: ecoando noutros, construindo paralelos, recebendo de outros a energia para se desviar em direcção a si próprio.
- Lá está você na linha da abstracção...
- Só por isto? Vê-se bem que a sua área não é a literatura.
- Não é, de facto. Mas sem querer discutir a sua área, há outra literatura que...
- (interrompendo) Há sempre outra literatura; até há essa coisa imensa que é «e tudo o resto é literatura».
- Pois, eu reformulo: fale-me do que sentia ao abrir o Casmurro. Do que sentia.
- Sentia que alguma coisa se tinha passado entretanto e que eu ia saber. E provavelmente entusiasmar-me. Não se resumia tudo a mim, como agora.
- Assusta-o, a solidão?
- Mas quem falou em solidão?! Bem eu dizia que tinha de vir para aqui de megafone...
- Megafone?..
- Oh, esqueça.
- Bom... De que se trata, então?
- De um pouco menos de mundo, é disso que se trata. Abria para ler e postar. Agora só posto, é muito diferente. Mas muito, muito diferente mesmo...
(longo silêncio)

Textoon



MIT

Mais Instituto praTodos

(2)








— Aquele que não é o seu chefe esteve outra vez na rádio.
— E qual era o assunto?
— Generalidades.
— Ora, não ouviu com atenção.
— Pelo contrário, até fixei as frases-chave: houve “negociações tremendérrimas com a tutela”, e foram tomadas “decisões importantérrimas no seio do instituto”.
— O futuro é exdrúxulo, estou a ver...

Acalma-te


Como a consulta foi desmarcada (acalma-te, é já amanhã, não menoscabes agora, que eles estão a ver-te) venho passear pelo molhe.

Princesas e Príncipes

Pois não, não é todos os dias que a Hedy Lamarr se consola com a nossa leitura de uma perda que tocou a muitos. Consolo pouco, é apenas o que ficou. Terapia, justamente. Depois — espera-se que em breve —, como que regressamos à vida, e vê-se que afinal nunca de lá saímos. (bom, a consulta é lá mais para a tarde, aguenta-te).
E não, não é todos os dias que damos connosco uns bons anos mais novo. Sim, o cabelo; mas sobretudo o olhar que lá está (não se vê bem, mas é esse), e já não está aqui; as mãos, espero que sejam ainda as mesmas. A vida passa, e o Ademar adivinhou o perfil do blog que fiz para o technorati. Também não era difícil: é verdadeiro, empírico q.b., logo previsível. (aguenta-te, ouve um bocado de jazz, aguenta-te).

A amável leitora

...há-de compreender e relevar que o meu auto-didactismo informático chega só para aquilo que está à vista: queria um Casmurro todo em preto, tanto quanto ele ficou laranja, e é o que se vê... Se é verdade que o help me permitiu a lista dos links, já quanto ao "about me" não consegui fazer nada. Ditei umas coisitas de somenos para o profile, mas — horror! — não é que as coisitas apareciam na box? A gente informa, construindo minimamente um background, e acabamos pindéricos, com tudo estampado na front page, como se o blog fosse revista mundana ou curriculum vitae a puxar ao modernaço. E isso não, absolutamente não! E para que não restem dúvidas à amável leitora acerca das minhas intenções, adianto que o exemplo que tenho em mira visa tão alto quanto o profile dos membros do Da Literatura. Nem mais. Não chegarei lá tão cedo, pelo que a coisa implica de literacia informática, mas abaixo disso deixo o dossier em branco. Tentando ir de encontro ao seu pedido, remeto-a para a Angelus Novus.
Quanto à outra questão que me coloca — que é sem dúvida a hipótese de um conjunto infinito de questões, como muito bem diz — a minha resposta só pode ser tão breve quanto simples: sim.
Até breve, portanto...

Textoon



MIT

Mais Instituto praTodos

(1)








— Ouvi hoje uma entrevista do seu chefe na rádio.
— Não é o meu chefe. É o presidente do instituto onde trabalho.
— Seja, uma entrevista do seu presidente.
— Não é o meu presidente, é o presidente do instituto público onde...
— Ah, já percebi, não votou nele...
— De facto não, mas o ponto não é esse.
— Ah, já percebi outra vez, é muito zeloso da diferença entre você próprio e a instituição onde trabalha.
— E não acha que devo ser?
(insolente) Claro, na melhor tradição do funcionalismo público!
— Agora a sério, isto é uma questão importante, não acha...
(interrompendo) Claro, claro que sim! (curioso) E diga-me, quando tomou posse, jurou em nome de quê?
— Em nome da minha honra.
— Muito bem, democracia avançada. E jurou o quê?
— Cumprir com lealdade as minhas funções.
— Ah... E nessas funções não está o dever de uma cooperação estratégica com o presidente e o programa que foi sufragado inquestionavelmente por uma...
(interrompendo exasperado) Esse não é o ponto!
(com doçura) Estava apenas a tentar imitar a entrevista daquele que não é o seu chefe...

Bloco notas

  1. Bruce Barth Septet, a encerrar a noite de sexta. Como septeto, diria que não existe. Os quatro sopros vão entrando à vez, muito alinhados no seu desenvolvimento neo-bop, competência standard ou nem isso. Como trio, existiu por vezes, como por vezes existiu o piano de Bruce Barth. A sua música talvez merecesse mais.
  2. Quinteto de Paulo Gomes/ Fátima Serro, com Julian Arguelles, a abrir a noite de Sábado. No início, a sombra da canção portuguesa escureceu bastante o jazz. Que só abriu lá para o fim, com Adágio sostenuto, a partir de poema de Eugénio de Andrade, e se manteve em alta nos dois temas finais. Um concerto que começasse daí para a frente seria sem dúvida um acontecimento.
  3. Claro, tudo seria mais interessante se dito em conversa amena com o Groucho. Mas adiante, até porque amanhã segue a terapia. Quer dizer, está seguindo.

Moving

Jamie Baum Septet no BragaJazz

Tudo o que esperava de um septeto que é uma das fronteiras do jazz que amo. E sem sombra de desilusão na presença física dos músicos: pautas abertas, gozo imenso no seguir da música, pequenos assomos de inventividade que abrem sorrisos de reconhecimento de uns para outros.
Temas de Moving forward, standing still: desde o título, todo o programa de que agora necessito. E um último tema, absolutamente magnífico, a integrar o próximo cd, lá para Abril ou Maio.
Cá fora, noite amena, quase primaveril. Braga deserta. Tomo o caminho mais longo para casa. O nó das auto-estradas e da circular parece de súbito uma pequena estação inter-galática. Moving forward, standing still. Ou de outra maneira: life, itself.

Um septeto do Groucho (pois...)


Pino Minafra Sud Ensemble no BragaJazz

Hum... Alegria anarquia desconstrução configuração grupal individual...
Hum... qual prozac qual quê, isto dá ironia a um morto (mas espera lá, não há na morte uma suprema ironia e coisa e tal?)


E não esquecer que o Pino "canta" (também) com megafone!.. Boa: e se eu fosse para a terapia de megafone ?

Terapia breve por interposta música


Anouar Brahem trio no BragaJazz

O deserto é uma longa nota sustentada no acordeão, como o raspar da luz na areia ou nos rostos concentrados para dentro. Também é assim o silêncio da cidade quando isolamos as árvores ou entramos pela noite. Hipnótico, com dança feérica ou quietude abismada. Milimetricamente escrita, mais improvisada a música nasce ali mesmo: do corpo vem o consentimento.

Morte Absoluta

Morrer mais completamente ainda
— Sem deixar sequer esse nome.

Rituais casmurros


Mataremos o Groucho, hoje. Com o entusiasmo dos grandes rituais regeneradores. Perfeitamente girardiano, sem dúvida. Mas ao menos que seja o Groucho, que irónico se presta ao papel. A farsa não concilia menos que o grande sacrifício sangrento. E é um estado superior da civilização (serve também como curta nota de rodapé à questão dos cartoons).

notas da consulta 2

"visitar um barco": olhou para longe ao dizê-lo, mas não na direcção da janela (talvez mais da porta);
claro que a terapia não lhe agrada, mas não sabe ainda para onde se virar — e é provável que não se venha nunca a virar para a análise
muita necessidade de empiria, mas claramente porque ela lhe falta (ou porque ela está em falta?)
quis acabar a sessão mais cedo, mas demorou imenso a ir-se embora — quando começará a falar?
sinais evidentes de cansaço, mas mais resignado que na sessão anterior

Terapia breve, 4ª sessão

- Mas porquê?
- O diálogo. Pensando bem, a resposta mais simples é essa: o diálogo.
- Nunca tinha tido?
- Em parte, sim. Aliás, como tudo na vida: parece que é sempre em parte.
- Já está a elaborar, essa já não é uma resposta simples.
- Pois… Falar com o Groucho foi uma libertação. Não tenho outro modo de o dizer. Acha ridículo?
- Não tenho de achar, o que importa para já é o que você acha. Porque diz que seria ridículo? (pausa longa) Não pense tanto.
- Afinal de contas… Bom, afinal de contas era apenas um blog. Era apenas uma personagem. Será a vida assim tão desinteressante, que nos afeiçoemos a uma personagem a ponto de chorarmos a sua perda?
- Não sei, diga-mo você. Mas noto que faz uma distinção muito nítida entre vida e ficção.
- Pois… Mas percebe o que quero dizer.
- O que você me possa explicar é muito mais importante do que aquilo que eu possa perceber.
- Compreeendo. (pausa) Vai ser um bocado cansativo.
- A terapia é um processo de mudança e a mudança implica esforço.
- Seja. Não é que acredite muito... Mas agora fiquemos por aqui.

Terapia breve, 3ª sessao

- Teve algum amigo imaginário na infância?
- Que me lembre, não.
- E sem se lembrar, teve?
- Deixe-me pensar...
- Não pense, fale.
- Tenho uma vaga ideia de um tio me dizer que eu contava histórias ao longo dos dias.
- E?..
- E de ir visitar um barco.
- E?..
- Mais nada, só isso. (pausa) Estou cansado.
- Já o matou?
- À minha maneira...
- E isso quer dizer o quê?..
- Agora não me apetece falar disso. Depois deixo-lhe o texto.
- Mas quando diz que foi à sua maneira, quer dizer que conseguiria fazer sem ser à sua maneira?
- (perplexo) Claro!
- Acha mesmo? Percebe todas as implicações do que está a dizer?
- Claro! Absolutamente. E digo-lhe mais: dava já um tiro na cabeça se não fosse assim. (pausa; mais cauteloso) Ou se pelo menos não acreditasse profundamente que é assim.
(pausa)
- Continuaremos depois. Tente descansar.

Terapia breve, 2ª sessao

- Já tínhamos acabado por hoje. Tem de respeitar o espaço entre as consultas, a não ser que haja uma urgência, o que pela sua cara não me parece ser o caso. Além do mais, chamo a sua atenção para as horas... É tudo muito impróprio.
- É só para mostrar isto.
- (observa) Pois, alterou o template para um estado de alma. É normal. É até saudável. Agora vá dormir.

notas da consulta 1

LM, 45 anos; enviado pelo Dr. K. (falar com K. na próxima semana)
problema: passagem de um blog a outro (e isso é um problema?! onde reside realmente o problema?)
de um blog colectivo (tipo horda dos rapazes?) a um blog individual (é assustador ser peter pan sozinho?)
paciente revela estado de agitação controlada
não foi prescrita medicação

Terapia breve, 1ª sessão

- Curioso... O fundo da questão é normal, uma mistura de abandono e crise da meia-idade, mas é a primeira vez na consulta que me aparece um motivo assim.
- E isso é bom ou é mau? Quer dizer, vai tratar-me numa base experimental ou já há...
- Claro, claro, não se preocupe, o caso é simples. O fundo da questão, como disse, é normal. Mas ouça: já está mesmo tudo decidido?
- Tudo. É como se o Groucho já estivesse morto neste momento. Pobre coitado.
- E qual vai ser a sua parte nesse plot?
- Ainda vou ter de inventá-la. Tenho inteira liberdade para o matar. Posso escolher tudo, arma, motivo, local... Tudo.
- Só não pode salvá-lo do seu destino.
- Isso não posso, de facto.
- Mas porquê matá-lo?
- Ao Groucho?
- Ao blog.
- Porque o Groucho é o blog.
- Sim, mas porquê encerrá-lo, porquê acabar?
- Ora, porquê acabar?.. Porque é o destino de tudo o que algum dia começou, não?