trabalho de luto # 11


Futebol inteiro

Todas as relações têm os seus arquétipos. O Ademar começou por ser o irmão mais velho, e único, da minha namorada, depois o cunhado. Mas isto não é ainda uma relação, apenas o terreno circunstancial onde uma relação se pode desenvolver.
Houve uma história que o Ademar contou, era o resumo talvez de um romance, talvez de um filme, em todo o caso era uma história de exemplo. Dois homens que se conheciam já bem depois das eternas amizades adolescentes, que se acompanhavam em longas e silenciosas caçadas. Uma amizade masculina sem confissões, sem construção de memórias, sem consolo para o futuro. 

Foi esse o arquétipo. Contudo, nenhuma das razões que subjazem a esta amizade tão perfeitamente romanesca foram as nossas razões. Não éramos avessos à confissão, à importância crucial e por vezes cruel da memória, à necessidade de consolo — apenas tínhamos outros interlocutores para essa parte da vida. Cada família tem os seus equilíbrios, e por acordo tácito o lugar da nossa amizade foi fundado nessa espécie de silêncio com que se percorrem alguns espaços do mundo. Tanto faz que sejam os grandes espaços em que se procura a caça, como na história de exemplo, ou o pequeno campo e a eira em que jogávamos futebol, como de facto aconteceu connosco. Breve que fosse o jogo, era sempre esse longo olhar que pousamos sobre o mundo, e onde tudo repetidamente acontece pela primeira vez: a força e o cansaço, a paragem e a corrida, o instinto e a inteligência. E sempre, o princípio e o fim.
Futebol inteiro, era assim que dizíamos.

trabalho de luto # 10

trabalho de luto # 9

trabalho de luto # 8

trabalho de luto # 7

muito trabalho, muitas idas e vindas, muita música # 2

Não é só a voz de Robert Wyatt, é também o clarinete de Gilad Atzmon e o violino e viola de Ros Stephen. Alguns standards como nunca os ouvimos, tão frágeis, tão perto do essencial, tão para lá deste mundinho.

muito trabalho, muitas idas e vindas, muita música # 1

Tem Charles Lloyd, já há muito sem nada a provar a ninguém, entre composições suas, algum Monk e arranjos de tradicionais, soando tão jovem quanto o Chet Baker jovem, mas mais bluesy. E tem um trio superlativo: Jason Moran, Eric Harland e Reuben Rogers.

bloco-notas # 17

Um dia terei feito as contas à vida. Mas julgo que muito se passou atrás das costas. Fui onde não sei nem estive. Culpado e herói em pequenas proporções desconhecidas, irrelevante sempre para as contas maiores do mundo. Que de resto não sabemos quais sejam. Há muito que fugi pelas escadas que há sempre nas traseiras do rigor. Saí noutra rua tão principal quanto a da frente, com outros carros do mesmo trânsito, outras pessoas da mesma humanidade. Não há uma ciência para o mundo e as suas tarefas, menos ainda para o que se passa atrás das costas ou nas traseiras da vida. Vamos dentro do que não sabemos como dentro do nosso próprio corpo. Até que tudo pára, outros continuando.

bloco-notas # 16

Um dia terei feito as contas à vida.
Mas julgo que muito se passou atrás das costas.

*

Há muito que fugi pelas escadas curvas
Que há sempre nas traseiras do rigor.

*

Não há uma ciência para o mundo e as suas tarefas

*

Miguel Cardoso, Que se diga que vi como a  faca corta

Driving Miss Laura # 29

Hoje, o Testamento Vital no Prós e Contras (22h, rtp 1): Laura Santos, Galriça Neto, Daniel Serrão, Maria de Belém e Rui Nunes.

Mundo vivo


De Wynton Marsalis, as mais das vezes nem quente nem frio, antes pelo contrário. Mas houve Citi Movement, esse pináculo, e quem fez uma coisa assim pode sempre regressar das coisas irrepreensíveis de bom gosto mas nada excitantes. Vitoria Suite é quase sempre excitante. A ancoragem é clássica — a massa de som, as passagens, a ironia é Ellington by the book —, mas por sobre isso a enorme liberdade e frescura da coisa spanish (e dos spanish eles próprios: Paco de Lucia, Chano Dominguez, Tomasito, El Pirana). Uma mistura que é um mundo vivo.

Uma avalanche de narrativas

Ora bem, disse o manchas, enquanto esfregava as mãos de contente. Ora muito bem, repetiu, para o caso de não se ter ouvido logo à primeira. Lá ia ele começar mais uma nota crítica. Mas antes ainda disse mais uma vez: ora muito bem mesmo.

Partir

É uma música para partir, não para chegar. Não sei porque digo isto, mas sei que me está absolutamente certo. O resto não interessa (ou era tempo tirado à viagem).

bloco-notas # 15

Sim, talvez isso muitas vezes exija um esforço sobre-humano, uma auto-vigilância extenuante — não deixar que a nossa dor, individual, intransmissível e sumamente verdadeira, crie os seus pequenos bodes expiatórios. Somos tão miseráveis assim, quase tão involuntariamente miseráveis? Somos.

A vida com árvores # 11

A árvore acumula
Tempo
Mas sem nostalgia

[Alberto de Lacerda, O pajem formidável dos indícios]

bloco-notas # 14

O subentendido, a um tempo impróprio, mesmo falso, mas também radicalmente desafiador, de que compreender é aceitar.

Uma viagem à Índia # 1

Sim, a questão é agora o tédio, ou nos termos do sub-título: melancolia contemporânea (um itinerário). Mas o tom de dissecação imperturbável mantém-se, mesmo quando alargado ao humor negro. É por isso que ler é afastarmo-nos de Bloom. Bloom fica no seu definitivo tédio, o mundo prossegue. Ler é o prosseguir do mundo. Narrar é o prosseguir do mundo. Bloom não lê nem narra. Prosseguir é cruel. Não há aqui sequer a desculpa ainda heróica do sim nietzscheano, da inocência do mundo que se aceita como destino. Prosseguir é só prosseguir. Isso é cruel, porque sem desculpas, sem razões, e sem afastar a morte. Não se esperava consolo da dissecação do mal. Porque se haveria de esperá-lo da dissecação da melancolia?

Lloyd Cole goes la la la

man, o cd até se ouve bem, o peso da idade não é tão pesado assim, as líricas continuam em alta, as melodias desceram à planície mas não sou eu que me vou queixar em demasia, mas essa coisa do la la la é que não havia mesmo necessidade, e aqui para nós que ninguém nos ouve, esse departamento já está esgotado pelos la la la manhosos que a gente tolera no Cohen e nas angélicas vozinhas das meninas dele, é dose antiga, tás a ver o esquema?

Cadernos de Gonçalo M. Tavares | 27

Vamos ter que atravessar o óbvio: um livro de livros e da literatura toda que os livros fazem e imaginam para além deles. 
Vamos ter que nos lembrar do que literariamente já esquecemos, mesmo que até nunca o tenhamos sabido.
Vamos ter ainda que saber sair pela porta dos fundos desta síntese maior que as partes  tão diversas da obra de Gonçalo M. Tavares. 

 Depois, poderemos finalmente começar a ler, isto é, a separar-nos de Bloom — porque o mundo prossegue, mas nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de Bloom, o nosso herói.


É nestas alturas que um gajo gostava de ter uma reputação qualquer que pudesse apostar: este é um dos tais

Hora de fecho

Persiana a descer no seu andamento elétrico. Borboleta entre a persiana e a janela. Persiana a subir no seu andamento elétrico. Borboleta de encontro à janela. Apagar a luz. Pausa. Acender a luz. Persiana a descer no seu andamento elétrico. Vazio entre a persiana e a janela. Apagar a luz.

Reprise # 21

No limite de cada um há um absoluto que vale para o todo, porque o preço que cada um paga é de facto absoluto e irreversível.

Kurt Elling # 2

esta terra não está feita para nós (Ruy Belo) — esta música sim

Kurt Elling

Coltrane e Hartman são colossos intimidantes, e o dueto acidental que os uniu em 1963 é uma referência absoluta para todo o amante de jazz. Só que Kurt Elling não é um qualquer. Não há hoje voz masculina no jazz que se lhe compare, nem desafio que o diminua. E os arranjos são perfeitos. A coisa arranha, como só Coltrane sabia; a coisa aveluda por dentro do arranhar, como só Hartman era capaz. A coisa sabe a Kurt Elling em assombrosa perfeição.

PS: é impressão minha, ou ninguém por cá falou disto?