Reprise # 20

No inverno, à mesma hora desta foto, será já noite.
Sem dúvida, o começo de qualquer coisa. Mas é-o agora, a esta distância, não quando a primeira vez o escrevi. Como sempre, estávamos lá, começou connosco ou através de nós, mas não sabíamos que era um começo. Provavelmente, será também assim com o fim.

Troubadour

Um incómodo na voz, como se ela estivesse sempre errada no acento das línguas que tenta — mas é por esse incómodo que alguma coisa fica certa.
Um incómodo na guitarra, como se nunca se desviasse suficientemente do original a não ser na sua solidão — mas é esse deslizar solitário que conduz à parte incerta.

Reprise # 19

A realidade vem sempre cobrar o seu preço? Duvidoso. Já vi angústia que chegue precisamente pela realidade ter falhado em coincidir com a culpa de alguém que escapou impune.

Reprise # 18

No inverno, à mesma hora desta foto, será já noite. 
Uma notação realista pode tornar-se uma “metáfora” para quem não precisa de guiar-se nessa realidade particular. A metáfora aparece rapidamente quando deixamos de estar sujeitos às regras da sobrevivência no mundo natural. Uma constatação de perigo pode assim transformar-se num presságio melancólico, o alerta dos sentidos ser substituído pelo devaneio sensual da imaginação nocturna.

Reprise # 17

No inverno, à mesma hora desta foto, será já noite.

Delicadeza

Não me perguntes isso, dizia ela. Era uma forma delicada de me dar a entender que eu não gostaria da resposta.

No silêncio de ler

Há um momento na vida de um leitor intensivo a partir do qual tudo o que lemos se liga visivelmente a quase tudo o que já tínhamos lido. É como se um gigantesco mecanismo se pusesse enfim em movimento. Os seus objetivos são insondáveis, provavelmente inexistentes, mas a magnificência silenciosa do movimento é por si justificação que baste.

Começa a ser um dia como outro qualquer

Há perguntas de que já sabemos as respostas. Mas não aceitamos as respostas porque isso impossibilita uma história e obrigar-nos-ia a seguir sem ela. Então repetimos as perguntas. Dizemos que sim, que sabemos que essa história que queríamos é impossível e que vamos continuar com a restante vida. Mas repetimos as perguntas. A restante vida implica antes de mais parar com as perguntas cujas respostas já sabemos há muito.

Reprise # 16

Não são os infortúnios da virtude. Ainda há disso, mas não é isso. É a teia em que nos enredamos para sermos apenas decentes. A prova de que o pecado original se mede na construção social e não aconteceu lá atrás, está a acontecer desde sempre agora. Não é todo o mundo, mas é sem dúvida a parte do mundo mais incontornável e que mais pesa.

Reprise # 15

A clamorosa inabilidade em usufruir de todo o tempo do mundo. Não é só a culpa de sermos sobreviventes ao nosso banal fracasso. É a teia em que nos enredamos para sermos apenas decentes.

Reprise # 14

Este é um leitor que entardece. Soletra a morte. Na verdade, começa a ter todo o tempo do mundo.

Reprise # 13

 Portanto, os livros, o chá e os óculos (em processo de naturalização). É uma imagem da vida privada, pouco a dizer a partir desse ângulo. Porém, há lá uma história condensada, e as histórias são sempre humanas, singulares, nunca privadas. Uma banal história de acumulação do tempo enquanto existência — mas singular. Porque livros, chá e óculos poderia ser o contexto de um jovem leitor. Não aqui. Cada elemento tem uma camada específica de tempo. Este é um leitor que entardece. Soletra a morte.

Reprise # 12

No início, apenas os livros. Às vezes havia bolachas, chocolate quente, limonada. Tudo esporádico, não existe na memória, apenas na reconstituição laboriosa do tempo. Portanto, no início, apenas os livros. Depois, os livros e o chá. Agora, os livros, o chá e os óculos (em processo de naturalização).

Oscilação

Não entre isto e aquilo, mas sobre que força aplicar para a recusa disto e daquilo.

Reprise # 11

O tempo cura. Desde que não nos fixemos no seu próprio movimento de cura. Gastando-o como se fosse nada, ou até possibilidade do agravamento da doença. Esse o preço.

Reprise # 10

Mas também a ciência animal
de lamber as feridas, a furtiva alegria
Inês Lourenço, Coisas que nunca, 2010

9/11

A homenagem, claro. Mas penso nos realmente próximos das vítimas. Porque há também a dificuldade destas mortes históricas. Como se a carga simbólica e a rememoração social nos furtasse o morto e tornasse o luto mais difícil. Demasiado sós, quando o morto é exclusivamente nosso; quase sem privacidade, quando o acontecimento histórico se apodera dele.

Há esse momento em que tens necessidade do despojamento, de parte da tua língua, de te chegares ao precipício para conheceres a distância. Depois a vida continua, como sempre continua para aqueles que por cá continuam. Não interessa o que ganhaste ou perdeste durante esse momento, não há matemática para isso. O momento perdura em camera obscura, ao longo do tempo vai-se revelando diferentemente, dirás até que já não é consequência disso e contudo é, mas também não há meio de o saber ou de o negar. Nem isso importa porque a voz continua e sabes que atravessou a camera obscura.

Reprise # 9

E o sexo de ler? Sim, existe. Na fórmula llansoliana e para lá dessa fórmula. Não vamos agora falar disso. Mas sim, existe.

Reprise # 8

O meu verão: a leitura sub specie mar.

Reprise # 7

Ler nada pode contra a morte. É apenas um ritmo de estarmos vivos, e como a vida sujeito a interrupção definitiva. Acabarei este livro?

Reprise # 6

O fim do meu mundo já aconteceu. Quilómetros e quilómetros de passeio na praia em dias consecutivos, na parte dos aglomerados humanos ninguém a ler. E contudo, eu sei que uma frase destas, em bom rigor, não quer dizer nada que não se possa resumir a uma nostalgia vagamente narcísica, e que, em si mesma, pouco tem que ver com a leitura. A não ser naquela parte em que a leitura é a desculpa culta e legitimada para o próprio exercício do narcisismo.

Reprise # 5


Certo, uma casa de férias que se alugue não precisa de ter uma estante. Para os livros, se os houver, bastará o saco que os transporta. A mitologia barthesiana do intelectual em férias só circulou no milieu, e mesmo essa implicava mais o intelectual como escritor do que o intelectual como leitor. E o intelectual como escritor, já se sabe, é da ordem da criação ex-nihilo: nada de bagagem, nada de biblioteca acoplada.
Ao longo dos anos, fui-me habituando aos lugares improváveis de colocar os livros que as férias permitem. Este não foi dos piores, e sem dúvida nenhuma foi o mais lógico: na dispensa, em partes iguais entre as utilidades e os comestíveis.

O cânone é um tigre de papel

Eu não pergunto nada ao João Tordo porque, por princípio, tomo as afirmações dos escritores em entrevistas como sintomas e não como argumentos. Que o escritor passe isso a ensaio, e então conversaremos. Mas quando um crítico como o Eduardo Pitta parece tomar esses sintomas como argumentos também seus, aí já me apetece fazer perguntas.
Eduardo, acha mesmo que o cânone português manda que se escreva hoje como nos idos de 50, 60 e 70 do século passado? Leio nos jornais e não encontro ninguém que pense isso (e para simplificar, desconto já o António Guerreiro). Leio na academia e encontro as coisas mais díspares, como aliás seria natural porque o processo está em aberto — mas em todo o caso leio muito menos defesa ou valorização do experimentalismo para hoje do que defesa e valorização dos tais romances que querem contar uma história.
Acha mesmo que "Existe um conjunto de regras das quais não se deve sair se queremos fazer o que cá se chama literatura"? Serão as tais do abjecionismo metafísico que fo Eduardo diz ter constituído o mito da nossa ficção dos anos 60? Mas mesmo que esse mito o tenha sido de facto (o que concedo com ressalvas), onde está ele hoje a não ser na história que desse tempo literário se tenta ir fazendo?

Retroversão neoliberalismo-século XVI

“E as mais antigas famílias nobres até ganharam o novo título de Grandes de Espanha. (...) Este estatuto passou a permitir-lhes, a partir daí, apresentarem-se diante do rei de cabeça coberta, tratando-o por primo, e outras mais prerrogativas, como entrar nas igrejas montado a cavalo ouvindo aí, nesses preparos, a missa.” (Pedro Almeida Vieira, A mão esquerda de Deus, p. 160-161)

Reprise # 4

Que há nesta varanda? Um ringue de boxe (bate na tua dor, recebe da tua dor, bate na tua dor, recebe da tua dor). Um combate em número indefinido de assaltos (dia, noite, baixa-mar, preia-mar, luz, sombra, murmúrio, rugido). A possibilidade permanente de sair — se podes sair, porque não podes sair?

Reprise # 3

Que é uma varanda que abre sobre o mar? Um navio sem ponto de partida ou de chegada.

Reprise # 2

Que há numa varanda? Fundamentalmente, apenas o que fica para além dela.

Reprise # 1

A varanda foi determinante. O resto era já da ordem do suplemento: quase ninguém, os dois restaurantes ao virar da esquina, a nortada permanente. Convém sempre que o nosso desejo real de solidão não seja distraído por um excesso de mundo. Dez quilómetros para norte e doze para sul, o mundo existia abundantemente. Mais fácil, assim, esquecer-se de nós. Mais fácil, também, a ilusão de uma distância protegida.