A faca não corta o fogo (outro comunicado interno)

Foi por causa destas seis razões — uma, duas, três, quatro, cinco, seis — percebes? Outra faca, outro fogo — e largas limitações minhas. Dois mundos antagónicos — e largas limitações minhas. Quem compreende, compreende. Eu compreendo — sobretudo a parte das largas limitações minhas. Mas as limitações só o são quando postas perante o que as delimita — a faca, o fogo. É por isso que faço como tu: passo a outro blog.

Sonhos

Comunicado interno: acabei aquilo (agora, exactamente agora). A última tarefa foi localizar na nova edição aquela frase que de repente me (re)saltou: cálculos, tentativas. Localizei, e percebi que me lembrava mal. A frase é: cálculos, sonhos, tentativas. A minha memória está a amadurecer comigo (wishful thinking?).

Breves # 2: um prémio merecido

Estou a falar de mim, que também sou gente, mesmo que em jeito de brevidade: faltava ao meu ano o prémio da leitura deste livro. Depois eu volto aqui. Absolutamente.

Breves: nem tudo no interregno foi trabalho



Entretanto...



Resumindo uma semana de interregno

Agradeço-lhe ter usado argumentos tão pobres, a tarefa de refutá-los está assim simplificada. Contudo, e espero que concorde comigo, sinto-me obrigado a ter também em atenção os argumentos mais sofisticados que poderia ter invocado, e que só não fez, estou certo, por cortesia e deferência para comigo.

António Alçada Baptista

António Alçada Baptista tornou-se-me visível com Os nós e os laços. Suponho que para muitos da minha geração terá sido assim. O que nos interessava naquele romance era a serenidade com que se dava o possível de relações afectivas que conseguiam passar ao lado do vulgar ciúme ou do já mais complexo desejo de posse, e que faziam da sexualidade uma alínea mais do diálogo humano. Depois da revolução dos costumes, depois da revolução sexual, afinal estava tudo ainda por fazer.
A figura do escritor era gentil, melancólica, afectiva — e isso também conquistava. A sua utopia “feminina” era uma bela história ética com personagens não muito credíveis — aceitávamos o princípio do cuidado, dos afectos, de olhar o mundo do lado de lá do poder, mas não nos parecia que as mulheres tivessem isso inscrito na sua natureza ou na sua sociabilidade histórica. Lembro-me de num colóquio em que ambos éramos intervenientes lhe ter dito, em provocação, que a sua “teoria” desconhecia, por exemplo, as personagens femininas da Agustina Bessa-Luís. Sorriu: considero a Agustina Bessa-Luís um grande escritor. E repetiu: um grande escritor. Sorri eu também, porque nesse um estávamos de acordo (e no grande também, claro).
Metáfora involuntária e melancólica: por três vezes orientei teses de mestrado sobre a sua ficção e o seu “ensaio”, por três vezes a vida deu voltas inesperadas e as pessoas tiveram de desistir. O riso de Deus é por vezes sardónico até dizer basta.
A última coisa que soube de António Alçada Baptista (sim, a minha ignorância é grande) é que lhe devia a Moraes — e foi bom sabê-lo. Só isso já seria suficiente para lhe dizer obrigado.

Oráculo, ou A mesma história de sempre # 4

Vivi pela espada, é justo que morra pela espada. Só nesta frase o conheci verdadeiramente e todos os equívocos se desfizeram. Soube enfim da sua lucidez e o modo como isso lhe permitia passar despercebido junto de todos. Conhecê-lo era começar a conhecer-me. Havia uma espada nas minhas mãos, ele o dizia. A sua morte à minha força e à minha vontade, sem que eu soubesse porquê. Mas não havia engano nas suas palavras. Eram palavras que não lhe pertenciam. O mundo falava das suas histórias de sempre, envolvia-nos nas suas histórias de sempre, ele limitara-se a descrever o que lhe calhara em sorte. Eu estava incluído na sua sorte. Eram palavras tão exactas e tão impessoais que soube que iriam ser também minhas. Daqui a alguns anos, daqui a muitos anos, naquele certo e determinado momento, iria dizê-lo a alguém, que tal como eu agora não faria ideia de que pertencia àquela história. Que tal como eu agora olharia minuciosamente a sua vida, procurando a espada, a fúria, a frieza, a determinação. Que tal como eu agora descobriria que desde muito cedo começara a viver pela espada, que nunca ousara sabê-lo embora o suspeitasse largamente, que havia um preço que alguém cobraria e que isso era o modo de o mundo continuar na sua trajectória.

Oráculo

Vivi pela espada, é justo que morra pela espada. Disse-mo a mim — eu, que não sabia que empunhava a espada, e muito menos que o matava.

A mesma história de sempre # 3

Tornar-se adulto, envelhecer (meros exemplos) — isto não pertence ao programa do devir do mundo. São narrativas das nossas ilusões mais genuinamente verdadeiras e complexas. O devir do mundo acontece quando “tornar-se adulto” e “envelhecer” não conseguem explicar tudo o que acontece dentro da narrativa de “tornar-se adulto” e “envelhecer”. Pode ser uma pequena percentagem, quase sempre não é mais do que uma pequena percentagem — mas é essa percentagem que é o devir do mundo. As coisas acontecerem sem nós, essa pequena percentagem de liberdade sobre a liberdade a que chamamos nossa.

A mesma história de sempre # 2

Um dos problemas em distinguir as histórias é a capacidade que cada história tem para apresentar-se como uma história diferente. Ou efectivamente ser uma história diferente. Há duas variáveis nesta questão: as nossas ilusões e o devir do mundo. Das nossas ilusões nunca acabaremos de saber; do devir do mundo, raramente começamos a dar conta.

A mesma história de sempre # 1

O mais difícil de perder é o hábito de criar coisas a que temos de ceder. Dizemos que cedemos a uma tentação como se nos submetêssemos a alguma coisa em vez de dizermos que criamos qualquer coisa para a ela nos submetermos. (...) Temos de nos lembrar continuamente de que os nossos vícios são invenções nossas, tanto quanto as nossas virtudes; de que nunca perdemos o controle, por vezes apenas infringimos as regras, e nunca somos inteiramente infiéis, apenas somos fieis a outra coisa.
Estamos mais interessados na regra que infringimos do que na regra a que obedecemos para a infringir. Enquanto estivermos viciados na culpabilização e na punição e não nas alternativas, nunca perceberemos a história toda. Apenas a mesma história de sempre.

Adam Phillips, Monogamia, Trad. de Abel Barros Baptista, Coimbra: Angelus Novus, 2008, p. 124

Aquele órgão só de professores doutores por extenso # 11

“[na montagem] É quando os problemas de roteiro ou interpretação são percebidos e contornados, onde um personagem pode ser modificado ou um canastrão pode virar um ator razoável. (...) Há um milhão de maneiras de melhorar uma atuação na montagem. Nos momentos mais vergonhosos pode-se cortar para a cara do outro ator evitando o vexame, uma fala mal falada pode ser regravada e usada com a imagem do ator de costas e daí para afrente. Confesso que tenho um certo prazer quando consigo fazer isso sem deixar marcas da trapaça.”

Fernando Meirelles, Diário de Blindness, Famalicão: Quasi, 2008, p. 64

Por mim, confesso que até não me importava que houvesse marcas da trapaça, desde que efectivamente pudesse haver um editing instantâneo das intervenções que tornasse a coisa só um bocadinho menos vexante de assistir, ou mais estética, ou até — eu sei que é pedir muito, eu sei — quase inteligente.