Blindness

No que à partida seria mais difícil, o filme de Fernando Meireles não soçobra. Seria difícil objectivar em imagem a dupla condição imaginária do leitor de “Ensaio sobre a cegueira”: imaginar-se na pele dos que têm a cegueira branca e imaginar o caos da quarentena e da cidade. Uma câmara trepidante, alguma desfocagem que “resolve” em branco, e um cenário de cidade caótica sobriamente verosímil são um bom análogo dessa dupla condição.
Onde o filme falha, é na dimensão político-poética que o livro ensaia. A importância das mulheres está diluída, o gesto ético da mulher do médico que mata o chefe da camarata dos maus aparece no filme como uma simples e justificada vingança, a moral do grupo em nenhum momento é enunciada, o cão das lágrimas não se percebe que está ali a fazer, a confissão de amor do velho da venda preta tem exactamente o sentido contrário, relativamente ao grupo, que tem no livro, etc. Certo que o filme não tem de ser fiel ao livro, mas o que o filme elimina, ou as suas opções, retiram ao filme a possibilidade de um confronto mais forte com o presente que é o nosso. A alegoria torna-se mais etérea, menos incisiva, mais hollywood. A cegueira, não o ensaio sobre ela. Um sobressalto de alma, não um pensamento que interroga almas (enfim) sobressaltadas.

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