Multiplex 23

- Ao contrário de alguma crítica, não vi simplismo nenhum, Leitora. Nem panfleto anti-globalização, nem que as histórias se perdessem.
- É verdade que o mundo está como está, mas isso ninguém o nega. A questão é que num mundo destes é difícil escapar ileso. Mas sempre o foi. Iñárritu podia-se ter ficado por um bairro de uma grande ou média metrópole, a questão seria a mesma.
- Entrelaçar os três continentes é um bom dispositivo narrativo, e a parte asiática, em termos de cinema, tem as sequências mais arrebatadoras, e um espantoso final.
- Mas também se percebe que a ligação entre as três histórias faz um mosaico que pede uma leitura política.
- Claro, Leitora. E porque não, se isso da política atravessa de várias formas o nosso quotidiano mais comezinho? Aliás, acho que a questão da política, aqui, é mesmo essa: ela não obriga directamente a fazer, mas condiciona as possibilidades do fazer. Rouba-as, no fundo. Não vejo como negá-lo. Isso é uma parte do drama.
- Sim, a outra é que a morte existe, e não é fácil lidar com isso.
- Nunca foi. Acho que nunca será...

Sorry...

Psicopatologia da vida quotidiana # 21

Bouguereau, Admiration

“Se perguntasse ao Pollini: «Signore Pollini, como é que acha o senhor Benedetti-Michelangeli?», ele ou lhe dava uma bofetada ou achava isso simplesmente revoltante. É uma pergunta a que não se pode responder.
Só quando são muito velhos, assim como Rubinstein, é que dizem, é tudo uma merda, excepto aquilo que eu faço. E eu estou também inteiramente convencido, porque ele é absolutamente o melhor. E pode, nesse caso, dizer isso à vontade. E quando ele faz três vezes uma coisa assim, é por demais evidente que ainda mete no bolso todos os jovens e é melhor. Só que ele morre e vem outro que é tão bom como ele.” (Kurt Hofmann, Em conversa com Thomas Bernhard, Assírio e Alvim, 2006, p. 89).
Só quando ele morre, senhor Bernhard, é que vem um tão bom como ele? Que mundo tão económico, este, tão pouco esbanjador de talentos, tão ordenado à perfeição constante. Quem diria?.. E se a pergunta fosse mesmo para responder, para dizer a capacidade de admiração de que se é capaz? Estou aqui, estou a pensar que o senhor Bernhard frequentou demasiado tempo um daqueles órgãos exclusivamente constituídos por professores doutores por extenso... Pronto, pronto, eu sei que não e que a comparação é ofensiva. Mas de vez em quando saem-lhe umas frases estranhas, hem Senhor Bernhard?

Multiplex 22

- Menor, mas sempre inteligente.
- E dos poucos que se atreve a misturar géneros menores, se isso for divertido e servir a causa do filme.
- Reparei que te riste bem mais que todos na sala.
- Não estava nada preocupado com o plot, gozei sobretudo as piadas. Então aquela de ter nascido na religião judaica, mas depois se ter convertido ao narcisismo...
- E tu?
- Eu? Eu nasci na classe média que se estava a tornar narcísica, e estou a ser convertido à força em qualquer coisa que trabalha.
- Tem menos piada.
- Mas desde quando é que Portugal tem piada?..

A Leitora, no seu infinito particular (XLIII)


- Acabaste?
- Hum...
- Sabes que poucos mais leitores te restam para além de mim?
- Pois, isto da crítica...
- E vais repetir a dose de cada vez que chegar um novo Senhor ao bairro?
- Não sei se tenho fôlego para tanto.
- Muita gente, de facto. Quase toda a literatura que importa, se virmos de mais perto.
- É esse o meu problema, querer ver de perto.
- Ora, tu tens tempo.
- Tenho? Porquê? Por ser mais velho?
- Nem mais. Já não tens nem a obsessão nem a curiosidade de viver. Pelo menos, é o que eu acho.
- Pois...

O Senhor Walser # 16. Gran finale reloaded.

O Senhor Walser # 15. Gran finale.

Brad Mehldau no Japão

Bom, não foi no Japão, foi no Theatro Circo, na noite de terça. Mas eu explico.
No ano passado, na Casa de Música, Mehldau apresentou-se com o seu novo trio. Concerto notável, apesar das reticências da crítica dos jornais. Consolidação da música do trio, com Mehldau a deixar todas as despesas rítmicas bem entregues aos seus companheiros e a poder libertar-se para as suas derivas. Mas não era ainda o tempo da inovação daquele trio, e é preciso saber respeitar os tempos. No resto, tudo esteve em altíssimo nível.
Agora, a solo, tal como foi possível ouvi-lo em Braga, Mehldau está no seu tempo de pesquisa, disposto a desfazer grande parte daquilo que até agora fez, para encontrar o novo pelo avesso. As suas pontes com a “música erudita contemporânea”, a sua capacidade de ritmos com grande massa de notas, quase escondendo os motivos singulares, o seu martelar ostensivo à procura de uma linha nova, tornaram o seu concerto exigente, com momentos em que se temeu alguma deambulação sem saída, mas com outros momentos de puro génio, que quase tornavam retrospectivamente necessária essa deambulação. Composições que Mehldau prolongou até limites à beira do insuportável, numa viagem muito particular pela sua formação musical — é mais visível do que nunca o mundo “clássico” de que provém e o que pretende fazer com ele —, oferecendo-se desde a sua oficina, como às vezes os concertos também têm que ser.
Desde a segunda e longa composição da noite, lembrei-me muito do Jarrett que foi ao Japão depois dos seus aclamados discos/concertos a solo. Sun bear concerts, a caixa de seis discos dessa digressão de 1976 por algumas cidades nipónicas, tem momentos insuportáveis de auto-destruição de um estilo que se tinha colado a Jarrett. Mas isso foi o necessário para Jarrett passar a outro patamar, para o que também contribuiria a sua passagem por Bach.
Mehldau está nessa fase. No segundo encore da noite, dos vários pedidos da assistência, um ouviu-se distintamente: “Exit music (for a film)”, uma das mais belas canções do terceiro volume da arte do trio. Mheldau acedeu. Mas não concedeu. A melodia estava lá, mas Mheldau retalhou-a até encontrar o começo de outra coisa que é ela transfigurada.
Este é o tempo de mais uma passagem para Mehldau. Há grandes concertos de passagem e este foi um deles. O próximo disco a solo de Mehldau promete fazer história. Nessa altura, todos os que encheram o Theatro Circo poderão dizer: ouvimos nascer esse disco. E isso é também uma forma de felicidade.

O Senhor Walser # 14. Post-scriptum.

E isso da casa, como vai? Não estavas a mudar? Passaste o verão com psicopatologias quotidianas com vendedores e visitas e gadgets vários dos novíssimos habitats, é por isso que pergunto. Assustou-te o Walser? Não queres uma casa assim? Mas confessa lá, aquela do rodapé é bem vista, hem? E os pequenos contratempos, muito realista, não? Ai estás a passar por isso agora? Que interessante. E foi por isso? Não? Coincidência? Mas há disso? Quero dizer, na perspectiva do triunfo da racionalidade absoluta, há aí lugar para as coincidências? Espera, já sei o que vais dizer, espera um pouco. Mesmo que não haja racionalidade absoluta, mesmo que isso seja apenas uma forma discursiva de contornar medos demasiado humanos, mesmo que tudo o que haja seja racionalidades — há aí lugar para as coincidências? Não era isso que ias dizer? Diz lá então. Espera aí, deixa ver se entendo: o ponto de partida é irrelevante, e os motivos desse ponto de partido ainda mais irrelevantes, o que importa é o que se vai dizendo a propósito. É isso? Não será demasiado defensivo, defensivo de uma outra maneira? Não? É propriamente natural e caótico? Achas? Ah, como um pequeno efeito de enormes consequências. Estou a ver. Consequências lógicas e encadeadas, e contudo há uma enorme desproporção, uma tão grande desproporção que consequências é definitivamente um termo desadequado. Hum... Estás cansado? Sim, das outras coisas, percebo muito bem. Claro, fiquemos por aqui. Sem dúvida. Tens toda a razão. Não há nenhuma necessidade de entrar em pormenores.

O Senhor Walser # 13. Excursus.

O Senhor Mourão ensaísta está contente com o seu ensaio em doze partes. Escrito e publicado post a post, sem poder vir atrás para emendar, acrescentar ou retirar, o Senhor Mourão elevou-se muito acima da racionalidade e da lógica mesma do ensaio. Que grande conquista a do Senhor Mourão ensaísta, que triunfo!
O Senhor Mourão pensa que o seu ensaio é homólogo da racionalidade absoluta da casa de Walser: um ensaio cujo plano coincide ponto por ponto com a sua concretização. Ou melhor dito, uma concretização ensaística que descobre post a post o plano que lhe presidia. Quantas horas de estudo e pensamento e conjectura foram assim poupadas. Ah, a felicidade da pura perfomance!
E não serão umas quantas fendas minúsculas ou anomalias lógicas que porventura se encontrem disseminadas no trabalho que perturbarão o contentamento do Senhor Mourão ensaísta. Sejamos claros sem entrar em pormenores: Mourão ensaísta tem grandes expectativas.
Certo, Mourão tem a vantagem de habitar uma outra história. Que não metendo casa, dificilmente meterá a possibilidade, mesmo que apenas ficcional, de alguém lhe bater à porta dizendo: é a torneira, está a pingar. Ou é a janela, parece que está emperrada. E assim por diante, numa soma de pequeninos problemas que, isolados, estão mesmo a pedir que não lhes demos importância demasiada, mas que colocados em contiguidade, um a seguir ao outro, irmanados na mesma aflição de serem falhas de um plano que não as deveria ter, deixam de ser uma linha de identificação de tarefas muito pragmáticas e exequíveis para parecerem uma escalada sabe-se lá com que perigos ocultos.
Em todo o caso, Mourão tem grandes expectativas. Sejamos claros sem entrar em pormenores: um ensaio não deve nada a nada. Parece que sim, mas não deve. Ponto de partida, objecto de análise, citações — tudo isso existe da mesma forma que nós existimos em sentido mais radical: fomos lançados para aqui, não foi decisão nossa, isto em que existimos é a nossa condição, não a nossa escolha. A escolha é outra coisa, como o ensaio é outra coisa que ponto de partida, objecto de análise e citações, ainda que os possa conter a todos em abundância.
Uma última vez, sejamos claros sem entrar em pormenores.

Abbé Pierre, uma nota e um desabafo

O trabalho de Abbé Pierre com os mais excluídos dos excluídos foi sempre uma bofetada de luva branca em todos nós. Até porque aproveitou como riqueza aqueles bens que todos os dias deitamos fora sem quaisquer considerações de re-aproveitamento.
Barthes falou (bem) da iconografia de Abbé Pierre, da sua imagem de apostolado, da sedução romântica do engagement religioso de cariz social em época de emagrecimento da crença em deuses e revoluções. Mas perguntava-se se o reconhecimento dessa imagem não funcionaria como desculpa silenciosa para deixar cair a exigência de justiça social, tomando em seu lugar o glamour da caridade — que naturalmente exige a abnegação e entrega que não estão ao alcance dos normais.
Compreendo Barthes. Mas tanto quanto sei, não era assim que Abbé Pierre se via a si mesmo nem era assim que entendia o sentido do que fazia. E se a sua actuação descansava algumas consciências — do que não tenho dúvidas —, o problema não está nos seus actos mas em nós: se não fosse ele a desculpa, outra coisa seria (quase sempre a desculpa esfarrapada de que isto de pobres e ricos há-os desde o início dos tempos).
O que sei, isso sim, é que Abbé Pierre fez um trabalho que competia ao todo da sociedade fazer de forma organizada. Louvor para ele, vergonha para nós enquanto sociedade civil.

Pequeno desabafo: felizes dos que têm um Abbé Pierre, já podem ter menos vergonha de ter um bispo da Guarda.

O Senhor Walser # 12. Fim de partida. Expectativas. Maioria ocidental.

pormenor da capa c/ desenho de Rachel Caiano

O que quer que venha a acontecer à sua casa, Walser recusará sempre o apelo do exterior. É esse o seu primeiro fim de partida: nada fora da racionalidade absoluta da casa. Um fim de partida voluntário, se se podem pôr as coisas nestes termos. Recusando o apelo do exterior, a condição de Walser, presume-se, será sempre a de um homem cheio de expectativas. Com a casa regressada à condição de estaleiro, ou com a casa pronta a habitar, Walser desenha para si próprio as mesmas inquebrantáveis expectativas. É esse o seu segundo fim de partida, agora involuntário: da realidade que deseja, Walser conhecerá apenas as expectativas, pois a realidade que deseja mora toda ela no exterior da casa. Como pode vir o exterior para dentro sem afectar irremediavelmente o dentro, afectando no mesmo passo as expectativas que o dentro gera? Não querendo o risco do exterior, Walser coloca-se naquela situação involuntária, mas muito comum, de desejar não só o que dificilmente terá, como também de desejar aquilo que não tem condições de saber se corresponde ao seu verdadeiro desejo.
Neste sentido, é quase irrelevante que, na dimensão estrita da história que nos é contada, as coisas terminem bem ou mal ou assim-assim. A sorte de Walser, em boa verdade, não passa por aí. Mas na medida em que a sorte de Walser, ou aquilo que dela podemos saber com rigor agora, é ilustrativa do livro, o fim dele não pode deixar de ser significativo.
Numa casa regressada à sua condição de estaleiro e onde já não consegue encontrar o seu quarto, Walser adormece num corredor, “encostado a uma das paredes — a que haviam, reparara agora, retirado o rodapé” (p. 38). Adormece “tranquilo, pensando no dia seguinte. Tinha grandes expectativas.” (p. 38).
“Grandes expectativas” é a derradeira expressão do livro. Walser ilustra bem que a racionalidade absoluta nunca se deixa instruir sobre a relatividade do seu absoluto: perderia o gozo, o contentamento. As expectativas são de facto o conector, mas são como um cabo partido que é já incapaz de ligar: reconhece-se claramente a sua função, mas percebe-se que só imaginariamente ela poderá ser executada.
Walser não é exactamente um optimista ingénuo ou um ingénuo ignorante das consequências da vida prática. Na verdade, os tempos já não permitem tais características, a não ser como pequenos percalços da chamada psicologia do desenvolvimento. Walser toma “grandes expectativas” como outros tomam ansiolíticos, recortando da realidade o circuito fechado daquilo com que conseguem lidar. Ora, um pedaço da realidade não tem as características orgânicas da realidade, tem a forma da realidade e simula a vida da realidade. A racionalidade absoluta da casa de Walser é esse pedaço da realidade: tem a forma do acolhimento e da protecção, mas simula o acontecimento através da expectativa. Neste sentido, as expectativas de Walser nunca serão defraudadas, apenas darão origem a novas expectativas ou à queixa contra a impossibilidade de reunir as condições próprias para o cumprimento das expectativas. Walser defende-se da decepção e defende-se de si mesmo enquanto decepção. Por isso, de todos os habitantes ou vizinhos do bairro, Walser é, no fundo, o mais parecido com a maioria humana ocidental de inícios do século XXI.

O Senhor Walser # 11. Fenda. Traquinice. Mal.

Desenho de Rachel Caiano (pormenor)

Há uma minúscula fenda no telhado da nova casa de Walser. Esta é a última contrariedade do dia, mas não deixa de ser a mais importante. É uma falha que afecta a capacidade de a casa se isolar por completo do seu meio-ambiente. Naturalmente, fendas no telhado são para tapar. Mas em literatura, fendas no telhado, embora sendo fendas no telhado, podem ser também outra coisa. Para Walser, era “claro que a fenda não era apenas isto: qualquer coisa que não está. Pelo contrário, bem pelo contrário: naquele momento Walser sentia que um qualquer elemento avançava por ali — uma matéria que vinda de cima lhe batia na cabeça, como numa traquinice, lhe batia uma vez, depois outra e escondia-se.” (p. 34).
Para o dizer rapidamente, o que fica fora da racionalidade absoluta desta casa só pode ser da ordem da “traquinice”, da brincadeira, do jogo, do imprevisível. Tudo conceitos com os quais nos poderíamos aproximar menos angustiadamente e menos poderosamente da realidade. Esta fenda é um apelo ao jogo da realidade. E o jogo da realidade tem isto de profundamente ético: na medida em que a interacção é imprevisível, as regras não podem ser definidas antes, vão-se construindo durante a própria interacção, clarificando a escolha não antes de ela ser escolha mas no movimento e nas consequências de ela ter sido essa escolha e não outra.
Walser recusa este apelo. Aliás, da forma mais comum de que esta recusa se tem revestido: diabolizando. O receio do imprevisível, o risco da liberdade do imprevisível, justifica-se a seus próprios olhos fazendo coincidir o campo do imprevisível, daquilo que é sem causas e sem exigências, com o campo do mal:
“As pancadas, no entanto, aumentavam, dir-se-ia, de intensidade. (...) Era[m] agora, para Walser, uma evidente ameaça — mas ameaça não argumentada; ameaça sem causas e sem exigências. Mas que sentia ele, de facto? (...) Apenas isto: um frágil pressentimento que saía da sua cabeça e uma igualmente frágil proposta — chamemos-lhe tentação — que vinda do exterior, e aproveitando precisamente aquela inesperada fenda no telhado do sótão, por ali se infiltrava, tocando-o, puxando-o, convidando-o para uma acção que Walser ainda não conseguia definir, mas que sentia estar colocada no extenso e, quando por fim lá dentro, infindável, campo do mal; campo onde jamais entrara e onde jamais, estava certo, entraria.” (p. 35).
Fim de partida? Em larga medida, sim. Ou dito de outra maneira, Walser antecipa duplamente o fim de partida.

O Senhor Walser # 10. Contrariedades. Bom-senso. Apelo.

Desenho de Rachel Caiano (pormenor)

Uma torneira que não funciona, tábuas do soalho mal colocadas, “uma fissura, segundo parece” (p. 26) na parede de um dos compartimentos, uma janela que não fecha bem, a rede eléctrica que precisa de ser toda revista, as molas do sofá também, painéis do tecto deficientes, e já no final do dia a descoberta de uma fenda no telhado. Como já se disse, pequenos reparos, pequenas contrariedades. O suficiente, contudo, para que o primeiro dia na nova casa de Walser não proporcione o contentamento que ele esperava.
Mas Walser não desarma no seu optimismo, ou nas suas expectativas. Em estrito bom-senso, não se pode dizer que haja razões de peso para que Walser desarme. Afinal, diz-nos a experiência do quotidiano, as casas concluem-se e há sempre um período em que elas parecem perfeitas. E embora a ficção não tenha de se curvar perante o bom-senso — e muito menos a ficção de Gonçalo M. Tavares —, também não há que procurar para as personagens motivos diferentes para as suas reacções do que aqueles que podem ser explicados pela plausibilidade do dia-a-dia.
A reacção de Walser é comedida, comedida e levemente contrariada, o que só a torna mais verosímil. Mas Walser não tem o equilíbrio do bom-senso quotidiano. Por momentos, os seus gestos, o comedimento dos seus gestos, participa da órbita do bom-senso, mas a rota de Walser vai noutra direcção. Entendamo-nos. Walser não é o homem prático, dando espaço e tempo à conclusão de um projecto que nada apresenta de transcendente. Walser também não é propriamente a figura do filósofo distraído e perdido nos seus pensamentos, tão desatento da realidade que cai no poço. Por último, Walser não é também a vítima dos infortúnios da virtude. Na verdade, Walser não percebe muito bem o que se passa, simplesmente porque na sua cabeça não há lugar para o modo um pouco desarranjado que as coisas apresentam na sua existência real. Walser quer apenas que a sua casa volte a ser o mais rapidamente possível o triunfo da racionalidade absoluta que ele entreviu no início. A sua falta de bom-senso está nesta incapacidade de reconhecer que o real falha.
Quando não é dramática ou mesmo trágica, a falta de bom senso é cómica. Mas dir-se-ia que aqui o cómico não diz directamente respeito a Walser, antes ao facto de o desarranjo das coisas contrariar a promessa inicial do triunfo da racionalidade absoluta. Walser não é o Jacques Tati de Playtime, cuja presença céptica e deslocada parece capaz de afectar o funcionamento dos mecanismos tecnológicos mais avançados. Walser não interfere, as coisas é que se encaminham para uma mansa catástrofe, como se a floresta readquirisse parte dos seus direitos sobre a casa que a nega. Ora, essa catástrofe mansa é na verdade um apelo. A que Walser responde negativamente, como já veremos.

Fiama, quando outra palavra principia # 3

Há qualquer coisa de estranho, de radicalmente incompreensível, em pensar que não vou poder esperar um novo livro da Fiama. Ou do Vergílio. Ou do Derrida. Saturado de saber porquê, e contudo não se compreende nada. Saturado de saber que não se compreende nada, e contudo não se compreende nada na mesma. É assim. Com ponto final. É assim.

Fiama, quando outra palavra principia # 2

Durante alguns anos, em “Introdução aos Estudos Literários”, “grafia 1” era um dos textos de abertura. Não era logo para analisar demoradamente, apenas para recolher questões para ir pensando ao longo da disciplina. E depois do fim dela. Insistia muito neste ponto, como é óbvio.
A primeira questão envolvia o “se”. Umas rápidas pinceladas sobre o que podia ser o mundo ao abrigo da cláusula poética, e vinha o lema: a dura realidade das coisas é apenas a cozinha e a sala de jantar do real, há portas para outras divisões e jardins, e nessas divisões e jardins há sótãos vários e cada vez mais altos, caves cada vez mais fundas, e recantos da paisagem que nunca ninguém visitou. O “se” é apenas uma porta, é favor irem experimentando.
A segunda questão era simples. Eu dizia: claro que há outra grande poesia, ou outra grande literatura que parece mais imediatamente perceptível. Mas é uma questão de aparência, de facto. Essa literatura já abriu uma porta, está numa outra sala do “se” e toma-a legitimamente por mundo. Mas pouco se percebe se não se entender que “se” foi aberto — isto, claro, na medida em que se possa dizer que há algo para entender.
A terceira e última questão era ainda mais simples. Eu dizia: é bem provável que nos sótãos, caves, quartos e jardins onde me acontece interpretar, as coisas se desenrolem daquele modo segundo o qual “as palavras são densas de sangue e despem objectos”. Tanto quanto posso saber, este é o meu modo. Mas posso muito bem estar enganado. Posso muito bem, compreendem?
Era assim, com “grafia 1”.

Fiama, quando outra palavra principia # 1


“grafia 1”

Água significa ave

se

a sílaba é uma pedra álgida
sobre o equilíbrio dos olhos

se

as palavras são densas de sangue
e despem objectos

se

o tamanho deste vento é triângulo na água
o tamanho da ave é rio demorado

onde

as mãos derrubam arestas
a palavra principia

Morfismos, 1961

A Leitora, no seu infinito particular (XLII)

Um dia destes, quase sem darmos por isso, ainda vamos acordar modernos, civilizados, europeus. Veja-se um dos títulos do Público de ontem, a propósito do caso do momento: “Pai é quem ama, não é quem faz”. E as aspas vêm no título, porque citam de uma mulher do povo... Agora só falta que uma sentença judicial portuguesa diga, como amiúde nos Estudos Unidos, que família é todo o grupo de pessoas que se amam. Ok, pode demorar mais um pouquinho, concedo. Mas isto vai...

A Leitora, no seu infinito particular (XLI)

Um dia destes, quase sem darmos por isso, ainda vamos acordar modernos, civilizados, europeus — com o João César das Neves a dizer coisas sensatas, e reconhecendo na sua humilde maturidade que aqueles tempos em que previu que a vitória do “sim” faria disparar os abortos para níveis equivalentes ao da venda dos telemóveis, foram tempos... como dizê-lo?.. bem, já passou, não se fala mais nisso, vale?

O Senhor Walser # 9. Ressalva. Teoria. Catástrofe.

Desenho de Rachel Caiano (pormenor)

Mas antes de avançarmos nos problemas do Senhor Walser, uma ressalva. Ainda a questão da teoria. Ao contrário dos outros senhores que habitam o bairro, o Senhor Walser não tem um ethos claramente teórico. Não se enreda em raciocínios que desembocam no absurdo, dando a ver o cómico que decorre do uso de uma lógica estritamente lógica, para dizê-lo rapidamente. Não experimenta no seu agir do dia-a-dia os impasses, também cómicos ou vagamente trágicos, que derivam de viver segundo a teoria. Walser pouco pensa — ou melhor dito, pouco sabemos do que Walser pensa —, Walser tem sobretudo expectativas. Walser pouco age: na situação em que o encontramos na história, Walser espera apenas que se concluam as condições, não tanto para poder agir, mas para que possa acontecer a realidade das suas expectativas. Contudo, Walser é o mais propriamente teórico de todos os Senhores que até agora nos foram apresentados. Porquê? Porque toda a teoria se consubstancia nessa conquista da racionalidade absoluta que é a sua casa. Ele limita-se a habitá-la. Pressupõe-se que a desejou tal e qual, verifica-se que está contente com ela, e é notório que se quer instalar dentro dela como dentro de um sistema fechado e perfeito. Supostamente, a teoria diz o mundo. Na verdade, pretende substituir-se a ele. Para além das vagas razões que nos são dadas para que a casa de Walser esteja distante do todo do bairro, as razões da teoria explicam muito bem esta necessidade de distância. Mesmo que necessidade não seja a palavra mais adequada. Ou então deveríamos falar de necessidade estratégica. Longe do mundo, para não ser contaminado por ele e consumar a vitória sobre ele: o triunfo da racionalidade absoluta.
Mas é precisamente nesta distância que a teoria está mais exposta. No bairro, o cómico pode ainda ser modo de vida: não somos todos bastantes ridículos, quando nos olhamos nas pequenas manias que nos individualizam? Não escreveu Freud uma psicopatologia da vida quotidiana? Se toda a teoria, como sabemos, deve o seu poder de explicação à sua parcialidade inevitável — o pormenor e o todo não são visíveis simultaneamente —, a vida do bairro, na sua diversidade, mostra-se capaz de estabelecer conexões entre as moradas individuais, isto é, entre as parcialidades. Conexão difusa que seja, o do simples cruzar das pessoas na sua vida diária. Ou até conexão ilusória, quando pensamos que meras contiguidades ou cruzamentos a-significativos podem constituir fluxos sociais de informação. Quando o absurdo segue em direcções diferentes e em todas as direcções possíveis, é inevitável que muitas dessas direcções acabem por ser aquelas que seriam seguidas por pensamentos e comportamentos razoáveis. Mas quando a teoria (ou a casa) está sozinha e pretende auto-suficiência, todos os seus não-ditos e os seus interditos, uma vez postos em movimento, se aceleram mutuamente. Não há casas ao lado ou teorias vizinhas que possam amortecer este movimento. Esta aceleração, já o dissemos, é a catástrofe, a lógica do material em liberdade.
Agora sim, podemos passar conclusivamente aos pequenos problemas da casa que, durante a manhã, se vão apresentando a Walser.

O Senhor Walser # 8. Catástrofe. Empiria. Teoria.

Desenho de Rachel Caiano (pormenor)

A lógica não induz um Acto, mas uma mera consequência. É por isso que a lógica pode induzir seguramente uma catástrofe: porque a natureza segue uma ordem. Os humanos, em muitas questões, podem escolher, ou têm a possibilidade de poder escolher, e é isso a ética. A natureza não tem ética, tem leis — pelo menos, é o que podemos supor.
Um a um, nesta primeira manhã em que Walser habita a sua nova casa, vão chegando homens com a missão de pequenos reparos. Pouco a pouco, de um modo quase imperceptível, mas no final do dia incontornável, a casa volta a ser um estaleiro. Em caso algum a racionalidade absoluta é posta em causa no seu todo. São sempre pequenos reparos, alguma coisa mínima que não está em ordem. Fissuras, fendas.
A materialidade das coisas é avessa à racionalidade absoluta? A empiria de uma casa, ainda que para se erguer enquanto casa necessite da racionalidade absoluta dos cálculos de engenharia, será em cada uma das suas minúsculas partes constituintes indomesticável à racionalidade absoluta? Assim parece. Versão comezinha do clássico “os trabalhos e os dias”, mas fazer permanecer um império não é diferente de fazer permanecer uma casa habitável: tudo exige manutenção, vigilância, reconstrução constante ainda que por ínfimas parcelas de cada vez. Como a pele do nosso corpo: em ciclos constantes de sete anos, ao que parece, renova-se completamente. Sem que disso dêmos conta. Ou quando damos, é já só na dimensão da catástrofe. A catástrofe é a aceleração e descontrole de uma fenda ou fissura que não foi remediada a tempo, ou que a auto-organização não conseguiu colmatar pelos seus próprios meios. A catástrofe é a lógica do material em liberdade.
É por isso que a racionalidade absoluta é sempre ilusória. A casa está cheia de imperfeições, como é próprio das casas. Se não hoje, amanhã será. É a lei do tempo. E o que vale para as casas, sobretudo quando são uma conquista da racionalidade absoluta no seio das florestas, é válido para as teorias. A teoria é uma morada para o sujeito. Um refúgio para o medo. Uma conquista da racionalidade absoluta no seio da relatividade dos valores — ou da floresta da multiplicidade das ideias, se se quiser. A teoria cria grandes expectativas, porque nos dá a ilusão de que com ela bem poderemos dispensar os incómodos do confronto com a realidade. Ou com o Outro. A realidade, tal como o Outro, tem essa coisa irritante de seguir os seus próprios desejos. E para cúmulo, quase nunca os desejos da realidade, ou do Outro, coincidem com os nossos desejos. Mas para os seres verdadeiramente teóricos, isso não chega a constituir um problema. Walser é um ser verdadeiramente teórico: não tem qualquer teoria, não vive separado da teoria como se a teoria fosse um produto do seu pensamento ou de qualquer outra sua qualidade ou atributo. Walser coincide com a teoria. Enfim, não completamente. Como já se disse, há um problema. Que ao longo da manhã se acrescenta de outros pequenos problemas.

A Leitora, no seu infinito particular (XL)

Cara Amiga M.:
Pergunta-me como é que eu posso dizer com esta tranquilidade que a vida intra-uterina é vida humana e defender o “Sim”.
Deixe-me tentar explicar porque digo que a vida intra-uterina é vida humana. Vou ter de usar uma imagem forte, mas quero fazer-me entender bem. Se encontrarmos num mesmo balde os restos de um aborto e os restos de um vitelo, temos meios científicos, incontestáveis, para identificar os tecidos da espécie humana e os tecidos do vitelo.
Considere agora que uma pessoa morre. Sabia que as unhas e os cabelos continuam a crescer durante um certo tempo? Estranho, não é? Mas é um facto que continuam a crescer. São unhas e cabelos humanos, e temos os mesmos meios científicos e incontroversos para o provar. E contudo, ninguém discute que se trata de um cadáver. É por isso que dizer vida humana pode ser dizer muito pouco, pensando que se diz tudo.
A questão é: quando é que há pessoa? Mas a essa pergunta só tenho dúvidas como resposta. Eu sei que a M. não tem dúvidas, tem princípios, e tem toda a legitimidade para os ter, tanta legitimidade como eu tenho para as minhas dúvidas. Não lhe imponho as minhas dúvidas, como a M. não deveria querer impor-me os seus princípios.
Mas imagine que eu tinha uma resposta relativamente incontroversa acerca de quando um feto começa a ser pessoa. Mesmo assim, restaria uma outra questão: porque é que o feto há-de ter mais direitos do que a mãe, sobretudo se durante nove meses os direitos do feto se exercem inteiramente a expensas dos direitos da mãe?
A questão do tempo é aqui crucial. Repare que há consenso sobre o facto de o infanticídio ser incomparavelmente mais grave do que o aborto. E mesmo para quem defende a sacralidade da vida humana desde o momento da concepção, é mais grave e culposo abortar aos oito meses do que às oito semanas. Dir-se-ia que à medida que o tempo passa, o feto vai ganhando direitos, porque se vai aproximando da sua autonomia. E vai também ganhando direitos porque a mãe lhe vai concedendo direitos. Vai consentindo. Vai aprovando. Há um tempo para decidir, o resto do tempo é para honrar essa decisão. Mas quem decide não abortar, não lhe chama tempo para honrar a decisão. Com mais ou menos adjectivos, chama-lhe estar grávida. Mas houve uma decisão.
A M. dirá que esta decisão de continuar a gravidez é a única decisão legítima. Eu compreendo-a muito bem e acho perfeitamente legítimos os seus princípios e crenças. Mas porque não continua a lutar por eles, tentando persuadir, que é o que se deve fazer quando se luta por princípios e crenças? Persuadir não é tentar impor através de uma Lei os seus princípios, persuadir é tentar convencer a liberdade de alguém a escolher agir de uma forma que nós achamos que é mais correcta e justa. Mas para isso é preciso que a pessoa disponha de facto dessa liberdade de escolha. A mesma liberdade de escolha que permite à minha cara amiga M. defender os princípios que defende e tentar persuadir outros da sua justeza.
Um beijo da sua
Leitora

A Leitora, no seu infinito particular (XXXIX)

- Obrigado por me receber, senhor deputado.
- Faz parte dos meus deveres para com os eleitores do meu círculo.
- Senhor deputado, se bem me lembro, os dois maiores partidos portugueses não tinham posição oficial sobre o aborto.
- Assim foi e assim é.
- Portanto, deram liberdade de voto, quer dizer, liberdade de consciência aos seus deputados.
- Assim foi e assim é.
- E a si, como deputado de um desses partidos, não lhe parece estranho que os deputados não tenham devolvido imediatamente essa liberdade de consciência ao todo do país, criando uma lei em que cada um, de forma clara e com a sua consciência como tribunal, pudesse escolher e assumir na sua vida o resultado dessa escolha?
- Nós demos, por isso se fez o referendo.
- Mas no referendo a liberdade de consciência está apenas no voto. Se o "Não" ganhar, lá se vai a liberdade de consciência para que cada um possa de facto decidir no dia-a-dia.
- É a democracia, que como deve saber é o pior sistema com exclusão de todos os outros.
- Mas não seria mais democracia se quando uma lei não pretende obrigar, ela devesse permitir desde logo ambas as posições? Isto não é uma lei de impostos, por exemplo, em que seja necessário dizer quem é obrigado a pagá-los e quanto. Permitir o aborto não obriga ninguém a abortar.
- É certo. Mas pelo seu raciocínio, até os que são contra o aborto, ou que nunca por nunca o praticariam, deveriam ser favoráveis à possibilidade de que quem o entendesse praticar o pudesse fazer dentro destes limites legais.
- Exactamente. É esse o meu raciocínio. E deveria ser essa a posição de quem é realmente democrático: que dentro de certos limites legais, forçosamente muito amplos, cada um pudesse viver de acordo com as suas crenças e a sua consciência. O senhor deputado não acha?
- Desculpe lá, você disse que se chamava?..
- Leitora, e isto é uma espécie de entrevista para o blog Manchas.
- Nunca ouvi falar.
- Tem um share irrelevante, é por isso.
- Não está a gravar, pois não? Em todo o caso também não importa. Olhe, isto foi tudo uma trapalhada. Ou se quer mesmo saber, foi tudo uma enorme covardia do Guterres e do Marcelo. Não quiseram perder votos entre os católicos e os conservadores e por isso não decidiram o que politicamente se impunha. E como ainda por cima eram católicos, mais razões encontraram para se descartarem das suas responsabilidades políticas propondo o referendo. Lavaram as mãos como Pilatos. Mas também não vale a pena chorar sobre o leite derramado.
- Pois não, mas perdeu-se uma oportunidade de pedagogia democrática.
- Faça-a agora, no referendo. Não discuta a vida, discuta a democracia.
- E diga-me, senhor deputado, porque é que na outra altura não houve um movimento de deputados para a pedagogia democrática, apesar da posição dos líderes?
- Que quer que lhe diga, Leitora? Que a vida política e mais ainda a vida partidária são muito complexas? Deixemos as coisas por aqui, este não é o momento de fazer essa história, mas de entrar no referendo. É o que temos.

Ideias com futuro

- Já falei com eles.
- E sempre era o que pensavas, Leitora?
- Claro. Há boas perspectivas de emprego.
- Fico contente. Mas ao certo, em que consiste a coisa?
- Fácil. No caso das mulheres que quiserem abortar, primeiro têm de demonstrar que não foi culpa delas terem engravidado. Se não houver essa prova, os nossos impostos não custearão os seus erros. Tomavam anticonceptivos e estão nos 2% de casos em que a coisa pode falhar? Provem. Foram violadas? Provem. O resto só pode ser culpa delas. É um trabalho fácil.
- De facto.
- E com futuro, porque isto é apenas o primeiro passo. O grande passo virá a seguir.
- E qual é ele?
- Muito simples. Nem sei porque não se lembraram disto mais cedo, porque vai resolver uma boa parte do problema do Sistema Nacional de Saúde.
- Estou a ficar interessado...
- Imagina que chegas a uma urgência com sintomas de ataque cardíaco. A primeira coisa a determinar é se isso é culpa tua ou não. O teu médico não te mandou mexeres-te pela tua saúde, e tu em vez disso ficaste sentado em casa a ver televisão? O teu médico não te avisou que não podias stressar tanto, e tu continuaste a lutar por subires de posto para finalmente poderes comprar a casa ou pagares os estudos dos filhos na universidade? Pois bem, se o teu médico te avisou, os nossos impostos não custearão os teus erros.
- Estou a ver, é realmente uma poupança, é bem capaz de resolver uma parte do problema. E como se vai chamar esse novo emprego?
- Controladora das portas do purgatório.
- Hum... mas o purgatório não foi recentemente anulado pelo Vaticano?
- Precisamente. Agora já pode ser usado pela sociedade civil sem que se ande para aí a dizer que são uns quantos a quererem impor as suas ideias religiosas aos outros.

A Leitora, no seu infinito particular (XXXIX)

O Senhor Luís-quase-Walser-mas-nem-tanto pede para informar que foi súbita mas totalmente sequestrado por problemas de interpretação “bolonheses” de carácter jurídico, científico e estratégico. Em português corrente, aquele órgão exclusivamente constituído por professores doutores só por extenso anda numa grande sarrabulhada por causa do decreto-lei sobre as habilitações para a docência. Coitado do Luís. Eu é que sei, coitado dele, que anda preso em liberdade opinativa no órgão.
O Senhor Walser terá de esperar mais um pouco, fica suspenso nos efeitos perversos.
Entretanto, o Senhor Luís pede também para divulgar esta muito particular play-list da sua sanidade mental, tendo em atenção precisamente a natureza toda ela particularista dos problemas que o cercam: Keith Jarrettt, The Carnegie Hall concert, disco 2, faixas 2, 8, 9 e 10.

O Senhor Walser # 7. Auto-organização. Obstáculo. Efeito perverso.

Pormenor da capa de Rachel Caiano

Walser não se preocupa muito quando, menos de duas horas depois de estar na sua casa nova, aparece o canalizador por causa da torneira da casa de banho. Bem pelo contrário: “Retirada já do seu sítio e colocada no chão, a torneira parecia estar num momento de repouso, e Walser sentia o ímpeto de agradecer já àquele homem, mesmo antes de ele terminar o seu trabalho. A sensação era de que algo que fora necessário fazer estava a ser feito, tal o modo tranquilo e conclusivo com que a torneira e o chão se haviam, utilize-se esse termo, misturado.” (p. 22). Em suma, Walser confia na capacidade auto-organizativa da racionalidade absoluta. Aplicada a casas, sobretudo àquelas, não o esqueçamos, que são uma conquista da racionalidade absoluta, a capacidade auto-organizativa deveria manifestar-se também através de uma permanente função auto-reparadora: alguém mandou o canalizador, alguém sabe e vela, e não foi certamente o mordomo, porque aqui não há mordomo.
O problema começa — sim, há um problema... —, o problema começa quando esta capacidade auto-reparadora se torna um “obstáculo concreto” (p. 23) à plena fruição da casa. Efeito perverso da racionalidade absoluta, sem dúvida, esta minúcia da perfeição, quando a olho humano tudo parece estar bem. Walser não o diz, mas é bem provável que, nesse particular momento em que sente a presença do canalizador como um “obstáculo concreto”, Walser tenha pensado que a minúcia da perfeição poderia ser um processo infinito. Como se a racionalidade absoluta fosse uma situação tão frágil que tivesse constantemente de estar a ser reposta. E, portanto, nunca fosse uma racionalidade absoluta realmente fruível enquanto tal. Walser, digamos assim, como concreto suspeitador das capacidades do Espírito Absoluto, perdão, da racionalidade absoluta.
Mas pouco importa que Walser o tenha pensado ou não. Não é por aí que vai a história. Não pelos efeitos perversos do quase que faltará a toda a completude para ser verdadeiramente uma completude, mas pelos efeitos perversos, e em rigor lógicos, que advêm do facto de a racionalidade absoluta não permitir o Acto.

O Senhor Walser # 6. Rodapés. Natureza. Mulher.

Desenho de Rachel Caiano

Mas antes de avançarmos nas consequências lógicas do não-Acto de Walser, uma palavra sobre rodapés. Naturalmente, há-os na casa nova de Walser, e são de uma espécie superior: “que perfeitos! Mais: que sentido estético! Que entendimento exacto da maneira como cor e forma se devem misturar como se existissem já assim (os rodapés) na natureza, desde o início.” (p. 17).
A formulação de Walser é genuinamente congratulatória quanto aos feitos da racionalidade absoluta. É que a racionalidade absoluta, tal como se pode verificar na construção de uma casa no meio da floresta, não se limita à casa em si mesma, isto é, ao constructo na sua dimensão estrita de coisa de engenharia. Se o rodapé serve aqui como imagem de um todo que se fecha perfeitamente, furtando-se ao indomesticável da floresta, serve também para mostrar que, na óptica de Walser, toda a perfeição, ou seja, toda a racionalidade absoluta, é capaz ou engendra mesmo um suplemento estético tal que é como se desde sempre essas cores e formas tivessem existido na natureza. Cores e formas, não a matéria nem a sua disposição ou conexão propriamente material. Ou seja, o suplemento estético é uma imitação da natureza que se confunde com ela e a substitui com vantagem: em vez de cores e formas ligadas ao indomesticável da floresta, temos essas mesmas cores e formas ligadas à racionalidade absoluta de uma casa.
Apagamento da natureza, apagamento do Outro. Apagamento também da mulher e, portanto, da possibilidade dos beijos apaixonados? Sim, em grande medida sim, mas não pelas razões que estabeleciam a velha homologia entre natureza e mulher — aliás, mais do que homologia, tratava-se de facto do cruel confinamento da mulher à natureza. O apagamento da natureza e o apagamento do Outro apaga a mulher na mesma medida em que apaga o homem que Walser é. E apaga ambos na medida em que apaga a diferença sexual entre eles, que não é já tanto a diferença de um ser macho e outra fêmea, mas a diferença do mundo singular de sexualidades que cada um podia ser. Esta diferença entre dois só é experienciável no meio-ambiente de um terceiro a que temos ainda (impropriamente, é certo) de chamar natureza: o corpo, a fisiologia das paixões. Sem dúvida, o sexo pode ser virtual e o erotismo ser coisa mental: mas ambos provocam efeitos anatomofisiológicos mensuráveis. As causas são sempre “culturais”, os efeitos sempre “naturais”.
Ora, a racionalidade absoluta é o tipo de causa “cultural”, melhor, lógica, que pretende que os seus efeitos sejam exclusivamente “culturais”, melhor, lógicos. Walser não o percebe, como não percebe que a série de contratempos que acomete a casa são a consequência lógica da racionalidade absoluta.

A Leitora, no seu infinito particular (XXXVIII)

- Estás a perder a meia dúzia de leitores que tinhas, Luís. Demasiado Senhor Walser, parece um blog monotemático.
- Hum...
- Que é que te deu?
- Aconteceu-me, que queres? Pensa-se que a crítica é uma coisa que só a vontade determina, mas não é bem assim. Muitas vezes é assim, mas nem sempre. Às vezes a gente começa, a pensar que é só um post, no máximo dois, e quando dá por ela a coisa vai encaminhada a outro fim e não nos é permitido parar.
- Não nos é permitido parar?
- Enfim, percebes o que eu quero dizer.
- E quando é vais falar do referendo e...
- Dizer que sou pelo sim? Mas isso já se percebeu há muito.
- Pois, isso já se tinha percebido, mas disseste que ias falar de alguns dos argumentos e dos cartazes...
- E tenho falado, mas não aqui. Mas falarei depois disto.
- E não fizeste balanço do ano, nem livros, nem discos, nem filmes, nem blogs.
- Talvez ainda faça, mas só depois disto. Ou talvez não. Até quando é que achas que ainda se pode fazer?
- Isso não sei. E olha cá uma coisa: tu não dás parabéns a ninguém pelos aniversários blogosféricos?
- Não ligo a isso, para calvário já me chegam os aniversários da vidinha.
- Mas olha que isso é falta de socialização.
- Pois, má-educação, queres tu dizer. Talvez reconsidere para o ano, dá-me tempo, Leitora.
- E os links?
- O template está por um fio. Andei lá a mexer, e quase ia escangalhando tudo. Preciso de ajuda. Sabes de alguma associação de info-excluídos anónimos?
- E se pagasses a um informático, não era melhor?
- Não para as minhas economias.
- Pois. E já visitaste a nova casa do Luís M. Jorge, ex-Franco Atirador?
- Muito bonita, mas ele pediu ainda um tempo para retoques finais, antes de a linkarmos.
- Espero que não lhe aconteça como ao Senhor Walser e à sua casa no meio da floresta.
- Lagarto, lagarto, Leitora! Lá pássaros tem, mas racionalidade absoluta, felizmente, nada.
- Felizmente...

O Senhor Walser # 5. Deriva-Zizek. Maioria moral. Acto.

Zizek deplora o estado da sexualidade hoje. A extrema reflexividade em que se desenrola a vida sexual, a sua medicalização, e a sua relação intrínseca com o individualismo pós-moderno, originam “a extinção do apego apaixonado ao Outro, o aparecimento de um Eu auto-suficiente para o qual o Outro-parceiro já não é um sujeito, mas tão-só o portador de uma mensagem que se refere directamente ao Eu” (Elogio da intolerância, p. 123). Não é necessário concordar com todas as nuances do raciocínio de Zizek — a sua análise do Viagra, por exemplo, parece-me desconhecer o bom-senso psicológico que anima a reflexividade sexual de muitos casais de terceira idade, tal como nos é relatada por vários analistas e terapeutas —, para aceitar que o diagnóstico é globalmente correcto.
Mas Zizek encontra uma saída: “trata-se do caso de Mary Kay le Tourneau, essa professora do ensino secundário de Seattle, com trinta e seis anos de idade, que foi presa por ter entabulado uma relação amorosa com um dos seus alunos, de catorze anos — numa das grandes histórias de amor recentes, em que o sexo aparece ainda associado a uma efectiva transgressão social” (p. 125).
Claro que Zizek não está a advogar a multiplicação destes casos, está apenas a tomar um caso particular como ilustrativo de um modo de lidar com o Outro. Ilustrativo, antes de mais, pela reacção da “maioria moral” americana. Reacção dupla, e de sinal contrário. Por um lado, medicalizando. A psiquiatra que avaliou Mary Kelly sustentou reiteradamente a tese de que o seu problema “«não era psicológico, mas médico», e que a acusada deveria ser tratada por meio de uma medicação que estabilizasse o seu comportamento: «Para Mary Kelly, a moral começa pela toma de um comprimido.»” (p. 126). Por outro lado, condenando: a tese da “personalidade bipolar” de Mary Kelly seria apenas um subterfúgio que a libertava de assumir a sua culpabilidade e responsabilidade.
O que a maioria moral nunca quis tentar entender foi o discurso em que Mary Kelly afirmava que amava o seu aluno de catorze anos. Por mais estranho e perturbador que seja um tal discurso, ele não deixa de colocar com clareza o que, no limite, define um Acto. Como foi possível que Mary Kelly tivesse posto em causa “a sua família, os seus três filhos, a sua carreira? Não será, contudo, uma suspensão semelhante do «princípio de razão suficiente» a própria definição do ACTO?” (p. 128). Quando Lacan define um acto como “impossível”, ou Kierkegaard fala do momento de loucura da decisão, ambos se referem ao facto de que um verdadeiro acto nunca é apenas o momento lógico de uma cadeia de razões ou de regras. Um “acto bem conseguido induz, por definição, um curto-circuito; cria retroactivamente as condições da sua própria possibilidade” (p. 127). Ou seja, e retomando Walser, se beijos apaixonados são expectativa — isto é, consequência lógica — de racionalidade absoluta, então os beijos apaixonados da expectativa de Walser não são um verdadeiro Acto. Isto sim, terá consequências lógicas.

O Senhor Walser # 4. Reversibilidade. Racionalidade absoluta. Outro.

Desenho de Rachel Caiano

A questão, na verdade, é simples. Se o contentamento é o conector entre racionalidade absoluta e beijo apaixonado, isto só pode querer dizer que há paixão na racionalidade absoluta e racionalidade no beijo apaixonado. Se formos um pouco além do aspecto trivial deste processo de reversibilidade (porque é claro que não se chega ao absoluto da racionalidade a não ser que se seja movido pela paixão desse absoluto, como não se chega ao beijo apaixonado sem a racionalidade ou a reflexividade da arte de seduzir e de beijar), teremos talvez de admitir que ele comporta uma certa dose de escândalo.
Ocidentalmente falando, a conexão racionalidade absoluta, contentamento, beijo apaixonado, é uma conexão escandalosamente feliz, se pensarmos que a determinante do amor-paixão no ocidente é a tragédia. Claro que poderíamos admitir um tal escândalo na condição de ele ser apenas o primeiro acto de uma peça que caminhará para a tragédia. E de facto, de uma certa maneira, as coisas irão acabar mal para Walser. Mas não completamente. Também de uma certa maneira, até se pode dizer que as coisas estarão longe de acabar mal para Walser. Se é porque Walser é um optimista ingénuo ou um ingénuo ignorante das consequências da vida prática, ou nem uma coisa nem outra, isso veremos a seu tempo. De qualquer modo, acabando as coisas mal ou nem tanto, não há nunca da parte de Walser qualquer vislumbre de que as suas expectativas de beijos apaixonados comportem algo de transgressor ou sequer de problemático. As suas expectativas estão na mesma linha do seu contentamento: são sem sombra, inteiramente afirmativas, desconhecedoras do atrito. Como Zizek poderia dizer, as suas expectativas dessexualizam a matéria propriamente sexual contida no desejo de beijos apaixonados.
A questão, na verdade, é simples. Quer eu, enquanto professor a quem acontece por vezes experimentar a alegria da racionalidade absoluta, quer Walser, que habita numa casa que é uma conquista da racionalidade absoluta, ambos somos tomados pela expectativa dos beijos apaixonados. Nesta expectativa, porém, não há verdadeiro lugar para o Outro — para a sua resistência, para as suas próprias expectativas. A jouissance, na verdade, é vazia, quer dizer, comércio com o vazio, ou fetiche da mercadoria (as expectativas são a mercadoria do sexo, tanto mais altas quanto menos performativas). Walser, tudo indica, não está preparado para a performance. Quanto a mim, bastará dizer que as aulas acabam, e que há mais vida para além das aulas — é também essa uma diferença importante entre as aulas e a casa. Ao invés das aulas, a casa pode ser co-extensiva ao mundo — quando se diz “a casa e o mundo”, por exemplo, diz-se mais essa co-extensividade do que o hiato, mesmo quando parece estar-se a dizer exactamente o contrário. Para Walser, nem se chega a colocar a questão de a casa ser co-extensiva ao mundo. Tudo o que do mundo interessa a Walser, há-de vir para dentro de casa: a racionalidade absoluta incorpora tudo. Walser nunca irá ao bairro, mas tem a expectativa de que alguém ou alguma coisa do bairro virá até ele. Walser espera pelo outro, mas no seu espaço. Habitando um efeito da racionalidade absoluta, não incorre no perigo de o Outro a subverter. Em consequência, não incorre igualmente no perigo de deixar que o Outro saiba dele aquilo que nem ele próprio sabe. Este perigo tem um nome, que de tão gasto já quase nada significa. Mas enunciemo-lo, apesar de tudo: paixão. E abramos aqui um parêntesis provocatório, uma curta deriva proporcionada por Zizek, uma professora de trinta e seis anos e um seu aluno de catorze.

O Senhor Walser # 3. Capítulo III. Conexão. Deriva-eu-Walser.

Desenho de Rachel Caiano

“Como Walser está contente! Mal se abre a porta de sua casa — sente ele — entra-se noutro mundo. Como se não fosse apenas um movimento físico no espaço — dois passos que se dão — mas também uma deslocação — bem mais intensa — no tempo. [...] Quando fechava a porta atrás de si, Walser sentia virar as costas à inumana bestialidade (de que saíra, é certo, há biliões de anos atrás, um ser dotado de uma inteligência invulgar — esse construtor solitário que era o Homem) e entrar em cheio nos efeitos que essa ruptura entre a humanidade e a restante natureza provocara; uma casa no meio da floresta, eis uma conquista da racionalidade absoluta” (p. 13).
Desde o primeiro capítulo, Walser está contente. E ao terminar o segundo capítulo, tal contentamento reveste-se da expectativa de que a nova casa lhe traga “um beijo apaixonado, o encontrar de uma companhia definitiva” (p. 12). Eis então a coisa estranha: como pode uma casa que é uma conquista da racionalidade absoluta criar a expectativa de um beijo apaixonado? Qual a conexão entre racionalidade absoluta e beijo apaixonado? É essa conexão real ou ilusória? Ou não se deixa definir por nenhum destes termos?
Uma coisa é certa: Walser está contente. Será este o conector entre racionalidade absoluta e beijo apaixonado? A intensidade do contentamento como conector? Em boa verdade, agora que o escrevo, tenho de reconhecer que às vezes, no decorrer de uma aula, quando me acontece pensar aquilo que o pensamento exige pensar, sou tomado de um contentamento infantil que se poderia definir pela alegria da racionalidade absoluta. Pois bem. Esse contentamento leva-me a querer beijar apaixonadamente as alunas. Esse contentamento é, em todo o rigor dos termos, “essa ânsia no fundo de um clima racional de convívio” (p. 11).
Claro que as alunas, porque observam um pouco de fora o acontecimento do pensar, não são tomadas pela alegria da racionalidade absoluta, e por isso nunca entenderiam a verdadeira dimensão dos beijos apaixonados de um professor enquanto professor. Digamos que esta é a condição empírica da racionalidade absoluta numa sala de aula, e por isso uma sala de aula nunca é uma casa.
Mas voltemos a Walser, ele goza de uma outra liberdade. Como personagem de ficção não está sujeito ao mesmo regime jurídico-moral de um professor. Quando Walser está contente, está mesmo contente. E pode ser consequente com o seu contentamento, pode desejar até ao fim todas as consequências da conquista da racionalidade absoluta. A racionalidade absoluta, como facilmente se entenderá, é da dimensão do gozo. Escrito em francês de lei lacaniana, percebe-se melhor: jouissance. Razões acrescidas para Walser alimentar grandes expectativas. E razões acrescidas para tudo terminar mal, como bem sabemos destas coisas, tenhamo-lo ou não aprendido com Lacan. Mas levanta-se-me aqui uma outra dúvida, e tenho de voltar à questão de professor e aluna. Ou para ser mais exacto, a exactidão de um caso particular e mediático, à questão de uma certa professora e de um certo aluno.

O Senhor Walser # 2. Bairro. Distância. Crítica.

Desenho de Rachel Caiano

O Bairro vai-se povoando. Depois dos Senhores Valéry, Henri, Brecht, Juarroz, Kraus e Calvino, chega agora o Senhor Walser. Acontece, porém, que o Senhor Walser, talvez por analogia com o seu homónimo, é mais dado ao recato, ou à solidão das grandes caminhadas, ou talvez apenas a desafios diferentes, mais impossíveis, inevitavelmente fracassáveis, com isso se distinguindo do seu homónimo. Parafraseando — e não há muitas mais maneiras de crítica, ou há? —, “sejamos claros, sem entrar em pormenores” (p. 15): o Senhor Walser usa um nome distinto, facilmente confundível com perfomances tais que pastiche, re-escrita ou paródia, não fora o autor estar-se positivamente nas tintas para isso. Mas claro, o autor goza de prerrogativas que não são dadas aos leitores: para esses, um nome como Walser é sempre uma entrada na enciclopédia literária, não há como evitar a leitura em segundo e terceiro e restantes graus de equivocidade.
Regressando à casa (é uma frase bonita e simples, esta, e a crítica não costuma ter frases simples e bonitas), há que dizer que está “situada a uns bons quilómetros do bairro mais próximo” (p. 11). Duas consequências: para a série do Bairro, é um desvio que abre caminho à possibilidade de uma vasta urbanização, ainda que se possa dizer com verdade que o Bairro em si mesmo já contém suficientemente essa possibilidade; para o Senhor Walser, esta distância é o que nele mais se assemelha à distância a que sempre se colocou o Walser-outro, em rigor o Walser primeiro de que este Senhor é o outro. Desta segunda consequência deriva uma consequência alínea a), consabida e tortuosa: é pela semelhança que se instaura a distância crítica do autor. A distância da casa é a semelhança, a crítica vem do modo segundo o qual o Senhor Walser usa desta distância: com esta casa construída a uns bons quilómetros do bairro, o Senhor Walser espera conseguir companhia. Companhia humana em geral, toda ela altamente crítica, aliás: “argumentar, discutir grandes ou pequenas ideias, assuntos que interessassem a países ou continentes e assuntos que só interessassem à comunidade próxima, essa ânsia no fundo de um clima racional de convívio” (p. 11). E companhia feminina em particular, e de um modo particular dessa companhia feminina: “o encontrar de uma companhia definitiva” (p. 12). Neste modo segundo o qual o Senhor Walser usa da distância, a crítica do autor não se insinua apenas na companhia crítica, mas sobretudo na companhia feminina. “Sem entrar em pormenores” — sim, os pormenores seriam aqui o seu tanto obscenos, quer dizer, fora de cena —, “sem entrar em pormenores: Walser tinha grandes expectativas” (p. 15).
Mas agora, acabado o intervalo pós exercícios cardio-vasculares, é necessário enfrentar as vinte piscinas.

O Senhor Walser # 1. Erro. Viagem. Expectativas.

Quando um autor erra, a obra nasce. Quando um autor se engana, o artefacto-livro é devolvido à procedência. Isto porque os CTT, regra geral, têm funcionado bem. Foi assim que um engano na morada fez com que O Senhor Walser, e falo do artefacto-livro, fosse devolvido ao seu autor.
Entre o autor ter enviado o artefacto-livro e a devolução decorreu mais tempo do que aquele que seria estritamente necessário para enviar o livro para a morada certa e de lá o terem devolvido de novo ao autor no dia seguinte. Este facto é compreensível. Os carteiros são seres diligentes, ainda que Peter Handke tenha falado de uns mais dados a angústias metafísicas: não se atreviam a entregar a correspondência, tal a responsabilidade e temor pelas notícias que transportavam. Não era aqui o caso, não por se tratar de um artefacto-livro, menos ainda por esse artefacto-livro ser O Senhor Walser, mas porque, metafisicamente falando, os carteiros portugueses, bem como os carteiros em geral, não são dados a tais estados de alma. Os carteiros são seres diligentes — mas acho que já disse isto. Ao fim de um certo tempo, embora não vivam nos bairros ou lugares onde fazem a distribuição — há uma política severa quanto a isso, ou se não há deveria haver —, conhecem os nomes de toda a gente. Imagino que o carteiro percebeu de imediato que aquele nome não pertencia àquela morada. Mas teve de verificar, claro. Nunca se sabe quando alguém vai de visita, ou quando se muda de casa, ou até mesmo quando alguém que afinal sempre lá viveu recebe a sua primeira carta. Imagino também que o carteiro, durante três ou quatro dias, tenha perguntado a outros carteiros se nos seus bairros ou lugares haveria uma rua com aquele nome, facto mais comum do que se imagina. E sei de ciência certa que a viagem de devolução de O Senhor Walser ao seu autor (falo do artefacto-livro) levou mais tempo do que a viagem de ida das mãos do autor até à morada errada. A velocidade é diferente quando se pretende alcançar o seu destino e quando se regressa desenganado do seu destino. São coisas que se sabem, não carecem de mais argumentação.
O autor insistiu, agora com a morada certa. Assim se explica que ontem, pelas 14.23h, tenha recebido da minha mulher a seguinte sms: “Veio minúsculo Sr Walser”. Diga-se que a minha mulher está habituada aos grossos tratados filosóficos, e sofre, com toda a naturalidade, das habituais deformações profissionais que a levaram, às 14.27h, a mandar-me uma nova sms: “Até pensei k fosse 1 livro d poesia”. Explicados os mistérios ao jantar, o livro chegou em boa hora, tendo conseguido aterrar incólume entre duas tempestades que me inutilizaram as contas da edp e da sapo. O que vale é o número de cliente.
O autor comentou: “Como diria – na lógica do sr. Valery: é pequeno, mas, em compensação, demorou muito tempo a chegar.” O que nos leva de volta ao início, ainda que tal coisa seguramente não exista: quando um autor erra, a obra nasce; quando um autor se engana, o livro-artefacto faz uma viagem maior. E emagrece no esforço. Vou levá-lo agora comigo ao ginásio. No intervalo entre os cardio-vasculares e as vinte piscinas, descansaremos ambos, e ele melhor. “Sejamos claros, sem entrar em pormenores: Walser tinha grandes expectativas”. O que só pode querer dizer que a coisa vai acabar mal. Precisamente, uma das condições para a obra acabar bem.

Psicopatologia da vida quotidiana # 20

Duas à conversa, na fila para o multibanco: “Brasil no natal, nunca mais. Ouve o que te digo, nunca mais. Vi mais portugueses que brasileiros. Nem o sol me soube bem. Parecia uma romaria. Eu digo-te o que vou fazer para o ano, para ter sossego: comprar comida para uma semana e fechar-me em casa como se tivesse abalado de férias. Não vou abrir a porta a ninguém.”

Boa educação # 6

Aqui eu e o meu amigo fizemos uma aposta. Eu digo que a sopa, por um pequeno equívoco sem importância nenhuma, levou vinagre para ser aquecida, em vez de azeite; o meu amigo acha que é o frigorífico que está estragado. Importava-se de pedir ao cozinheiro que desse o seu veredicto? Agradecíamos muito. Quem perder paga o jantar. O outro dá a gorjeta.

A Leitora, no seu infinito particular (XXXVII)

- Houve alguns equívocos acerca daquele post de balanço do ano, Leitora.
- Deveras?
- Atribuiram-te a parte da roupa a secar, pelo que me atribuiram a mim uma espécie de deslize machista ou masculinizado ou lá o que é...
- Mas não era claro que ambos pomos a roupa a secar e que ambos gostamos de sol?
- Por mim, era. Tão claro como seres tu a educar-me acerca daquilo que eu também sabia. Enfim, daquilo que todos sabemos: quando o balanço do ano permite saber alguma coisa, é porque não pensamos o que deveríamos ter pensado dia a dia.
- E tu importas-te com isso? Os equívocos, quero eu dizer?
- Só na medida em que são amigáveis, quer dizer, em que provêm de amigos.
- Então isto deve chegar.
- Acho que sim, deve chegar.

Grandes esperanças

Se eu quisesse... Se eu quisesse seria isto e aquilo.
Mas a verdade — e aqui eu sei a verdade, não há como não saber a verdade nestas situações —, é que mesmo que eu conseguisse querer, não seria nunca nem isto nem aquilo.

Reciclar

Há uma dobra na vida em que “falhar melhor” é o papel de embrulho de uma prenda que recebemos de outrem e de que nos queremos livrar com alguma urgência.

A Leitora, no seu infinito particular (XXXVI)

- Problemas com o balanço de ano?
- Nada que eu não soubesse, em boa verdade...
- É o paradoxo dos balanços: quase nunca trazem informação nova, e raramente ajudam à disposição.
- Vá lá que hoje há sol. Creio mesmo que a roupa vai secar.
- Isso já é uma boa notícia para início de ano, não é?