Juros de demora # 2

Não sei de que fugíamos.
Dizer que era da vida pareceria
demasiado lírico, demasiado verdadeiro
— e a vida raramente aproveita a um poema.

Manuel de Freitas, Juros de demora, Assírio & Alvim, p. 14


Por vezes, só a arte (a literatura, por exemplo) permite começar a dizer a proximidade à verdade. Não é dizer a verdade, muito menos saber a verdade, mas começar a dizer a proximidade à verdade. Desse terreno que não é ainda a verdade mas a ela conduz interminavelmente, diz-se que é demasiado lírico, i.e. improvável, irrealista, desfasado, e demasiado verdadeiro, i.e. insuportável, indomesticável, impenetrável. Claro que a verdade é ociosa — claro. E por isso a arte (um poema, por exemplo) aproveita pouco da vida, i.e. da verdade. Mas isso tem um preço, como existencial e ontologicamente tudo tem um preço: o de ter de atravessar a órbita da verdade para dela conseguir escapar. O que também é coisa ociosa — claro. E pagará juros de demora.

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