Estar no tempo

Bolaño escreveu uma vez que nas Américas toda a moderna ficção provém de duas origens: As aventuras de Huckleberry Finn e Moby Dick. Os detectives selvagens, com as suas personagens boémias, é o romance de amizade e aventura de Bolaño. 2666 persegue a baleia branca. Para Bolaño, o romance de Melville detém a chave da escrita acerca “da terra do mal”; e tal como a saga de Melville, 2666 pode ser estonteante ou soporífero, dependendo do gosto da pessoa pelo “lume brando”.
[da introdução de Marcela Valdes a Roberto Bolaño: últimas entrevistas, Quetzal, p. 18]

Mais do que a genealogia da moderna ficção das Américas, o que aqui é dito com clareza e conhecimento de causa é a própria genealogia mítica de Bolaño. Mítica porque pouco importa que Bolaño tenha de facto aprendido em Huckleberry Finn e em Moby Dick, ou nos seus descendentes das Américas, as duas vertentes do seu estilo compósito. Provavelmente não aprendeu, calhou-lhe por feitio e escolha sobre esse feitio, com uma particular aceitação dele. Mas as escolhas em literatura só se tornam realmente definitivas quando encontram/constroem a genealogia que as legitima. Bolaño escolhe uma genealogia próxima, sem qualquer ansiedade clássica, sem querer escapar ao transitório e ao circunstancial do presente. Essa tarefa vã não lhe interessa, apenas lhe interessa o desprendimento da deriva boémia e o cálculo rigoroso da obsessão — modos de estar no tempo, neste ou em qualquer outro.

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