do dossier do Libération, em vésperas da discussão do casamento para todos |
Um princípio político simples: tudo poder ser para todos, tudo mesmo
Agora por outro flanco
Quem nunca foi coisa que atire o primeiro coiso.
Mais fábula
É bem verdade que o coração humano bombeia mais fábula do que sangue.
Reler os clássicos: Alberto Pimenta com Raul Brandão
mas que adiantava
neste mundo
onde os criminosos se instalaram
com a sua conhecida lei
dos 3 magos do Ocidente
Elias
Melias
Melambes
[Alberto Pimenta, de nada, 2012]
Jim Hall & Pat Metheny
Dois tempos, duas sonoridades (e quanto a sonoridade de cada um, vindo de um génio próprio indiscutível, vem também do tempo que lhes calhou, seria uma outra conversa). Entre gigantes é usual o diálogo de surdos ou a amabilidade "agora brilho eu, logo a seguir brilhas tu". Aqui, porém, há transfiguração. Cada um parte do seu próprio território, até na escolha e repartição dos temas, mas vão-se encontrar naquilo que cada um abre para a frente de si mesmo. Não aquela homenagem de admiração mútua - olha só para mim a tocar à tua maneira -, mas uma dança que segue uma música em estado permanente de nascença. E como sempre nestes casos, a perfeição é absolutamente despojada e simples.
da arca de 2012 |
Diogo Vaz Pinto, Bastardo
A juventude foi um mito fundamental da arte e da política do século XX. A juventude como lirismo ia de par com a ideia de um mundo que a cada nova geração se oferecia como uma infância disponível para todos os sonhos de futuro.Tudo isso acabou como normalmente acabam todas as coisas: transformando-se em outras sem grande escândalo nem grande proeza. Não fora o usual problema dos restos e talvez nem se desse assim tanto pela mudança.
Em Diogo Vaz Pinto o problema dos restos é o de quem veio depois e recolhe notícia vagamente elegíaca dessa idade que foi costume existir em outros, precisamente a juventude: Se alguma vez fomos jovens, foi já / num tempo em que a paixão arrefecia. / Ficámos só para estudar o eco daqueles / que se deitavam com os deuses.
Vagamente elegíaca, não lutuosa, não melancólica. Em vez da dimensão da queixa, o movimento de ironia que assume ter-lhe calhado nada em lugar do sublime: É bom que seja demasiado tarde e já / não voltes. Teremos sempre a banalidade / do fim.
É certo que estes versos não se isentam por completo de alguma ambiguidade. Mas poucos terão este firme desgosto do presente sem procurarem qualquer nostalgia compensatória no passado: Na posse da noite que me resta, / em plena posse dos meus poderes, tenho/ só a dizer que, obviamente, me demito.
E como sempre, um radical metafísico não deixa de ser um perigoso radical político. Que alguém se demita é uma ofensa monstruosa para quem nos quer convencer do inevitável.
Cães e gatos
Quando peguei no marcador do gato não sabia que os cães seriam tão importantes no livro. O mundo é demasiado pequeno, e o sentido nele ainda mais diminuto. Coincidências, oposições, alheamentos ostensivos - tudo equívocos, impossivel evitar os equívocos quando coexistimos como sardinha em lata. Um espaço saturado é um sentido saturado.
levanta as suas âncoras rosadas
Sobe nos estores a impressão
de uma retirada: a tarde levanta
as suas âncoras rosadas e parte, deixa
ao frio todos os vestígios.
Os versos de Diogo Vaz Pinto comportam ostensivamente versos de outros, identificados pelo itálico. Não nos é dito de quem sejam, e isso é o que menos aqui importa, porque são apenas versos que já existem antes, esse horizonte no qual assomamos com a voz a que (impropriamente) chamamos nossa. O peso da história transformado em material disponível, adaptável, pronto a incorporar outra história sem perder por completo a memória da sua própria origem. O dispositivo tem potencialidades óbvias, mas como sempre tudo depende da égide do momento.
No exemplo acima, sem que eu consiga identificar a proveniência dos versos incorporados, levantar âncoras rosadas é imediatamente grego, mesmo que o não seja, e impressão de retirada nos estores é esta urbanidade de altos prédios e múltiplas gavetas incomunicáveis, mesmo que o não seja. O que nos resta de alma vem do seu cruzamento, mesmo que na realidade (ui, a realidade) não haja cruzamento nenhum. Por isso estremecemos nestes versos, como vestígios deixados ao frio. Estamos vivos assim, neste cruzamento, aqui e agora.
Enquanto se espera
Rua transversal ao centro da cidade, 6 lojas fechadas definitivamente, 2 ainda abertas. Carro parado no topo norte, vista sobre a rua inteira. 11h da manhã.
Um cão. Pausa. Outro cão. Pausa. Um miúdo de mochila. Pausa longa. Duas miúdas com mochila. Pausa muito longa. Um homem apressado. Pausa muito longa.
Pano.
Em momentos não menos certos
Nas horas mais difíceis, a alma descansa inteira na carne. Versos de Diogo Vaz Pinto, em Bastardos (Averno, 2011). As palavras certas no momento certo. O acaso inverso de muitas outras, tão erradas em momentos não menos certos.
O que lês?
Primeiro, leio o movimento do medo: a alma vem até à carne, o dentro vem à superfície mais exposta. Não há outro lugar para onde ir, não há mais dentro do dentro. Como um fumo que invade uma casa: ninguém se esconde no meio do fumo, no meio do fumo apenas se morre.
Depois leio a possibilidade mais escandalosa: expulsos pelo medo, descansamos inteiros na carne exposta. Verdadeiramente, nada mais nos resta senão isso. Mas não é fácil sabê-lo. Menos ainda estar lá, descansando inteiro.
Como lês?
Nas horas
Nas horas mais difíceis, a alma descansa inteira na carne.