levanta as suas âncoras rosadas

Sobe nos estores a impressão
de uma retirada: a tarde levanta
as suas âncoras rosadas e parte, deixa
ao frio todos os vestígios.

Os versos de Diogo Vaz Pinto comportam ostensivamente versos de outros, identificados pelo itálico. Não nos é dito de quem sejam, e isso é o que menos aqui importa, porque são apenas versos que já existem antes, esse horizonte no qual assomamos com a voz a que (impropriamente) chamamos nossa. O peso da história transformado em material disponível, adaptável, pronto a incorporar outra história sem perder por completo a memória da sua própria origem. O dispositivo tem potencialidades óbvias, mas como sempre tudo depende da égide do momento.
No exemplo acima, sem que eu consiga identificar a proveniência dos versos incorporados, levantar âncoras rosadas é imediatamente grego, mesmo que o não seja, e impressão de retirada nos estores é esta urbanidade de altos prédios e múltiplas gavetas incomunicáveis, mesmo que o não seja. O que nos resta de alma vem do seu cruzamento, mesmo que na realidade (ui, a realidade) não haja cruzamento nenhum. Por isso estremecemos nestes versos, como vestígios deixados ao frio. Estamos vivos assim, neste cruzamento, aqui e agora.

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