escrevo esta carta no início do verão, uma mão litoral no cabelo enquanto hesito. o automóvel está estacionado à porta de casa, o resto a caminho do sul. no final hão-de restar apenas as estrias de sal sobre o dorso, a interpretação desses mapas.
Companhia nocturna # 52
Nós, globais
Não é um LaBute vintage mas é um bom LaBute, em português ritmado e solto, bem servido especialmente por André Nunes, Marta Rebelo e Núria Madruga, com encenação inteligente para o lado comédia e eficaz para o lado cínico de Almeno Gonçalves.
PS: as vantagens do teatro na província são evidentíssimas, só me decidi à última e para espanto encontro casa cheia, bilhetes disponíveis apenas para a primeira fila, coisa de que o casal que me antecedeu na bilheteira se queixou amargamente, Assim logo à frente não se vai ver nada, o senhor vendedor de bilhetes retorquiu educadamente, Olhe que até se justifica etc e tal, fiquei assim a modos que sentado no quarto de hotel onde aquilo tudo se desenrola, e houve até umas punch-lines em que a malta quis bater palmas como quando o cowboy bom derrotava o pistoleiro mau nos westerns que o salão paroquial passava depois da catequese, o tempo que já lá vai, mas o mais estranho era que embora se percebesse que tudo aquilo se passava na grande américa eles resolveram que se devia passar no porto e em aveiro e em lisboa, com nomes portugueses e assim, e não é que funcionava mesmo?, não é que o tempo passou mesmo? nós, europeus, nós, americanos, nós, globais
Do charme suíço
Tentei encomendar o CD na central, não estava em stock. Mas havia na PlayTrade, um serviço disponibilizado pela central. Como seller, uma empresa suíça que dá pelo nome de CD24dutyfree. Encomendei. No dia seguinte, este mail:
We regret to inform you that the item you ordered was sold out at the time we received your order. We have, of course, promptly reordered the item for you, our supplier has confirmed that the item is still in backorder and will be shipped as soon as possible.
We sincerely apologize for this, and any inconvenience that may have been caused by this. Should you have any questions concerning the delivery, please refer to your order number 114193
With Regards,
Your CD24dutyfree team
Gostei. Of course, lembrei-me daquela história do Kundera, quando ainda estava na sua Praga e a editora francesa lhe escrevia, o quanto ele achava que aqueles finais de carta eram mesmo por causa dele em particular... Mas gostei.
E afinal o CD chegou sem atrasos acrescidos. Mas não chegou sozinho. Fazia-se acompanhar desse pacotinho aí de cima, perfeitamente dentro do prazo de validade, bem cheirosos, gentis q.b.
Companhia nocturna # 51
Driving Miss Laura # 18
Hoje, depois do jornal da noite, Laura Ferreira Santos na Grande Reportagem – SIC.
Adenda: já online
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Um conservador à esquerda? # 2
O sacrifício final de Kowalski. O gesto soberano de um indivíduo , da sua liberdade, do seu heroísmo lúcido. Mas Kowalski tem dois aliados, e não me lembro de alguém ter falado nisso. São aliados não para o seu gesto, mas para a eficácia futura dele. O seu gesto exige a solidão e está para além da regulação da lei. Mas a eficácia futura do seu gesto pede que o social ocupe o lugar do seu sacrifício — é aí que entram o padre e a irmã do rapaz. Kowalski faz o que tem a fazer para que as coisas possam vir a ser feitas, de facto, de outra maneira. O heroísmo individual não é um fim em si mesmo, muito menos glória narcísica, apenas um preço a pagar à história pela nossa impotência em torná-la desde sempre mais humana.
To every thing there is a season
Ambiente doméstico, uns poucos que se reúnem para ouvir a voz prodígio acompanhada do pai e da irmã, e mais dois a completar a banda. E pelo meio aquela coisa tão deliciosamente adolescente de cantar heart of gold, sim, a sua canção preferida do seu songwriter preferido, mas coisa tão fora da sua voz e da sua onda, de repente era como naquele querido mês de Agosto, um agosto deste povo da folk, alguns velhadas com barbas do passado, alguns novos muito étnicos, e Alela a falhar tão estrondosamente a subida final do derradeiro gold, um sorriso travesso, foi mesmo mau, não foi?, mas não, não foi, foi tudo very sweet, em tudo apetecia mais sorrir do que aplaudir. Alela virá mais vezes, terá mais canções magníficas a juntar às algumas que já tem, mas não voltará a ser assim tão very sweet.
Um conservador à esquerda? # 1
Por mero acaso, vi Gran Torino ao mesmo tempo que Che-1 e Che-2. No meu mundo há espaço para esses grandes planos do indivíduo e para essa construção de uma comunidade desde a base. E não deixa de ser curioso que as armas, de alguma maneira, possam ter mais importância em Gran Torino do que nos dois Che. Mas adiante, que o que me importa agora é apenas um pormenor de Gran Torino.
Kowalski fez a guerra da Coreia. Pecados? Não aquilo que fez obedecendo a ordens, mas o que fez sem ter sido obrigado a fazê-lo: coisas como beijar outra mulher quando já era casado ou um lucro não declarado ao fisco. Certo que a rectidão moral não é apanágio partidário, mas em Eastwood é sempre a fibra última do seu peculiar conservadorismo. O que me interessa é esse “peculiar”. Porque é um peculiar que não reside tanto na rectidão moral quanto numa complexidade que o conservadorismo tende a escamotear. O que Kowalski fez na guerra, fê-lo como soldado. Nenhum remorso aí, nada a confessar. E contudo, é precisamente isso que não constitui pecado que é a matéria dos seus pesadelos e daquilo que quer poupar à nova geração. Por mais justa que essa ou outra guerra possa ter sido, ela constitui só por si um preço demasiado alto para a possibilidade de sermos humanos. Kowalski não tem o triunfalismo nem da vitória nem da guerra justa — fez o que tinha o fazer, e é suficientemente humano e livre para reconhecer o horror quando o encontra. Horror: o termo que precisamente o conservadorismo é incapaz de pronunciar quando fala destas coisas.
Rir em americano
A cada um o seu módico de sanidade mental. Claro, o problema é que já é preciso ter alguma para reconhecer a necessidade desse módico. Mas adiante. A cada um, portanto, o seu módico de sanidade mental. Por exemplo, Jon Stewart. É só um exemplo. Mas é um exemplo cheio de vantagens. Porque, no fundo, a realidade americana tem estranhos paralelos com a realidade portuguesa. Claro que Sócrates não é Obama, o que realmente é uma pena. Mas para compensar, a oposição republicana americana parece-se muito com a oposição portuguesa, sobretudo à direita. Jon Stewart põe-os a falar, à oposição republicana, e o que ouvimos? Que Obama está a conduzir o país para o socialismo, para o comunismo, para a ditadura, para o fascismo. Se para a maioria dos americanos isto já soa demencial, que fará para um europeu, que sobre estas coisas de socialismo, comunismo, ditadura e fascismo sempre tem algum saber de experiência feito. Em suma: deliram, o que se obviamente não é bom para eles, também não o é para o governo. O mesmo acontece com a oposição portuguesa, sobretudo à direita: falam de “querido líder”, de ditadura, perseguição, regime censório, corrupção. Falam, e nem percebem que o simples facto de poderem falar nestes termos exactos é o mais cabal desmentido da maioria das acusações que fazem. Em suma: deliram, o que se obviamente não é bom para eles, também não o é para o governo — com a tal agravante de Sócrates, infelizmente, não ser Obama. Nem termos um Jon Stewart a ajudar à festa. Resta-nos rir em americano.
Adenda
Eu tinha dito mini-maratona? Tem mais ar de ser volta ao mundo em triatlo e seus derivados (sorry, continuo em private jokes). Mas eu sei que vocês passam bem sem mim. Eu, pelo menos, passo bem sem mim. Os outros é que não estão propriamente pelos ajustes e devolvem-me sempre à procedência. Coisas.
Companhia nocturna # 50
O verdadeiro companheiro Vasco
Foi por causa deste grande senhor que eu, nos meus idos dezoito aninhos, andava de super 8 às costas pelas escolas primárias a mostrar à pequenada filmes do charlot e do mc laren. As senhoras professoras ouviam charlot e marcavam logo, depois eu mostrava em alternado. Elas reagiam mal, a pequenada nem por isso. No fim fazia-se expressão corporal ou lá o que era, forma de nos pormos a imitar a gestualidade que se tinha visto. O charlot era fácil, e a pequenada fartava-se logo; o grande desafio era pôr no corpo aquele desdobramento que só a tecnologia permitia. A esta distância, é evidente que a pequenada, lá bem no fundo, estava era a “dançar” hip-hop avant-la-lettre...
PS: como ando desleixado na bloga, acho que ainda não tinha dito que sou um fâ incondicional dos © rabiscos vieira. Mas este, em particular, é uma corda sensível que veio de encontro a uma sensível memória.
Correspondências
Faculdade de Letras de Lisboa, 3ª feira, 5 de Maio, Anfiteatro 3, das 18.15h às 19.45h, falarei das cartas de guerra de António Lobo Antunes.
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Cartas de amor, portanto. Não só, mas sobretudo, e envolvendo tudo o resto de que também se fala — mas antes de mais, cartas de amor. Isto para dizer que o aviso pessoano é aqui imperativo: todas as cartas de amor são ridículas, mas afinal ridículo é quem nunca escreveu cartas de amor.
Cartas de amor que são, vou dizê-lo assim, legítima defesa contra a guerra. A mais íntima, mais nua, mais frágil legítima defesa contra a guerra.
Cartas de amor que são uma forma de religião sem deus, como de alguma forma ALA o deixa entender, que implicam igualmente recolhimento, ritual, ideia de este mundo poder ser em si mesmo um outro mundo.
Neste sentido, “o resto é nosso” com que as filhas terminam o prefácio permite uma outra leitura para além daquela mais óbvia, e justa na sua referencialidade, que é o de delicadamente afirmar o direito da sua privacidade se manter privada.
Neste outro sentido, “o resto é nosso” dirá aquela parte em que o entendimento do amor dos outros é feito a partir do entendimento do amor que nós próprios alguma vez sentimos, e de como isso faz sempre desequilibrar o que temos para dizer sobre todas as coisas.
Porque as coisas à luz do amor são um mundo ligeiramente diferente sem deixarem de ser este mundo, são precisamente um resto que é nosso, a legítima defesa contra tudo aquilo de que somos expropriados (e somos expropriados pela nossa condição mortal e pela muita demência do mundo que para nós próprios criamos ou nos criaram — o que numa guerra se dá a ver numa dimensão de escândalo).
Mas “o resto é nosso” não é uma posse, é um trânsito d’este viver aqui neste papel descripto. Sabemos bem que nenhuma descrição satura ou se substitui à realidade, antes a liberta para que fora do papel continue a haver vida e a possamos nós viver.
“O resto é nosso” é uma injunção à leitura não possessiva, não judicativa no sentido do rastrear do ridículo, é uma injunção a escutar o pulsar de vida que existe quando alguém confessa que “todo eu sou lugares comuns, porque a infelicidade e a solidão não são muito originais nem muito criadoras... Olho para o papel e só escrevo parvoíces tristes.”
O resto que é nosso começa logo aqui, no lugar comum e na parvoíce triste, e dirige-se a essa vontade de vida que não precisa de ser descripta neste papel aqui, porque é apenas vida anónima, humana, é simplesmente o resto que é nosso.
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Sob disfarce
Não interessa onde, nem em que loja, mas reconheci-a quando se me dirigiu. Antiga aluna, licenciada, empregada de comércio. Comecei a conversa pelo banal “está difícil dar aulas, não é?”, ela baixou a voz, fez-me mover para um pouco mais longe do balcão, e lá foi dizendo.
Deu aulas uns meses, intermitente. Depois houve aquela oportunidade e não hesitou: entrou para a Asae. Estava ali a trabalhar sob disfarce, para já e nos próximos anos as suas missões serão assim: infiltrar-se, ver por dentro, fazer o relatório, depois vem a Asae identificada e faz o que tem a fazer. O rol de lojas em que já trabalhou e as irregularidades detectadas deixaram-me de boca aberta. Não é que a gente não ouça umas coisas e imagine outras, mas a realidade comezinha é quase sempre mais gritante do que se imagina. E sempre os mesmos prejudicados: os que menos podem, por posição económica ou por ignorância e até medo. Estava contente, também por esse lado de justiça gostava do que fazia. Foi bom ouvi-la dizer isso. Exactamente isso.